Carol Sakura é escritora e roteirista, doutoranda em Letras pela UFPR.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Nunca fui uma pessoa matinal. Passei anos lutando com os primeiros ponteiros do dia. Para a escola, eu despertava sempre dez minutos antes de fecharem os portões. Eu realmente corria desesperada todos os dias para lá. A maternidade é o que me desperta mais cedo atualmente. Mesmo assim, o meu ritual favorito é o café da manhã, nada é mais afetivo do que permanecer na mesa com uma xícara na mão. Beber café é uma das minhas memórias mais antigas. Lembro que quando bem pequena eu tomava o resto de café que minha mãe e meus tios deixavam nas suas xícaras depois que saíam da mesa. Hoje percebo que isso é um tanto nojento. O almoço eu aceito que seja rápido, mas fico triste se preciso apressar minha xícara. Finalmente, depois disso, eu reúno um punhado de coragem para começar a trabalhar. Tento cumprir alguma meta diária. Vamos lá, pelo menos umas duas páginas, eu digo a mim mesma. A verdade é que sou uma procrastinadora esplêndida.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sempre me senti mais produtiva à noite, mas a maternidade (ela de novo) me faz ser mais assertiva durante o dia. Se pudesse escolher um momento favorito no dia, acho que escolheria escrever após o almoço. Nunca tive rituais e sou muito preguiçosa. As ideias, em si, construo muito rapidamente, são relâmpagos. Depois fico gestando elas por um tempo, para só então retomá-las. Sinto que tenho dois processos, um deles é criar, pensar sobre o que escrever, outro é a escrita em si. O primeiro acontece longe da mesa, fica na minha cabeça, nasce enquanto amamento meu filho, quando escuto música. Algumas vezes saio correndo do banho para anotar alguma ideia, algo que me vem como uma ânsia, uma coisa que será disforme, a princípio, e que depois vou desenvolver. Quando podia sair de casa, especialmente quando pegava ônibus, nadava e caminhava, era quando nasciam ideias para enredos. Parece que preciso ser contaminada pelo mundo para escrever. Quando sento pra escrever, pra valer, eu gosto de ter algo sempre pra beber. Pode ser um chá, água ou, eventualmente, vinho.
Para a escrita acadêmica eu gosto de separar um tempo diário para escrever e estudar. Alguns projetos que dependem de editais costumam ser guiados por cronogramas apertados. Mas a literatura é bem diferente pra mim. Acho que isso demonstra como meus processos são confusos e emocionantes como eram as minhas chegadas no colégio.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Acabo escrevendo em períodos concentrados, muitas vezes sob pressão e lutando contra certos prazos. Como isso acaba dando certo eu não mudo de atitude. Como toda procrastinadora esplêndida, eu sonho com metas diárias e com uma grande produtividade. Passo, também, por grandes períodos sem escrever. Aí eu penso que foi tudo sorte, que não tenho talento, que não vou conseguir escrever novamente e por aí vai. Então surge um projeto, edital, um compromisso que me provoca e eu acabo criando algo rapidamente.
Sem esquecer que sou uma mãe recém parida (vou ser sempre), nem meu banho consigo programar bem. Tenho lutado para colocar algumas metas acessíveis: “hoje não faço nada mas amanhã vou terminar aquela ideia, pelo menos pensar um final”; “hoje eu quero revisar, pelo menos, a primeira parte”. E anoto muito, anoto frases, rastros, faíscas de coisas que surgem enquanto amamento, por exemplo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Me considero muito rápida para criar uma primeira versão de algo. Não consigo passar muitas horas escrevendo, sinto que tenho energia para umas duas horas de atenção produtiva. Quando tenho uma ideia eu preciso dar uma forma pra ela, senão eu a abandono. Depois retorno, releio, reescrevo. Mas é muito importante criar algo meio no susto, algo com forma, do contrário a chance de deixar de lado é muito grande. Tenho dificuldade de retomar ideias inacabadas, parece que aquilo não me serve mais. É uma falha minha.
O processo de pesquisa aparece mais quando escrevo academicamente. Para a tese, eu fico muito tempo lendo, fazendo fichamentos, selecionando citações e ideias. Só então eu reúno tudo para montar o texto. Deveria ser mais insistente com meus textos literários como sou com os acadêmicos, talvez.
Como eu me movo para a escrita? Acho que fico pensando, ruminando ideias, por muito tempo. Aquilo vira uma obsessão, até sair pela primeira vez no papel. Depois é retomar e lapidar.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Me assusto. Ainda preciso descobrir como lidar com tudo isso. Sou procrastinadora, meio preguiçosa e me boicoto bastante. Isso tem relação com minha criação conturbada. Tive uma fase em que eu mentia compulsivamente mais ou menos aos onze anos. Agora mentir serve para criar ficções.
Tem algumas coisas que me motivam e me ajudam muito. A principal delas é meu digníssimo esposo e amigo, Walkir. Acho que ninguém no mundo acredita tanto no meu talento como ele. Quando eu não acredito em mim, quando estou enrolando, travada, penso nas coisas que ele me diz. Meus amigos também me incentivam muito. A gente precisa segurar na mão do amor e não escutar os monstros embaixo da cama.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Tenho uma grande ansiedade em terminar meus projetos. Isso prejudica minha paciência para as muitas revisões que costumam ser necessárias. Quando começo a reler, vou reescrevendo e cometendo novos erros. Isso sempre me lembra de quando fiz um resumo, quando bem nova, e minha mãe pediu para eu reler para ver meus erros. Ao invés disso, eu mudei tudo que tinha escrito, ela me repreendeu mas não adiantou, eu continuo errando e transformando, para o bem e para o mal. Eu preciso mostrar para outras pessoas tudo que escrevo, sou bem insegura. Até essas respostas, provavelmente.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
A tecnologia me ajuda a não perder o que escrevo. Eu sou muito bagunçada, no papel acabaria jogando fora por acidente. Acho que já aconteceu. Deixo meus textos na “nuvem” e gosto disso, porque posso anotar algo pelo celular de qualquer lugar. Já perdi textos no papel e em computadores que pifaram. Gosto de ter tudo impresso, também, mas no processo eu encontro vantagens nos meus arquivos online.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Eu tenho devaneios agudos, estou sempre criando alguma micro alucinação quando fico sozinha. Isso já foi um problema, principalmente porque minhas histórias tendem para o pesadelo. Já criei certos devaneios absurdos que me assustaram. Nem sempre são ideias úteis, mas possuem seu valor. Eu também acredito muito em referências, em repertório. Acredito que ver e ouvir coisas diversas, filmes, livros, quadrinhos, teatro, ajudam a criar conexões criativas. Uma boa história sempre conversa com outras histórias. Conversa com as nossas histórias. Acho que histórias podem nascer do nada, podem surgir de seu olhar atento para o que está ao seu redor. É pegar algo, aparentemente, inútil e transformar em algo novo. A escrita me ajuda a não sufocar nas minhas divagações, me ajuda a canalizar pensamentos, é também o que eu busco.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Posso dizer que agora eu confio na minha escrita, acredito que posso contar histórias. Acho que aproximei o que escrevo de quem eu sou, e isso foi libertador. Sou mais sincera. E se eu pudesse voltar, diria para a carolzinha escrever mais, pelo menos uma linha todos os dias. Ou seja, o mesmo que diria pro meu eu de hoje.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho projetos bem embrionários (opa, maternidade ecoando). Um texto mais longo que acho que será um tipo de pequeno romance ou novela (meu primeiro!). Acho que será o meu projeto mais audacioso até hoje. Tenho algumas ideias para um novo livro de contos. Também tenho duas ideias para produzir em quadrinhos. Está tudo em fragmentos que espero não abandonar. Oremos. Mas o que tenho de verdadeiramente consistente, e que precisa da minha dedicação, é minha tese de doutorado. Acho que estou cheia de ideias literárias justamente porque deveria me dedicar para minha tese.
Um livro que eu gostaria de ler, algo que tem ecoado em mim, é um texto da perspectiva animal. Nunca vi coisas sinceras desse ponto de vista e que não sejam só uma antropomorfização dos animais em “qualidades humanas”. Há muito bicho vestido de gente mas pouco bicho sendo bicho mesmo. Será que é possível escrever como bicho? Será que não lembramos mais como é ser bicho?