Carol Chiovatto é tradutora e escritora, mestra e doutoranda em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês na USP.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não tenho uma rotina matinal exata. Depende mais dos meus prazos. Mas em geral eu deixo para de manhã, assim que acordo, o que eu tiver para fazer de mais urgente. Se eu pegar firme no trabalho logo cedo, provavelmente terei o dia muito produtivo. Caso contrário, é um esforço muito maior pegar no ritmo. Isso vale tanto para a escrita acadêmica quanto a ficcional, e mesmo para tradução e coisas desgastantes como responder e-mails.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu gosto muito de trabalhar de manhã. A manhã é curta e, se rende bem, incentiva a trabalhar o resto do dia. Em geral, produzo em maior quantidade à tarde, mas só se a manhã tiver tido qualidade. Assim eu sou arrastada pela onda de euforia que se forma. Não tenho muitos rituais para a escrita, não. Eles só atrapalham, porque eu perco tempo com eles em vez de enfim sentar e escrever. No caso da escrita ficcional, eu só continuo de onde parei, no máximo relendo alguns parágrafos da vez anterior para ligar a chavinha daquela narração (lembro aqui que isso só funciona porque é MUITO RARO eu passar mais de uma semana sem escrever). No caso da acadêmica, é um pouco menos livre: eu vejo no que estou trabalhando no momento, releio quotes que já separei e os tópicos que preciso abordar e solto a mão.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
No caso da escrita ficcional, eu escrevo quase todos os dias, mas tenho picos de períodos concentrados, quase febris, nos quais chego a 7 ou 8 mil palavras num único dia. No caso da escrita acadêmica, acho que pela própria natureza do ofício, eu tenho longos períodos de leitura, anotações e separação de citações, alternados com alguns períodos de pico na escrita, quando tudo se junta para formar aquele todo uniforme do texto acadêmico.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Geralmente, eu postergo o período da escrita até o limite. Sempre acho que não li o suficiente, que vai faltar alguma referência muito importante, que minhas reflexões precisam amadurecer. Isso não é muito saudável. Mas eu tendo a procrastinar tarefas que exigem muito, porque sei que fico drenada. Escrever a tese é uma delas. Mesmo assim, a reflexão que fazemos em meio às anotações de leituras enriquecem muito e fazem com que eu tenha um pensamento mais ou menos sólido antes de transpô-lo para o papel. Claro, eu descubro coisas conforme escrevo a análise, então não posso ficar tempo demais sem escrever, sob pena de não conseguir amarrar tudo depois. Não sei se isso faz sentido falando desse jeito tão abstrato. Vou dar um exemplo: no momento estou trabalhando com a análise de panfletos ingleses sobre bruxaria, a maioria escritos no século XVII. É uma seção de um capítulo da minha tese. Eu fichei os panfletos, fiz uma série de anotações, descobri onde poderia fazê-los dialogarem e onde precisaria demonstrar suas particularidades. No entanto, só quando fui escrever as análises em si, percebi que eu precisava explicar o que eram esses panfletos e como funcionavam dentro da cultura inglesa no período (algo que me fez buscar mais leituras), e, em seguida, o quanto conseguiria ligá-los bem à análise das obras ficcionais contemporâneas. Existe uma euforia nesse processo todo, que me leva a escrever mais e mais rápido nessas ocasiões. Ah, como no doutorado sou bolsista da FAPESP, eu tenho mais ou menos um prazo para apresentar capítulos novos, pois eles exigem relatórios anuais. No começo, achei que seria uma pressão forte demais, mas acabei me acostumando e agora gosto de ter tido esse incentivo à escrita desde o primeiro ano. Quando a gente escreve um texto mais ou menos final, surgem muito mais perguntas do que quando nos mantemos só no plano das anotações. E essas perguntas são as responsáveis por avançar a pesquisa e aprofundá-la.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu choro hahahaha Sei que é uma resposta besta, mas quando isso acontece eu só choro um pouco. Não sei lidar muito bem com não conseguir escrever, pois é algo que faço desde pequena, em termos de ficção. O desafio de transpor o hábito da escrita ao plano acadêmico é diário. E é difícil mensurar quando estamos lendo mais porque precisamos de mais material e quando estamos só adiando a parte incontornável de transformar toda aquela leitura numa tese. Às vezes sou apanhada num vórtice de obrigações burocráticas do mundo acadêmico e não fico muito à vontade para escrever. Porém, quando vem o prazo bater na porta, eu me vejo obrigada a correr. É uma pressão, e eu tendo a desmontar, mas só depois de entregar algo pronto. Então, no fim, acaba compensando o estresse. É uma coisa linda ver a tese surgindo, ali, diante dos seus olhos, onde antes não havia nada. Tento me ater a isso. Antes não tinha nada, agora são x páginas. Antes tinha x páginas, agora tenho mais duas. Antes faltava a seção sobre isso, agora a escrevi. Pequenas vitórias.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu reviso muitas vezes. Mostro a outras pessoas, sim. No caso de artigos acadêmicos, posts de blog, artigos de jornal, meu marido lê antes de eu enviar ao editor/ revisor. No caso de seções da tese, ele também as lê antes de eu enviar à minha orientadora. Tanto quanto eu leio os escritos dele. Com dois acadêmicos em casa é fácil ter essa troca. Temos interesses parecidos, mas não pesquisamos as mesmas coisas, então acaba havendo um enriquecimento mútuo nesse cumplicidade. Textos ficcionais eu envio a alguns leitores beta, dos quais meu marido também faz parte. Cada um observa um tipo de coisa diferente, então acabo tendo feedbacks muito interessantes.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo à mão. O pensamento é muito mais rápido do que a escrita, assim, e isso me dá tempo de refletir melhor sobre o que estou pondo no papel. E quando vou digitar, já faço uma edição. Desse modo, o texto sai bastante final, precisando de poucos ajustes. Até escrevi uma pequena crônica sobre isso (disponível aqui).
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias vêm de tudo. Honestamente. Leio de tudo um pouco, não-ficção, ficção insólita, ficção contemporânea. Procuro autores os mais diversos possíveis, de diferentes origens, fora do eixo Europa-Estados Unidos. as ciências humanas são muito relacionais, e às vezes estou lendo uma notícia de jornal sobre a mudança climática e tenho algum insight quanto à minha pesquisa, que é sobre bruxas enquanto estereótipo do feminino transgressor. Outro dia, lia o livro de um autor brasileiro de quem gosto muito, Tupinilândia, do Samir Machado de Machado. Não tinha nada a ver com a minha pesquisa, mas as digressões de um capítulo me deram uma ideia luminosa sobre como amarrar as duas pontas da minha tese, a história e a contemporânea. Eu vejo muitos acadêmicos que preferem se ater somente a leituras referentes à própria pesquisa, mas descobri bem cedo no mestrado que isso me atrapalharia. Minha cabeça funciona como uma pessoa feliz da vida numa biblioteca imensa, puxando referências de prateleiras aleatórias e unindo-as de um modo que não parecia possível à primeira vista. E boa parte da minha ficção envolve bruxas ou a questão do feminino transgressor, e descobri que explorar ficcionalmente o material de minha pesquisa acadêmica ajuda a esclarecer muita coisa na minha mente e me permite transmitir esse conhecimento de um modo mais palatável na escrita acadêmica.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Mudou apenas que hoje em dia tenho mais consciência de como funciono e não pressiono demais quando não estou conseguindo escrever e não paro de escrever por nada se estou num momento em que as ideias andam fluindo bem. A Carol do passado era um pouco rigorosa demais consigo mesma e deixava pouco espaço à autocrítica. Aprendi a editar textos só depois de entrar na academia. Isso me ajudou na ficção. Antes, eu via um problema estrutural num livro meu, jogava inteiro fora e reescrevia do zero. Desnecessário.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho uma infinitude de projetos, tanto ficcionais quanto acadêmicos. Não tenho capacidade de listar. No plano da ficção, tenho um projeto imenso que compreende uns bons dez livros de escrever coisas passadas no Brasil colonial e imperial. E gostaria de ler mais sobre isso, porque o que existe é pouco. O fato de me voltar tanto a leituras estrangeiras me fez ver que temos um material riquíssimo praticamente inexplorado.