Carol Sanches é escritora.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Minha rotina tem mudado muito nos últimos anos. No geral, sou acordada ou pelas minhas filhas ou pelo meu marido. Se pelo meu marido, tomo um café amargo e decido se quero começar a trabalhar nos meus freelas logo às 06h, quando ele sai para São Paulo. Se pelas minhas filhas, fico preguiçosa no sofá ao lado delas assistindo a um episódio da série Avatar – a lenda de Aang (para Cecília), e um episódio de Patrulha Canina (para Clarice). São 20 minutos + 10 minutos, respectivamente, por ordem de quem acorda primeiro. É o máximo que consigo suportar de televisão. Depois tomamos café juntas, regamos a horta, as nossas frutíferas, elas brincam, eu tomo banho, um beijo nas duas, um livro, se der tempo, e sigo para um dos meus trabalhos numa agência. Abro a porta, entro no carro, saio do carro, volto a abrir a porta de casa. Cecília anuncia “o que você esqueceu desta vez?”. Não há um dia em que eu não esqueça alguma coisa. A carteira, os óculos, a bolsa, o celular. Não gosto de estimular a pressa. Por isso, estou sempre atrasada.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não tenho hora nem método. A poesia acontece quando sinto a necessidade de extrapolar em palavras o que percebo. Nem sempre acontece. Às vezes, a experiência basta, e posso ficar semanas sem escrever. Outras vezes, tenho bloqueios. Mas de repente, durante vários dias seguidos, essa necessidade vem. E daí minha produção fica à frente de tudo, de forma intensa, meio obsessiva. Não faz lá muito bem. Quando estou nessa fase, preciso me esforçar bem mais para cumprir tarefas cotidianas, como trabalhar, cortar as unhas, fazer supermercado, pagar as contas.
Já no trabalho, como sou redatora, escrevo o dia inteiro. Mas daí não tem nada a ver com criação artística e não há, em mim, qualquer necessidade disso; na maior parte do tempo é automático, um ofício, fundamental para sobreviver. Mas carrego muitas críticas sobre o segmento da publicidade, sobre as corporações, então, não é daí que vem a realização. É no máximo satisfatório. E isso, no que diz respeito a um ofício (e ao dinheiro), já me parece suficiente.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu trabalho com redação. Então é, basicamente, o dia todo escrevendo. Tive uma ruptura forte em 2017, quando deixei de trabalhar em uma grande empresa. Fiquei por lá sete longos anos. Durante esse tempo, não escrevi poesias. Foi insano. Só fazia redação, conteúdo e ghostwriting. Hoje, meu propósito no ofício da escrita é me sentir livre. Gosto da ideia de não ter chefe, não ter hora, não ter instituição me representando e, principalmente, gosto da ideia de me dividir em diversos trabalhos e lugares diferentes. Atualmente, presto serviço para uma agência em tempo integral e de forma presencial, mas preencho outros vínculos no home office, nos horários que me sobram. É o dia todo assim.
Sobre meta, não tenho nenhuma familiaridade com isso. Lembro-me, um dia, que uma psicanalista lacaniana me fez uma pergunta sobre ambição, algo sobre escrever um blockbuster, desses parecidos com Harry Potter, e demorou a entender a pergunta dela, tamanha minha falta de intimidade com os temas das ambições concretas. Fico pensando o que seria isso de blockbuster da poesia. Fato é que minha única meta, se é que se pode chamar assim, é jamais me separar da poesia novamente.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Não costumo me apegar à dificuldade. Nada é tão difícil, nem tão fácil. A gente é que preenche esses espaços de julgamento. Quando estou escrevendo poesia, a pesquisa normalmente acontece depois que já tenho o esqueleto da ideia toda, versos, estrofes, às vezes bem redondos, e me volto para a pesquisa para confirmar uma ou outra coisa. Claro que a maior parte dos poemas não termina nunca de ser reescrita. Mas tem aqueles em que não há pesquisa alguma envolvida. Agora, o contrário, começar a escrever depois de uma pesquisa, é mais no trabalho. Acho que são tipos de escritas bem diferentes, talvez opostas: enquanto no trabalho vem de fora para dentro, na poesia vem de dentro para fora.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Ah, não sei lidar com travas. Entretanto, aceito-as. Infelizmente (ou felizmente) elas acontecem, talvez para abrir espaço para outras esferas da vida, igualmente importantes. Não somos uma coisa só. Já trabalhar em projetos longos me deixa, sim, um pouco ansiosa, geralmente por achar que vou desistir no meio do caminho. O problema é que depois que virei mãe, muitos outros medos vieram à tona, e isso me distancia, de certa forma, daqueles “menores”. Tipo esse, de corresponder às expectativas. Se vou agradar ou não. Se vão me compreender ou não. Normalmente já sou do tipo incompreendida, e hoje já não me esforço tanto para me traduzir. Meus medos atuais estão mais relacionados à picada de escorpião, meningite meningocócica, crise de tosse nas madrugadas, essas coisas maternais.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso incontáveis vezes. O lance com a revisão é que tenho dificuldade com detalhes, sou do tipo “bigger picture”. Tanto que às vezes nem enxergo o erro, passo direto. Já perdi muito tempo mostrando poesia para quem não lê poesia, e daí descobri que a poesia é um dom também do leitor. Prefiro mostrar apenas para quem aprecia esse tipo de leitura, geralmente amigos mais próximos.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Depende de onde estou. Como sou desorganizada, normalmente uso papéis soltos, cantos de embalagens, qualquer coisa que esteja ao meu alcance, e logo tenho que repassar para o computador antes de perdê-los. Também uso o celular. Odeio. Tanto quanto odeio redes sociais e televisão. Mas é ele que me acompanha em locais onde não há possibilidade de anotar num papel. A maternidade tem sua culpa nisso, porque existe a ideia de que sempre posso receber uma ligação urgente da escola, de casa, enfim. Gostaria de ser mais interessante e andar sempre com um tipo de moleskine artesanal da benedito calixto no bolso, mas a vida moderna chegou em mim. E a vida moderna é, pra mim, muito desinteressante.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Eu dou valor à intuição. Talvez venha daí. Mas a verdade é que não sei. Entendo a importância do dom, dos exercícios, do esforço e do treino para a escrita. Em mim, essencialmente, a coisa funciona desse jeito – pode começar na intuição, numa percepção diferenciada da realidade (igual à maioria dos poetas), mas se desenvolve com a prática. Sobre os hábitos, tenho alguns, não sei ao certo se servem para estimular a criatividade ou não, nunca pensei sobre isso. Costumo ler poesia, cuidar da horta, cozinhar no meu fogão a lenha, fazer pães, massas, tomar vinho, beber muito café, comer pastel na feira aos sábados. Fujo de lugares cheios. Gosto de estar entre seriemas, mas isso só acontece em Auriflama. Além de afastarem cobras, elas te acordam pelas manhãs. Eu me sinto melhor quando estou fora das cidades. Gosto da atmosfera do litoral, tenho prazer em cuidar de quem amo e quando mais jovem costumava escrever em cima de uma laje, entre morcegos curiosos.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Mudou conforme eu mudei. Existe uma coerência cósmica aí, e não se pode interferir nisso. Entendo que toda poesia amadurece, mas quando me leio jovem, é como se estivesse lendo o meu contexto em uma época. Respeito. Agora, se eu me encontrasse com meus 18 anos, não diria nada relacionado à forma. Talvez dissesse algo como pra ficar atenta e não me distanciar da poesia. Pra ser do meu tamanho – nem maior nem menor. Pra dar as caras antes. Pra não duvidar tanto de mim. Pra não me achar tão diferente de todo mundo. Pra ignorar veementemente quem dissesse com tom de escárnio “ah, ela é tão poética…”. Diria pra esquecer essa coisa de reconhecimento. Que a poesia é um caminho marginalizado, mas ainda assim, é um caminho. Também diria que ela não é tudo. Diria que não precisa ser necessariamente útil para ser legítimo. Que possivelmente vai te fazer se sentir mais solitário. Que não te faz uma pessoa mais feliz, mas com certeza te faz alguém mais interessado nas possibilidades de mundo. Talvez dissesse mais coisas, ou talvez não dissesse nada.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Meu próximo projeto é sobre sonhos. Só não comecei ainda porque neste primeiro semestre estou finalizando o livro Não me espere para jantar, que vai sair pela editora Patuá. Fiquei tão feliz com a notícia que a editora vai me publicar que ainda estou curtindo essa fase. E, assim, de bate pronto, gostaria de ler, um dia, os livros que ainda não escrevi.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Geralmente vislumbro o projeto, que depende do desenvolvimento das partes – são elas que vão me dizer se o conjunto se sustenta. Nessa etapa, deixo fluir. Tenho certa dificuldade com planejamento. Quando penso sobre poesia, o “deixar fluir” soa mais realista; posso escrever alguns versos agora, voltar neles depois, elaborar um título, escrever outro poema, voltar no anterior, e assim ficar por meses a fio, mudando, editando, reescrevendo, sem ordem ou planejamento. É meio caótico. Agora, se tenho um prazo apertado a cumprir, a coisa flui com mais rapidez, mas a sensação que fica é que meu projeto não teve tempo suficiente para curar. Acho que, por isso, o mais difícil sempre acaba sendo o final. Nem tanto a última frase escrita. Mas a última dita: “pode publicar”. Essa é a mais difícil, porque sei, no fundo, que corro um sério risco de voltar ao poema e modificá-lo, mesmo depois de publicado.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Costumo dizer que meu “ofício do capital” é a redação e meu “ofício do coração” é a poesia. São naturezas opostas. No primeiro caso, prefiro tocar mais de um projeto ao mesmo tempo. Evita o tédio, sobretudo porque ele geralmente aparece quando não há paixão ao executar uma tarefa. Por outro lado, se toco muito projeto ao mesmo tempo, acabo dispersando energia, e isso nunca é bom – interfere na qualidade. O ideal é trabalhar, no máximo, com três projetos ao mesmo tempo, assim consigo dividir minhas energias entre eles sem sacrificar nenhuma área da minha vida, nem a qualidade dos projetos. Já no segundo caso, quando se trata de um livro, não tem jeito: tenho olhos só pra um. Acho que tem a ver com as coisas do coração. Com a entrega.
O que motiva você como escritora? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Desde que me conheço por gente, escrevo. Cartas, textos imensos, e quase ninguém tinha paciência de ler. Mas essa é uma pergunta particularmente difícil de ser respondida no que tange à poesia. Talvez por ter sido, quase sempre, motivo de chacota, piadas e dificuldade de adaptação na minha vida, por muito tempo eu “me esqueci” que escrevia poesia. Quem me conhece desde criança diz que eu já escrevia na época da adolescência e até ganhei um concurso do colégio com um poema. Não me lembro disso. Depois, na juventude, voltei a escrever em 2007, mas na sequência parei novamente. Sete anos da vida adulta se passaram e nenhuma poesia foi escrita. Tentava, às vezes, esboçar um verso, e nada…. me escapavam. Acho que, no fundo, a poesia era o meu lar, mas um lar pouco compreendido pelas pessoas importantes da minha vida, e no fim precisei colocar algumas paredes, mudar a planta da casa, sabe?, para me tornar alguém mais adaptado. Em 2017, quando saí da empresa em que trabalhava, resgatei a musa adormecida. Aliás, o mais provável é que tenha sido ela a me resgatar. Hoje, perto dos 40, posso dizer: pouca coisa dá mais prazer do que derrubar paredes dispensáveis.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
Minhas maiores influências são Clarice Lispector e Wislawa Szymborska. Não tive muita dificuldade em encontrar um estilo próprio, até porque, em 2007, da primeira vez que a poesia voltou para minha vida, veio como quem sai de um sono profundo: com a pressa típica dos jovens, a irreverência, como quem quer aproveitar o tempo perdido, como quem tem (ou melhor: acha que tem) todas as respostas para suas perguntas. Quando, dez anos depois, a poesia voltou pela segunda vez na minha vida, sinto que voltou mulher. Um tipo de erupção que demora. Sem tanta pressa, ainda com muitas perguntas, mas agora com poucas respostas.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Vou recomendar quatro, pode ser? Fundamentos de Ventilação e Apneia, de Alberto Bresciani; Desterro, de Camila Assad; Nenhuma poesia, de Diego Pansani; e Água Indócil, de Anna Clara de Vitto. Tem muitos outros que gostaria de recomendar… mas sei que já ultrapassei o número de livros que pede a pergunta. Agora, resumindo, o que gosto sobre cada um deles são coisas distintas: no caso dos livros da Camila e do Diego, por exemplo, que venceram o Proac, gosto da ousadia do projeto de ambos, e como seus poemas seguem irreverentes, sustentando do começo ao fim o conjunto de tapa na cara, cada um na sua temática. O conjunto é muito bem desenhado. O da Anna fala com meu lado mulher ferida (que mulher nunca foi ferida?), enquanto as emoções da água fluem, como nos ciclos femininos. O de Alberto, por outro lado, fala com meu lado bicho, meu lado instintivo, com belíssimas imagens, a maioria doce, suave, de entrega e respiração lenta.