Caroline Micaelia é tradutora e crítica literária (Universidade de São Paulo e Sorbonne Université).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Sim, tenho uma rotina matinal. Começo meu dia como alguém que vai sair para trabalhar fora de casa: acordo cedo, troco de roupa, bebo um copo d’água e, talvez o mais importante, tomo um bom café da manhã. Embora as manhãs já sejam, por definição, um período importante do dia para mim, penso que comer de manhã, além de ter algo de ritualístico, é fundamental. Sem comer – e principalmente, sem café! – parece que a coisa não vai.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu normalmente trabalho em manhãs e tardes, ainda que haja, de fato, uma diferença na qualidade do trabalho produzido em cada um desses períodos. Sem dúvida minha melhor produção é a matutina – de tarde rola um sono meio brutal depois do almoço, e eu levo um tempo para conseguir recuperar o ritmo.
Ainda sobre os rituais, para aquietar os ânimos antes de começar a escrever, para mim é preciso dar pelo menos uma passada de olhos nos e-mails, e, no limite, talvez resolver uma coisinha ou outra (nada muito complicado: é só para, durante a escrita, não ficar pensando no que preciso fazer quando der uma parada). Uma outra coisa: eu preciso ter sempre uns dois copos de água ao lado. Eu tomo muita água. Acho que isso, durante o trabalho, me ajuda a pensar, a clarear a mente. Ter água do lado evita, ademais, que eu me desconcentre, levantando para – justamente – buscar água no meio do processo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu escrevo um pouco todos os dias. Jamais seria capaz de escrever em períodos concentrados. A pressão de escrever em cima da hora me estressa demais, e dá a impressão de que nada que produzo sob pressão resulta em trabalho suficientemente bom. Eu preciso meditar sobre o que estou fazendo, reler, repensar, trocar ideias com amigos. Acredito muito num tempo para maturar a escrita e, por conseguinte, a reflexão. As plantas precisam de tempo para vingar – a escrita, eu acho, tem algo do reino vegetal nesse sentido.
Eu não sei se conseguiria definir muito bem a minha meta diária. De maneira geral, num dia produtivo eu escrevo um parágrafo. Num dia excepcionalmente produtivo eu escrevo dois, uma página. O grande lance para mim, em termos de meta, é antes conseguir resolver um problema do que simplesmente encher páginas e páginas de ideias.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meu processo de escrita é em primeiro lugar um trabalho de revisão do que eu já escrevi. Todo dia eu releio o que fiz nos dias anteriores; isso me ajuda a aparar as arestas, revisar o texto e dar aquele pontapé inicial para continuar escrevendo sem perder o fio da meada. Mas é evidente que, quando o seu texto passa de 15 páginas, fica impossível continuar relendo tudo todos os dias. Então, quando fica coisa demais para ler, eu começo revisando a partir de determinada parte que eu sei que é onde começa o problema com o qual lidarei naquele dia.
Já utilizei muitas estratégias na passagem das notas para a escrita. Antes eu fichava todo o material de pesquisa, depois voltava no fichamento, digitava tudo que importava e ia voltando a essas notas digitadas durante a escrita. O problema é que isso dava muito trabalho e me fazia perder muito tempo. Atualmente o que eu prefiro é ir anotando, à parte, as ideias que vou tendo durante o trabalho de pesquisa e, ao mesmo tempo, no próprio material, ir grifando e comentando o que interessa. Depois, revejo as citações, anotando, em linhas gerais, as ideias em comum nos textos (com o número da página em que cada uma se encontra, porque às vezes é preciso relembrar o motivo pelo qual anotei aquilo). Feito esse processo de destacar as citações, fica fácil, baseando-me nas anotações das ideias que eu tive durante a leitura do material, pensar num fio condutor e organizar um primeiro rascunho – passível de reestruturação no decorrer da escrita – do texto que vou construir.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Para mim, há muitas formas de lidar com esses revezes. Conseguir manter uma rotina de escrita, tomando água, fazendo intervalos para alimentação e praticando exercícios físicos são algumas delas. Acho que a rotina dá uma segurada na ansiedade: você já sabe o que vai acontecer no seu dia, então não tem com o que ficar se preocupando. Mas isso é o básico. Sei que muitas vezes no meio do trabalho dá aquela bloqueada, no nível de não se conseguir mais nem pensar no que se está fazendo. Nesses casos saio da cadeira, dou uma caminhada. Parar para fazer alongamentos me ajuda também, virar de ponta cabeça na cama, na cadeira ou na parede (acho que alivia bem aquela sensação de que a sua cabeça vai explodir (risos)). A masturbação pode ser uma boa ideia, se for possível; reduz um pouco as tensões. Uma coisa que eu tenho feito e que tem sido excelente é praticar um pouco de yoga, sobretudo yoga nidra, que é o que eles chamam de “relaxamento” – uma espécie de mini meditação. Isso quando estou ansiosa. Quando não consigo me concentrar, faço um exercício de respiração diafragmático, também do yoga, chamado kapalabhati, que ajuda muito a retomar o foco.
E se nada disso der certo, vou fazer café. (risos)
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu reviso meus textos um milhão de vezes. Quantas forem possíveis. Além daquela revisão diária que comentei, ainda faço uma revisão final. Quando posso, até revisão de provas eu faço, para você ter uma ideia. Não obstante, como revisora, sei bem que se trata de um trabalho infinito. No limite, não importa quantas vezes você revise: sempre vai faltar – ou sobrar – alguma coisa.
Porque tem também o fato de que a gente se vicia nos nossos textos. E é aí que entram os amigos. Ter outro leitor, para mim, é absolutamente desejável. Se toda vez que eu escrevesse alguma coisa eu tivesse alguém para comentar o trabalho, esse seria, sem dúvidas, o melhor dos mundos. Então, sim, sempre que possível eu tento mostrar o que faço para outras pessoas antes de publicar (às vezes mesmo antes de entregar para o editor/orientador/cliente). Acho incrível como a escrita ganha quando a gente dá ouvidos criticamente ao que os outros têm a dizer sobre a nossa produção. Talvez mais do que isso até, acho que, em alguma medida, essa leitura do outro dá um sopro de vida inicial aos textos.
No mais, eu sempre penso que o trabalho fica pronto quando fica pronto. Quero dizer com isso que há duas formas de você saber quando chegou ao fim: 1) no momento em que não dá mais tempo de ler e/ou revisar; 2) no momento em que você percebe que aquilo era tudo o que você tinha para dizer naquele momento. E acho que a gente tem que celebrar o fim das coisas, respeitar o fim, deixar que termine. Isso é importante.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Rascunhos e planos de texto eu escrevo todos à mão; mas o trabalho da escrita, o grosso mesmo, comigo é tudo no computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Eu leio muito, e cada vez tem sido mais variado o meu leque de leitura. Acho que muitas das minhas ideias vêm daí, a princípio. Depois, o fato de fazer outras coisas que não apenas me dedicar à literatura me ajuda a pensar sobre a literatura. Eu sou acrobata (mais precisamente, de aparelhos aéreos) e soprano num coro. Com o passar do tempo, essas práticas rigorosamente distintas me trouxeram grandes sacadas sobre a literatura, além de terem me ajudado a controlar a literatura como obsessão. (risos)
Literatura é corpo num sentido de experiência, que vai das questões pautadas hoje pelas ditas minorias, passa pela relação com o espaço geográfico, o tempo no qual se vive e as pessoas que estão no entorno, até chegar nos acidentes graves ou felicidades alucinantes, nos momentos de calmaria e nos de nervos à flor da pele, nos bloqueios e nas liberações. Eu acredito muito nisso, e acho que é daí, de todo esse background corporal, ou, digamos, promovido por essas múltiplas experiências que de uma maneira ou outra têm reflexo no corpo, que a gente pode falar numa coisa intuitiva da literatura. É uma mescla estranha de passeio no parque e vendaval, e penso que tentar equilibrá-la, além de um ponto de partida, mostra-se, para mim, um motor (nisso acho que o yoga tem me ajudado muito).
Não obstante, por mais que se extraia ideias de todas essas instâncias corporais, de toda essa experiência, eu estou com Mallarmé quando ele fala que os poemas não são feitos de ideias, mas de palavras. Para ser criativo na escrita tanto do ponto de vista formal, como no que concerne a reflexão que está sendo desenvolvida, é preciso escrever. É na escrita que as coisas se realizam, que as coisas tomam forma, corpo. Acontece direto comigo de achar que cheguei em algo de extrema dificuldade, de pensar que estou tocando num lugar fundamental para o meu trabalho a partir de uma ideia que tive, mas de essa ideia simplesmente não se resolver na escrita. Ora, se não se resolve na escrita, não é – ou ainda não tem condições de ser. A linguagem é o que cria o nosso mundo, todas as ficções que permeiam nossa experiência em comunidade – a ciência, a religião, a democracia, o dinheiro etc. Um fenômeno recém descoberto, para participar do nosso imaginário, para ser considerado algo, precisa ter um nome. O mesmo vale para o trabalho de escrita. A gente pode ter ideias e intuições e ser criativo o quanto quiser, mas se a coisa não passa no teste do papel e da caneta ou no de algum outro tipo de formulação verbal; enfim, se a coisa não se constitui como linguagem, não tem validade nenhuma.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Não sei dizer exatamente o que mudou. Acho que certamente descobrir o período em que o trabalho rende mais – as manhãs – teve influência grande no meu processo de escrita. Agora eu sei a hora em que produzo melhor, de modo que a organização do meu trabalho ganhou em eficiência. Arrisco a dizer também que talvez eu esteja mais regrada agora, do ponto de vista da rotina – alimentação, exercícios físicos –, e isso, para mim, tem contribuído. Não consigo pensar em algo que o processo tenha perdido no decorrer do tempo. Tenho a impressão de que cada vez consigo perceber de maneira mais profícua onde posso aprimorá-lo, e isso, acredito, torna meus hábitos e minha escrita melhores.
Não sei se eu teria alguma coisa a dizer a mim mesma dos primeiros textos. Acho que tudo é o percurso pelo qual a gente vai passando na vida. É bom conseguir valorizar cada etapa. Eu evidentemente considero o que faço hoje melhor do que aquilo que fiz há cinco anos, mas não tenho reprimendas ao meu eu-escritora de cinco anos atrás, nem conselhos. Eu fiz o que achava que tinha que fazer e, principalmente, o que podia fazer com as armas que tinha em mãos, e é claro que tudo pode sempre ser melhor, mas a gente tem que respeitar o nosso próprio ritmo de aprendizado, os diferentes momentos da nossa vida, e achar a mudança – de opinião, de estilo, de hábitos, de ritmos – algo normal e essencial. Talvez daqui a cinco anos eu tenha alguma reprimenda para o meu eu-escritora de hoje, mas gostaria de continuar não tendo. Se eu tenho certeza de uma coisa é de que estou nessa vida para aprender, e é muito bom olhar para trás e ver o quanto aprendi até agora.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu gostaria de ter um café, uma cafeteria mesmo. (risos) Talvez esse seja o projeto que eu mais gostaria de tocar, mas que não está nem perto de ter início.
Quanto aos livros, eu gostaria de ler uma boa parte dos que existem. Já me seriam bem suficientes para uma vida.