Carlos Orfeu é poeta, autor de Invisíveis Cotidianos (Literacidade, 2017).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Acordo, abro a janela e contemplo o fluxo da paisagem. Faço o café e enquanto a água ferve, ouço algumas músicas que me ajudam amanhecer como: The Mission, The Sisters of Mercy, Bauhaus, Joy Division, The Smiths e Siouxsie And The Banshes – músicas que chamo de dark de vanguarda. Ouço, vejo e fico à espreita do diáfano acontecer das mínimas coisas. O rumor das folhas, o silêncio dos musgos, o parto do galo para desentalar o sol de si e acordar o canto das aves buscando alturas.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não possuo rituais, qualquer hora do dia é hora da escrita. O desejo atiça o escrever. Escrevo e leio no trânsito, no trem, no ônibus. Quando retorno do trabalho exausto, sempre há uma ideia a me morder como cão para ser escrita. Pego um papel e escrevo-a para depois talhá-la melhor como diz Edmond Jabès “Tu és aquele que escreve e é escrito”.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Todos os dias tento adentrar a morada da escrita. Faço muitas anotações enquanto leio. Anoto ideias no transver da leitura, mesmo quando estou no ônibus ou no trem, dou um jeito de fazer minhas anotações, se não tiver um papel. Anoto na mão, conta de luz, propagandas. Meu cotidiano é bem caótico: pouco me planejo para pagar as contas e cuidar dos assuntos. Os horários que consigo cumprir são os do trabalho. Submerso nesse caos vou escrevendo, tentando produzir e lendo. Ler é um de meus vícios, não saio de casa sem um livro como companheiro desse caos.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Costumo ser intenso diante da carne do poema. Leio em voz alta, escuto sua respiração. Reescrevo muito. Gosto de escrever à mão e unir pulsação ao fluir da escrita. Anoto fragmentos que me assombram e o que me afeta. Reúno tudo que me afeta e lhe dou de comer no poema.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Já senti muita angústia como se elas me fossem travas. Mas com o fluir do tempo, fui domando essa angústia. Passo meses sem escrever um poema. Mas, como disse anteriormente, faço muitas anotações e procuro intensificar a leitura no período (necessário) das travas. Intensifico não somente a leitura de livros mas também a leitura do mundo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Faço muitas revisões. Peço a escuta de minha companheira, a poeta Wanda Monteiro. Se ela diz: Trabalhe mais nesse poema.. esse poema ainda se move. Escuto e trabalho mais nele. Além de uma ótima poeta ela é rigorosa, aprendo muito com ela; a escuta dela é muito importante para mim assim como a escuta de alguns amigos que fazem literatura. Particularmente penso que o poema nunca está pronto, o leitor completa o poema na leitura, na fala, nos afetos da palavra.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo sempre à mão, depois passo para o Word. Tenho muitos textos plantados em cadernos guardados no meu armário. São a semeadura de minha lavoura. Pego um pacote de A4 e reescrevo o poema na pele do papel. Tenho pacotes de A4, às vezes, com um único poema e o mesmo poema escrito e reescrito nas 100 folhas. Leio e releio o texto inúmeras vezes. Às vezes, utilizo também o celular para não perder a ideia.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Leio muito, minhas ideias partem das leituras. Gosto de observar as minúcias, os pequenos nadas saltarem para dentro das retinas como cardumes. Escrevo com o corpo – todos os sentidos abertos como janelas. Adentro rostos enquanto caminho outros corpos inumanos e humanos. Sou atravessado pelo que vejo: é um diálogo ótico e sonoro. Como diz Merleau Ponty: O olho realiza o prodígio de abrir à alma o que não é alma, penso que as pequenas coisas me nutrem. O chão é meu céu. O barro, quintal, asfalto. Escrevo o cheiro dessas cores e suores.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Muita coisa mudou. Sinto que hoje estou mais seguro, com mais paixão pela leitura e escrita. Busco a clareza e a concisão. Convivo mais com os poemas. Não tenho mais aquela angústia de quando principiei a escrever. Mas luto com as ansiedades constantemente. Se eu pudesse falar com o antigo inquilino desse corpo, tomaríamos uma cerveja e falaria para ele que tivesse mais calma. Lhe diria: Ouça os poemas, a respiração e o tempo de cada um deles.
A leitura não é só dos livros, é dos mundos que transitamos. Temos que observar as pequenas coisas – desde o deserto de um copo até e as madeixas das árvores. É preciso mergulhar nas veias abertas do poente. Como diz Heidegger: Ser no mundo enquanto ser com os outros, é mais ou menos assim, é o Ser-Com.
Como disse uma vez o camarada Georges Bataille, eu afirmo: “Hoje, sinto-me livre para fracassar”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Estou produzindo um livro de poesia e desejo trabalhar num livro de contos. Sobre o livro que desejo ler, como disse Kafka numa carta a Oscar Pollak, em 1904: Um livro tem que ser como um machado para quebrar o mar de gelo que há dentro de nós. É esse livro definido por Kafka que eu desejo ler.