Carlos Palombini é professor de Musicologia da Universidade Federal de Minas Gerais.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Levanto, saio do quarto e vou para a sala, onde o computador está ligado. Leio o que escrevi na noite anterior e refaço. Se houver escrito um parágrafo novo, foco nele. Se não, retomo o texto inteiro ou a última seção, mudo palavras, reordeno frases, altero construções. Qualquer texto que eu tenha dado por pronto terá passado por esse processo dezenas de vezes. A certa altura, vou até a padaria, tomo um café com leite, como um pão na chapa, fumo alguns cigarros e retorno ao trabalho.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Trabalho melhor pela manhã. Após o almoço é difícil. Começa a melhorar sucessivamente ao por do sol, a partir das 21h, e madrugada adentro. Quando adolescente li e reli, em tradução inglesa, as Palestras sobre o I Ching, de Richard Wilhelm, especialmente a primeira, “O círculo dos eventos: os oito trigramas básicos do Livro das mutações”.[1] Há ali uma poética dos períodos do dia, dividido em oito segmentos de três horas, que não me sai da memória subconsciente. Não tenho ritual preparatório, e acho a ideia tão impertinente quanto fazer orações antes de ingerir alimentos. Por outro lado, todo o processo da escrita não deixa de ser um ritual em si mesmo, mas procuro livrá-lo de tudo o que não seja essencial.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Procuro dedicar tanto tempo quanto possível à escrita, mas infelizmente não lhe posso dedicar o tempo contínuo que gostaria. Vivo em função dela. Um texto começa, progride, para, encontra terrenos lodosos, pavimentados, de todos os tipos, necessita ser deixado de lado, respirar, ser retomado. E depois vem outro. É o texto quem impõe sua rotina, em conflito com os fatos do dia a dia. Isso resulta em obrigações postergadas, que se acumulam e cedo ou tarde necessitam ser enfrentadas. Daí os solavancos.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Não compilo notas: escrevo. Por outro lado, gosto de conceder entrevistas por escrito. Com seu caráter de diálogo, elas me levam a ouvir reverberações, reelaborar ideias, organizar dados, realizar sínteses. Dificilmente escrevo pelo puro prazer da escrita, sem pensar na técnica, ao ponto de achar que isso seja um defeito. Sempre tenho um texto em vista e, frequentemente, um veículo de publicação. Nunca é difícil começar, pois é quando tudo são possibilidades. Não me movo da pesquisa para a escrita porque a escrita é a pesquisa. A escrita organiza raciocínios para dar corpo a intuições que necessitam ser demonstradas. E a compilação de dados — pesquisa no sentido mais prosaico do termo — vem em seu auxílio. Acredito na ideia de Heiddeger: “O questionamento trabalha na construção de um caminho”.[2] Esse caminho requer habilidades distintas em diferentes trechos. Pode ser questão da busca de fontes e dados, da organização desses elementos, da realização de uma síntese conclusiva.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
As travas são resultado da exaustão. Elas requerem repouso, distrações. Por exemplo, uma caminhada, um jantar, a leitura de notícias, um chá, um café, um vinho, o grupo do WhatsApp, o Facebook. Projetos longos não geram necessariamente ansiedade. O que as gera são projetos postergados. As expectativas são as melhores possíveis, mas, como sou eu quem as estabelece, não há medo envolvido. Trabalho a longo termo. Inclusive, para a posteridade, se me perdoa a presunção. Já me vi em diferentes papéis. Já fui aquele que explicou a música concreta a pesquisadores de língua inglesa. Sou aquele que apresenta o funk carioca a leitores da língua portuguesa. A próxima etapa sintetizará as precedentes. As expectativas alheias são de fato um problema, principalmente num tempo de erudição neoliberal, em que tudo precisa ser explicitado, sublinhado, pré-formatado e não há lugar para subentendidos. Tudo isso é o contrário do que entendo por escrita.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Meus textos são revisados diariamente: a revisão é o processo de escrita, que por sua vez é a pesquisa. Muitas vezes os mostro, peço opiniões, faço perguntas, incorporo sugestões. Desta entrevista, por exemplo, você vai receber agora a terceira versão, após a segunda, que foi completamente refeita em função de discussões com Adriana Facina, com tenho escrito frequentemente.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Não escrevo à mão desde o início de meu doutorado, nos idos de 1989. Detesto o Word e os padrões deploráveis de tipografia que ele estabelece, catastroficamente piorados pelas regras da ABNT, mas não posso me dar ao luxo de voltar a usar TeX ou de seguir o Chicago Manual of Style pois escrevo na periferia do mundo. Para a coleta e uso de fontes, a rede mundial tornou-se indispensável, sobretudo porque o país é enorme, as grandes bibliotecas são raras e seus catálogos nem sempre são completos ou dos mais amigáveis. Mas não é só isso. Quando reconstituí e publiquei um manuscrito inédito de 1942,[3] foi graças ao Google que encontrei as fontes de diversas citações não indicadas no original datilografado. E pude a seguir obtê-las, sem exceção, na Biblioteca Nacional Francesa ou através de antiquários em linha.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Minhas ideias vêm do que li, do que vivi, do que debati e, sobretudo, de um modo peculiar de observar as coisas, de transformá-las em objetos a partir de uma intencionalidade única. Nesse processo, a intuição e a razão dominam, tanto quanto o léxico, a sintaxe e a écriture no sentido de Roland Barthes.[4] Sou completamente refratário às escritas emocionais. Não cultivo hábitos para me manter criativo, a não ser o de alimentar minhas idiossincrasias — um hábito de vida. Acho que a descrição seja o teste da escrita, daí meu amor pela obra de Francis Ponge. Descrever um objeto é um desafio tão técnico quão criativo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Não acho que tenha mudado muito, mas certamente tornou-se menos reativa e, paradoxalmente, mais focada, sem perder seu caráter ensaístico, digressivo. Ela continua a ser experimental. Quanto à tese, diria: “vá em frente”. Foi lá que aprendi tudo, inclusive a usar um editor de texto. Comecei pela técnica da escrita automática: colocava à mão no papel o que me vinha à mente. A partir daí, virei-me com as referências de que dispunha. Segui uma tradição antiga da academia inglesa, já fora de moda em 1989: a de que as boas ideias dependem de uma vida social, de boa comida e boa bebida, de caminhadas, de esportes e, sobretudo, de conversações estimulantes. Procuro mantê-la.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Há vários: um artigo sobre “Na Faixa de Gaza é assim”, do MC Orelha, com Adriana Facina; um livro sobre proibidão, com transcrições das muitas entrevistas que realizei ao longo dos anos; uma edição dos diários de minha bisavó em suas viagens de Porto Alegre ao Rio de Janeiro, aos Estados Unidos e à Europa nos anos 1920; um roman à clé de minha própria vida; um dicionário dos miados de meus gatos. Quanto aos de outros autores, eu teria de os ter lido todos para pedir outros.
[1] Richard Wilhelm, Lectures on the I Ching: Constancy and Change, trad. Irene Erber (Princeton, 1979).
[2] Martin Heidegger, “A questão da técnica”, trad. Emmanuel Carneiro Leão, Ensaios e conferências, seg. ed. (Petrópolis, 2002), 11.
[3] Pierre Schaeffer, Essai sur la radio et le cinéma: esthétique et technique des arts-relais, 1941–1942, édition établie par Sophie Brunet et Carlos Palombini (Paris, 2010).
[4] Roland Barthes, Le Degré zéro de l’écriture (Paris, 1953).