Carolina Bernardes é escritora e doutora em Teoria Literária pela UNESP, autora de “Flauis” (2010).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Como me tornei mãe aos 21 anos, cedo demais para que eu pudesse ter me lançado ao mar do desbravamento, toda a minha rotina literária é feita entre filhos e cuidados caseiros. É entre idas e vindas à escola, ao mercado, à cozinha para colocar o feijão na panela e entre às muitas divagações às quais me permito, que a escrita se faz. Amanheço com o filho mais novo e após deixá-lo na escola, faço meditações, tiro Tarô, me conecto com as forças do dia e, só então, me dedico ao trabalho.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Justamente por ser mãe e estar imersa tanto na infância, como na juventude das filhas mais velhas com as quais mantenho intenso diálogo (mesmo que estejam vivendo em outras cidades), que me apego ferrenhamente ao período da manhã, no qual há silêncio na casa e os sentidos podem se abrir a outras vozes. Entretanto, minha criatividade e atenção são mais precisas no final da tarde, embora eu não tenha esse momento disponível. Meu ritual de preparação sempre envolve práticas meditativas, conexão com o eu profundo, incensos, o fogo de uma lareira ou vela, uma música de fundo (mas dispenso tudo isso se está chovendo), elementos que sempre ativam a minha inspiração.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não me coloco metas diárias nem mensais. A escrita para mim está mais associada ao fluxo das águas, às emoções e a como as ideias e elementos narrativos vão se acomodando internamente, antes de se tornarem materialidade escrita. É na fluência ou cadência que me fixo. Jamais sei quando terminarei um livro, ele pode demorar anos na oficina ou surgir em um mês (caso de Retalhos e Epopeias). Incrivelmente, este fluxo está mais volumoso em 2019. Vários projetos que vinham como afluentes de um imenso rio correm agora com vigor, exigindo de mim um ritmo diário de presença.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
O princípio é sempre intuitivo, as ideias brotam como imagens e associações de vários símbolos e arquétipos. Passado o momento da apreensão, me dedico a muita pesquisa bibliográfica e de temas que eu desconhecia até então. Anoto centenas de informações, desenho esquemas e listas. Meu baú de anotações é abarrotado. Mas sair das visões, das impressões sensoriais e transformar em linguagem literária é uma das tarefas mais difíceis, embora eu tenha predileção por inícios de livro. O movimento da instauração é sempre doloroso, mas de redenção quando se encontra a passagem.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Apesar de ter certeza do ofício e de que não o abandonaria em qualquer circunstância, não consigo evitar me render ao desânimo na relação com o outro, a autoria colocada à prova, seja na leitura, seja na construção do efeito-autor. Perceber que muitas das instâncias discursivas que refletem essa construção ou não funcionam ou revelam a fragilidade da verdadeira face é uma realidade desmotivadora e paralisante. A ansiedade em relação a projetos longos (venho trabalhando em três projetos há sete anos) se refere principalmente à produção de outros autores. Enquanto há uma dedicação de anos a um só projeto e, por isso mesmo, a falta de publicações, outros autores seguem publicando com regularidade. Essa constatação gera intranquilidade, principalmente para uma autora como eu que segue no compasso das emoções sem traçar metas. A forma de lidar com a frustração de não ter um livro pronto há anos é o autocuidado emocional e a convicção de que escrever não é tão-somente o momento típico da grafia, mas algo muito maior, que excede limitações de tempo, espaço, discurso, âmbitos do ser. Escrevo diariamente em minha sala de tecelagem, dentro de mim e em todas as minhas relações.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Meus textos vão sendo revisados conforme são escritos. Não é possível avançar sem burilar a página escrita no dia anterior. Somente quando alcanço a “palavra perfeita” e o efeito pretendido, dou continuidade. Não tenho como hábito ou necessidade compartilhar os originais com leitores, com exceção das pessoas de meu círculo de afetos.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Embora eu valorize a potência criativa contida nas mãos e reconheça que foi por meio delas que o homem abriu seu caminho para a linguagem, o canal de escrita literária é aberto somente quando pouso as mãos no teclado do computador. Entretanto, o momento de revelação autoral se faz num movimento fraterno: as folhas de papel farfalhando na mesa, enquanto palavras rabiscadas à mão saltam para a tela.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Acredito que as ideias venham das relações de intercâmbio entre mundos, mas pressinto que minha sensibilidade desperta em tudo que se aproxima dos retalhos e epopeias: as viagens, o tom épico, histórico e mitológico das mais variadas narrativas (seja de tempos antigos, seja das composições modernas – filmes, por exemplo); os elementos pouco valorizados do cotidiano, como as atividades caseiras, frases soltas, citações recortadas, fios, linhas emaranhadas, entre outros. São percepções marcadas pela intuição e pela comunicação com mundos invisíveis e de outras temporalidades que vão sendo costuradas, reunidas num único vaso sagrado, num imenso manto tecido no tear caseiro. A criatividade nasce dessa abertura para os sentidos extra-corporais, um estado de presença para o que acontece não só no espaço-tempo hoje, mas nas mais variadas dimensões, e o fio que une os múltiplos retalhos se encontra tanto nos livros da estante, como nas vozes dispersas “entremundos”.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Da menina de 13 anos, passando pela de 18 e mesmo a de 30, houve uma evolução notável. Havia pressa na finalização dos textos, com o intuito de colocar-se no mundo como a entidade escritora, e ao mesmo tempo a inocência de ver na própria produção a revelação intuitiva, quase psicográfica, de alguém que recebe as mensagens prontas do invisível. Eu diria que a autora precoce precisaria tão-simplesmente confiar nos processos de amadurecimento, que passam pela disciplina de leitura, os estudos acadêmicos e mesmo a vivência pessoal, entre quedas, amores e gestações uterinas.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Há muitos livros que não encontro publicados e seriam de total necessidade para a composição do meu projeto de “escrita de si”. Como não os encontro, escrevo. Talvez eu escreva justamente porque desejaria receber esses livros do mundo. Tenho uma lista de projetos que me assombram e não me deixam dormir, mas o tempo… a maternidade… a casa… Me interessam livros que não pensam tão-somente as questões do nosso tempo em particular. Esses são os livros que lançam pontes entre as temporalidades, o agora sempre passado, o ontem sempre hoje.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
O planejamento de toda obra é necessário, representando uma primeira colheita dos aspectos e pormenores que recobrem o tema. Vejo como uma etapa essencial e prazerosa de trazer à tona o conhecimento adormecido sobre o tema escolhido, abrindo portais que estimulam a inspiração. Entretanto, não existe planejamento completo, como se fosse possível desenhar a planta de uma casa e depois levantar paredes e telhado como figuram no projeto. A escrita literária, embora comungue com a arquitetura em certa medida, é muito mais um trabalho de arqueologia, de escavação, de encontro com uma história desconhecida, muitas vezes com algo monstruoso de uma linguagem pertencente a outro tempo e espaço e que o autor apanha no trabalho de deixar-se encantar. A escavação atende a um plano pré-definido: o mapa do trajeto, as ferramentas, o local onde, com mãos e pás, deve-se cavar. Mas os vestígios e a materialidade da morte são o imprevisto da viagem. A escrita literária é, assim, a soma da exatidão com o indeterminado.
Sou apaixonada por começos, trabalho com esmero na primeira página de todos os meus textos. O fim é sempre mais difícil, pois parece inatingível, distante. Chegar é terminar, e o fim é sempre a morte de uma busca.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
É quase impossível dedicar-me a um só projeto de cada vez. Escrevo em simultaneidade, puxando linhas diversas na composição de um longo manto. Na verdade, meu projeto literário se faz na costura de retalhos que se atam para a formação de uma epopeia. Todos os textos, sejam contos, romances ou poesias, são tecidos menores de um grande painel de tecelagem. Assim, como uma tecelã ou costureira, dedico tempo a todos os recortes, seguindo a intuição e permitindo que as mãos trabalhem em sua ancestral sabedoria.
Minha rotina de trabalho segue o trânsito dos astros, da lua e o ciclo feminino, a pura imprevisibilidade do ser mulher.
O que motiva você como escritora? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Desde muito jovem, quando ainda era uma menina inocente e por isso forte, realizei a importante fusão entre presente e futuro. Ali, nesta época em que o mundo ainda não era capaz de me derrubar, concebi a minha história: somente a escrita como missão, dever e deleite. As cenas da realidade adolescente, entre as primeiras paixões, as brigas em família e a falta de dinheiro, não eram suficientes para me demover do ideal. Escrever era a minha força e meu equilíbrio, um estar de pé consciente e fortalecido para rasgar as portas do ser adulto vigoroso e criativo.
Na atualidade, 30 anos depois da fusão presente/futuro, há um sentimento semelhante. Escrever e dar corpo ao caos é uma ação vital de equilibrar forças antagônicas, de compreensão das infinitas modalidades do ser/estar no mundo e, ainda, a ação concreta de engendrar o que não existe, fazer nascer da imaterialidade do útero os elementos mortos ou sem significado do passado. Escrevo para reavaliar vestígios, recompor a face morta, e para costurar os elementos dispersos e mal compreendidos.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
Apesar da dureza das críticas, fui refém da leitura alheia, que me apontava um estilo barroco, épico demais para os dias atuais, e a temática muito voltada às coisas etéreas. Foi um longo período de sofrimento, tentando baixar o tom, ser mais objetiva, encontrar uma linguagem mais econômica, seca, sem a excessiva adjetivação, própria do estilo épico. Foi um período em que, teoricamente, eu pensava a escrita como trabalho árduo, de aprendizado contínuo, o que me fazia pensar meu próprio labor como insuficiente, me considerando uma autora ainda em formação. Esse olhar sobre o fazer literário se, por um lado é necessário para que o autor se coloque continuamente em aprendizado, por outro, deixa marcas de insegurança e bloqueio. Por muito tempo, não passei da página 10 de um projeto, porque era tortuoso aparar as sobras do estilo elevado. Foi uma dor necessária, o intervalo de tempo em que passei me debatendo, enquanto o cenário literário brasileiro sofria o boom de escritores (até então, me via como uma das poucas subjetividades que haviam escolhido a escrita como expressão). Não há sofrimento maior do que ver sua produção estacionada, enquanto brotam escritores diariamente. Hoje me afirmo nesse estilo, sei que meu projeto literário não tem outra linha de costura senão a poeticidade épica.
O feminino é a força principal em meus textos, entretanto, me conecto ao “ser mulher” não por uma leitura específica de uma determinada autora, mas pelos arquétipos e mitologia das deusas (o que também é literatura). Minha inspiração é ativada com a leitura dos mythos, com o estudo profundo do tarô, com as práticas ritualísticas e com as grandes personagens das narrativas ancestrais (míticas e místicas). Mas cito duas importantes autoras que me tocam verdadeiramente: Laura Esquivel e Maria Gabriela LLansol.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Toda a minha obra é muito marcada pela leitura de Nikos Kazantzakis e, portanto, não poderia deixar de recomendá-lo. Embora seu romance mais conhecido seja Zorba, o grego (e eu tenha um carinho especial por ele, por ter sido a porta de entrada para este autor magnífico), indico o pequeno texto híbrido Ascese Os Salvadores de Deus (Editora Grua), um divisor de águas na compreensão do que é literatura e sobre a relação com as forças invisíveis que necessitam do homem para perpetuarem sua ação no mundo.
Outra obra que marca profundamente minha trajetória é o grande épico indiano Mahabharata, um dos maiores livros do mundo (cerca de 15 vezes maior que a Bíblia). Uma tradição indiana nos diz: “Tudo o que se encontra em O Mahabharata está em outra parte. O que não está nele, não está em parte alguma”. Seus primeiros relatos datam de IV ou V a. C, numa imensidão temática, histórica e psicológica. Escrito pelo deus Ganesha, o épico indiano narra a grande história da humanidade, vivenciada pela longa e furiosa disputa entre dois grupos de primos: os Pândavas e os Káuravas. Repleto de mitos e orientações filosóficas, a obra ainda guarda um dos poemas mais belos já compostos, o renomado Bhagavad-Gità, momento em que Krishna orienta o herói Arjuna sobre a grande batalha que se daria contra seus parentes.
A terceira indicação diz respeito às narrativas ancestrais que permeiam todo o conhecimento humano. Não poderia deixar de trazer a importante fonte de inspiração que conduz minha tecelagem: os contos de fadas. Recomendo a leitura dos originais dos Irmãos Grimm. No que se refere a essas narrativas pertencentes ao povo, sempre leiam os originais. Qualquer adaptação deve ser tratada com cuidado e atenção, pois alterar uma história é como atrever-se a mudar o universo. Minha indicação específica aqui é o do magnífico livro Mulheres que correm com os Lobos de Clarissa Pinkola Estés, no qual ela faz uma preciosa leitura analítica de alguns dos contos ancestrais, orientando a jornada da mulher em busca de si. Leitura profunda sobre as narrativas coletadas pelos mais diversos narradores voltadas para o despertar feminino.