Carol Pitzer é dramaturga.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Gosto de acordar cedo, independente de compromissos com o mundo externo. Meu dia só começa depois de uma sessão de meditação e um bom café da manhã. Meu cérebro e meu corpo levam um tempo pra acordar e essas atividades fazem com que eles comecem a funcionar de forma apropriada. O mundo em que vivemos nos bombardeia com muitas informações e velocidade aceleradíssima. Começar o dia obedecendo meu próprio ritmo me ajuda a sobreviver ao caos que tentará se instaurar nas horas subsequentes e exercitar a capacidade de transformá-lo criativamente.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Gosto muito de estudar de manhã e de escrever à noite. Logo ao acordar, sinto que meu cérebro está pronto para receber novas informações e acumular referências. Depois disso, preciso de um tempo de “descanso intelectual”. Durante o dia, executo tarefas ordinárias e entro em contato com pessoas no mundo. Então, quando chego em casa à noite, tomo um banho e sento com uma taça de vinho ou uma xícara de chá quentinho pra escrever. A sensação que eu tenho é que ao final do dia a mistura da teoria adquirida pela manhã com os atravessamentos do mundo durante o resto do dia fazem com que o processo criativo aconteça.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Tento manter uma rotina de trabalho – o que não significa necessariamente uma rotina de escrita. Meu processo criativo tem fases e aprendi a respeitá-las. Não podemos deixar que a lógica produtivista atravesse o trabalho artístico, transformando-o num outro trabalho qualquer com metas objetivas a serem atingidas. A mente criativa possui um tempo próprio para fazer conexões. A lógica não é do acúmulo quantitativo, mas qualitativo. Me lembro de quando morei fora do Brasil e fui a Paris por três dias. Eu queria visitar todos os museus, ver todos os pontos turísticos da cidade. No primeiro dia, depois de uma hora no Louvre, tive uma dor de cabeça fenomenal e voltei pra casa. Era muita referência sendo acumulada e meu cérebro deu pane. A partir desse dia entendi que valia mais a pena passar uma hora admirando um único quadro que me chamou atenção por uma razão inexplicável do que um dia inteiro vendo todas as obras de um museu famoso. Passei a aplicar isso ao meu processo criativo: não é a quantidade de material pesquisado ou de referências acumuladas que fará com que a escrita aconteça. É preciso respeitar o tempo de processamento do cérebro. Às vezes sair pra encontrar amigos e conversar numa quarta-feira à noite é o ingrediente que falta para acender a fogueira criativa que estava se acumulando.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Quando um tema ou uma história surgem, sempre sinto a necessidade de pesquisá-lo mais a fundo antes de iniciar a escrita. A própria obra aponta o campo de pesquisa: algumas são mais imagéticas, outras mais teóricas. Como minha formação inicial é no campo do audiovisual, filmes muitas vezes se tornam disparadores de pesquisas minhas. É bonito ver o processo criativo tomar vida. Uma boa noite de sono às vezes pode ser a chave pra engatar o início da escrita: diversas vezes acordei de madrugada com os personagens sussurrando falas no meu ouvido ou com a imagem de uma cena pregada no fundo da cabeça. Quando há essa organicidade, é o próprio processo te contando que a fase da pesquisa acabou e é hora de iniciar uma rotina de escrita. Então, substituo as manhãs de pesquisa por manhãs de escrita e começo o dia relendo o que foi escrito na noite anterior, jogando muita coisa fora e abrindo novas frentes possíveis para a escrita noturna. Uma coisa que sempre ouvi e achava besteira é que o escritor precisa jogar muita coisa fora antes de chegar ao material final. É verdade: mas para isso precisamos ter tempo de reescrita. Uma vez que escrevemos as coisas da forma mais óbvia possível, é possível aprofundar camadas, jogar fora e pensar em outras maneiras de contar a mesma coisa. Mas é preciso materializar o que é ruim pra se livrar disso. Escrever e jogar fora para que a poesia surja no final.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Escrevendo. E às vezes parando de escrever, aceitando que o processo de procrastinação pode ser o cérebro pedindo uma pausa para produzir insights. Ao mesmo tempo, prazos são fundamentais para que um processo criativo se estruture. Prazos flexíveis são melhores, especialmente quando não tenho ciência dessa flexibilidade. O que quero dizer com isso? Que preciso de um prazo definitivo para estruturar um projeto do início ao fim e concretizar essa escrita, mas que por acabar finalizando tudo em cima da hora, um segundo prazo para reescrita é ideal para “apertar os parafusos soltos”. Há também o tempo do próprio processo. Às vezes precisamos deixá-lo na gaveta para sermos capazes de olhar pra ele por outro ângulo. A verdade é que cada projeto é único e tanto o medo quanto a ansiedade são ingredientes essenciais para fazer com que eles aconteçam. Se não sinto medo, o que está sendo escrito não tem verdade o suficiente e é melhor recomeçar a escrita do zero.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Minha formação como dramaturga me viciou na opinião do outro. Sinto a necessidade de compartilhar meus textos para saber se estão prontos. Essa troca é fundamental pra mim, ela é importante para me fazer entender sobre o que estou escrevendo. Muitas vezes começo um processo achando que o tema é um e após compartilhá-lo percebo que estava escrevendo sobre questões minhas muito mais profundas. Se outras pessoas não me apontassem isso durante o processo de escrita, seria difícil me dar conta dessas questões sozinha e me aprofundar nas mesmas. O outro é sempre um espelho que vai ver questões dele na sua obra e isso me ajuda a descobrir outras camadas do meu próprio discurso que eu mesma não tinha sido capaz de ver. Geralmente mostro os textos em momentos de bloqueio criativo porque sei que vão surgir fios que posso puxar e abrir outras frentes de pesquisa na obra. Mas também preciso saber quais críticas aceitar e quando devo me manter fiel a alguma ideia fundamental que está no texto – pode ser uma frase, uma imagem, um personagem, uma ação… Muitas vezes não tenho uma explicação racional no momento da escolha, apenas sei que aquilo precisa ficar. Somente com a obra pronta consigo compreender a importância dessa escolha.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Durante a parte de pesquisa, a maioria das minhas anotações são à mão em um caderno. Os insights que surgem também anoto em um bloquinho para que não se percam. Mas os primeiros rascunhos de cena geralmente escrevo no computador. Em dado momento, com a peça relativamente estruturada, preciso imprimi-la e rabiscar no papel. Tem um lado meu que ainda é muito analógico e precisa ter as folhas na mão. Geralmente há um momento em que espalho toda a peça impressa pelo chão ou colo as folhas pela parede. Sinto essa necessidade da espacialização da obra para compreender a dimensão de cada cena, perceber padrões de repetição de palavras ou ritmos instaurados para dar profundidade aos mesmos. Essas são coisas que tenho dificuldade de perceber lendo o texto página por página numa tela de computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias vêm das minhas vivências, dos meus encontros, das minhas conversas, das minhas dores. Preciso estar em contato com o outro para escrever. Preciso estar no mundo e ser afetada por ele. As ideias surgem como um incômodo monstruoso, que muitas vezes não sei do que se trata. Um nó na garganta. Aí sento para escrever e percebo que tem um texto novo surgindo em mim.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Conhecer meu próprio processo me ajuda muito, perceber que o processo criativo tem um tempo próprio e aceitar isso. Tentar acelerar a escrita é como aumentar a temperatura do forno quando fazemos um bolo: pode até parecer que deu certo, mas o resultado será inconsistente. Aprender isso me deixa mais tranquila para lidar com meus medos e ansiedades, me ajuda a manter a disciplina e escrever um pouquinho todo dia, mesmo que seja para jogar tudo fora e começar do zero – o que resta é a ideia central, sendo reorganizada até chegar à sua forma final. Uma vez que um projeto é finalizado, ele é aquilo. O ponto final é necessário. A pessoa que escreveu meus primeiros textos não existe mais, mas é bonito ver os traços de ingenuidade que ficam marcados nessa primeira escrita. É como um retrato da artista que fui. Meu processo está registrado em cada obra minha e penso que continuará mudando ao longo dos anos. O que escrevo hoje é um recorte de quem sou hoje e tenho certeza que verei traços de imaturidade na minha escrita atual daqui a cinco ou dez anos. E isso é bonito também. De certa forma, nos dá uma medida do quanto e em que direção crescemos.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho um projeto engavetado sobre mulheres artistas que ainda não consegui amadurecer o suficiente para trazê-lo à tona. Não sei se sou eu ou ele – ou ambos – que precisamos amadurecer, mas ainda não consegui colocá-lo de pé. Sigo na pesquisa até que ele sopre ao meu ouvido que está pronto.