Carolina Ferreira é poeta, mestranda em Literatura pela PUC-SP.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Minha rotina mudou drasticamente nos últimos 9 meses e confesso que ainda sigo buscando uma pra chamar de minha. Sou bem contraditória, aqui culparei meu signo e ascendente que são puro ar, gosto de acordar cedo e com calma, mas também tenho aprendido a respeitar o tempo no corpo. Acho que nesse cenário pandêmico tem sido difícil ser rígido, pelo menos pra mim.
A minha rotina ideal, mas que não consigo fazer todos os dias é acordar cedo por volta das 7/8h da manhã, tem silêncio e pássaros cantando. Se o celular estiver longe melhor ainda, amo o ritual de fazer café, pesar o grão, moer e escaldar o coador, são como meditação pra mim. Adoro ler pela manhã também, mas o que faço com mais frequência é observar os barulhos à minha volta, moro em uma região com bastante verde, pássaros e animais – gosto de escrever a partir dessa observação. Isso se tornou comum na pandemia, sinto que a minha escrita mudou muito, quase todos os textos são a partir dessa contemplação da natureza e da observação do corpo. Tem algo misterioso em ambos que se convergem e me fascinam!
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Isso varia bastante, quando estou com meu sono em dia, o que tem sido raro, tenho escrito bastante a tarde. Mas percebo que a noite e pela manhã quando acordo bem cedo são as horas em que as ideias fervem. Então sentar à tarde acaba sendo mais para afinar o texto ou dar uma forma a ele.
Tenho algumas manias, se a minha mesa está desorganizada, costumo arrumá-la. Geralmente o porta canetas de cerâmica que eu fiz do lado esquerdo e caderno do direito, mas como uma boa geminiana isso sempre pode mudar! O que está sempre aberto e a mão são minhas anotações dos tais devaneios, ideias incompletas, poemas pela metade, grifos ou frases e citações que ouvi por aí.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Já tentei ter uma meta diária, me frustrei muito e sinto que fico paralisada, não consigo nem escrever que cor é a folha da amoreira na frente da minha janela. Geralmente escrevo diariamente, mesmo que sejam ideias soltas, um sonho, algum verso solto que surgiu. Tenho o hábito também de às vezes escrever sobre o que estou sentindo, na pandemia tenho escrito muito sobre a saudade e os desejos.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Como falei antes, eu tenho o hábito de anotar tudo por mais bobo que pareça. Seja no google keep, em um post it ou espalhada nos 3 cadernos que mantenho. Releio muito minhas notas, porque às vezes consigo utilizá-las é quase como um trabalho de remendo, me sinto brincando de montar blocos! Muitos textos já saíram assim.
A pesquisa é um outro aspecto da minha produção e me inspira muito, quando sinto que estou sem inspiração ou com algum bloqueio criativo geralmente leio teoria, ensaios e poesia. Gosto também de vez ou outra tentar outras linguagens, fotografia, bordado e desenho, acabam ficando pra mim, mas servem de gatilho para a escrita.
Tenho dificuldade para começar porque geralmente sou muito procrastinadora, mas tenho conseguido contornar isso tentando criar uma rotina, ainda que não rígida, mas que me lembre do compromisso que tenho com a escrita.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Esse é o maior inimigo de uma escritora , né? E acho que para mulheres negras, como eu, isso fica muito evidente. Fui mentorada da FLUP 2020 e isso era muito perceptível no grupo de quase 30 mulheres negras. O medo já me travou muito, mas hoje sinto que consigo lidar um pouco mais.
A troca tem sido importante, mantenho encontros periódicos com outras mulheres que escrevem e ter esse espaço de troca tem me fortalecido e me ajudado a compartilhar mais meus escritos. Outra coisa é não se levar tão a sério, em uma aula de escrita criativa um dia desses eu fiz um poema bobo sobre uma caixa de papelão e me diverti com isso. Acho que a gente precisa dar as mãos para a criança interior as vezes pra conseguir seguir no trabalho criativo, porque ele não combina com rigidez.
Além disso, tenho percebido que pra mim é importante viver um dia de cada vez e traçar objetivos para me manter ativa. Estou nesse processo de pensar um projeto pessoal e tem sido desafiador, porque são muitas inseguranças e a síndrome da impostora bate real. Mas se eu não fizer, quem vai fazer por mim?
Não pretendo atingir a expectativa do outro, porque eu mesma tenho tentado não idealizar a minha produção, mas se na partilha do meu trabalho alguém se identificar e se inspirar vai ser lindo e, caso isso não aconteça, tudo bem! Tem um bocado de escritor e poeta por aí que não me tocam e não é por isso que acho o trabalho deles ruins.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Uma coisa que estou aprendendo é a deixar mais os trabalhos no forno antes de compartilhar, o processo da FLUP me ensinou muito sobre isso. Às vezes por ansiedade e medo de me sabotar acabo publicando mesmo assim, até porque entendo que o meu trabalho é vivo e vai ser revisitado e talvez revisado em outros momentos. Compartilho uma parte deles nesses grupos de mulheres que faço parte.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
É uma grande bagunça, meu ideal seria escrever a mão, mas por vezes não entendo minha letra rs e as vezes o que está ao alcance acaba sendo o celular ou o computador. Sinto que o texto flui de outra forma quando feito a mão, mas é bem variado a forma como produzo, tenho muita coisa escrita a mão e mais um bocado digital em lugares diferentes. Sinto que o digital às vezes é mais fácil de acessar e organizar e no fim, não acredito que substitui o físico porque o contato com a caneta, lápis e papel é importante para o processo criativo.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Fazer absolutamente nada é o hábito mais importante pra mim. Mesmo quando trabalhava fora, eu fazia isso nem que fosse por 15 minutos indo até um café sozinha e vazio. A solitude pra mim é muito importante, assim como o silêncio.
Um hábito que eu sinto que me inspira porque funciona como meditação é fazer café, chá, me concentrar por um instante nessa feitura. Além disso, andar sem rumo pela cidade observando e ouvindo conversas era algo que me nutria muito, que sinto falta nesses meses de isolamento social. Tenho tentado observar os vizinhos pela janela e sacada, mas não é a mesma coisa.
Além disso, ler, poesia,ficção, não ficção, gosto muito de arte também e fotografia são contatos que eu gosto de manter. Estou me aventurando em aulas de escrita de roteiro, comecei a ver mais filmes por conta disso e tem sido ótimo. Só que pra mim não há nada como deitar no chão e observar como a luz do dia vai se movimentando com o passar das horas.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
A autossabotagem diminui consideravelmente, antes eu tinha a angústia da vontade de escrever, mas achava que não podia, que não tinha algo relevante pra contar. Hoje são questões que não estão resolvidas, mas que já não me impedem de fazer. Eu diria pra mim “Só escreva, não se leve tão a sério. Seja fiel aos seus objetivos e se divirta, não existe criativo na rigidez.”
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Meu sonho é um dia publicar um livro de ensaios, descobri ano passado que gosto muito do gênero e acredito que tem muita a ver com o meu processo de criação da poesia. Por conta da FLUP e dos exercícios propostos pela Eliana Alves Cruz, tenho tido vontade também de publicar crônicas que até então pra mim era um gênero um pouco obscuro e que agora acho fascinante.
O livro que eu gostaria de ler e ele ainda não existe, é um livro onde nós pessoas negras, homens, mulheres, travestis e pessoas não binárias possamos colocar nossa subjetividade para além da dor, onde não seja preciso falar a partir das violências que vivemos. Que a nossa criatividade possa florescer de outro lugar!