Carlos Neves é escritor, músico e fotógrafo, autor do romance Máscara da invisibilidade.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Sigo uma rotina informal, com leituras rápidas, umas miudezas, leio notícias, posts de amigos, curiosidades, coisas que vou descobrindo assim que acordo. Se estou com algum tempo, leio também uns contos rápidos, coisa pequena mas poderosa – como uns minicontos do Kafka, Dalton Trevisan, Walser (“Absolutamente nada”), Bernhard (“O imitador de vozes”), entre outros destilados –, que vou repercutindo ao longo do dia em filas, ônibus, em qualquer interlúdio. São aperitivos (alguns explosivos), esses contos, e atordoam tanto que às vezes me derrubam. Tenho sempre um livrinho de poesia na cabeceira da cama. Troco sempre que acabo, embora nunca acabe. Difícil anotar alguma coisa quando acordo. Mas se algo me chama atenção, alguma ideia, ponho num bloquinho que tenho no celular. Ou gravo um áudio, se for mais prático. Depois tento relacionar essas anotações aos assuntos que estou escrevendo ou lendo. Me ajuda a localizar o sentido do que vou fazer no dia.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Final da tarde ou começo da noite é o horário que habitualmente escrevo. Se não tenho um prazo para cumprir ou se não tiver algo urgente para entregar, é certo que no final da tarde ou no começo da noite vou escrever. Não sei se é o horário em que trabalho melhor, é apenas o horário em que gosto mais de trabalhar meus textos. De modo geral, não me sinto impedido de escrever se por alguma razão saio dessa rotina. Não sou muito preso a isso, embora siga quase sempre um itinerário mais ou menos igual todos os dias. São hábitos que se instalam por comodismo – não necessariamente por gosto. Sobre rituais, não tenho nada específico ou pensado como tal. Não ouço música quando escrevo (acho que induz o clima da narrativa, para mim, pelo menos, num sentido meio meloso e fora do caminho, digamos, natural do texto). Aprecio o silêncio, não gosto de ser interrompido – mas isso nem sempre depende de mim. Cultivo paciências. O que normalmente ocorre é que antes de começar a escrever dou voltas no assunto, leio e releio diferentes trechos já produzidos, me perco nuns detalhes meio banais, a busca de certas palavras, algum sentido específico ou desconhecido, como se ficasse fazendo cera, literalmente, enquanto vou intuindo ou tomando mentalmente o texto que logo vou começar a escrever. Não sei porque faço isso, é meio involuntário. Mas me ajuda a pôr os motores em movimento.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Se estou trabalhando num romance, como agora, então escrevo todos os dias – sempre que posso. Tento estabelecer uma meta, mas não me prendo a ela, nem me agrada a ideia de atingi-la por que assim se estabeleceu. O mais importante para mim é estar em contato com o texto, burilá-lo, reescrevê-lo, pensá-lo, etc. A meta que me imponho (mas sem seguir à risca) é a de escrever pelo menos uma página por dia. Mas isso é mais uma sugestão, um norte. A ideia por trás é ficar com o texto, conversar com ele durante algum tempo, o tempo de uma página. Isso pode durar uma frase ou dias – em folhas incontáveis. Outra coisa que faço é imaginar quando gostaria que o livro ou o texto estivesse pronto. É uma direção, um caminho. E me ajuda a criar um ritmo de trabalho, a pensar em períodos e a produzir o texto com vistas a alcançar essas etapas. Mas, como disse, não é imperioso, é só um jeito de imaginar uma sequência de coisas que vão acontecer. Se não faço isso, tudo fica meio solto, e a sensação de abandono me toma.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Depois de uma visão, digamos, mais aberta do que estou buscando, tento trabalhar dentro de certos limites, com um fato específico, uma situação bem concreta, e fácil de ser contada. Esse é o jeito que tenho de deixar o texto em pé. Depois que pus no papel, digamos, o “acontecido”, aí começa o trabalho estético – e, sobretudo, o de fundamentar o concreto com abstrações, imaginação e algum delírio. É o entorno vaporoso tomando forma. Faço muitas anotações, coisas que me ocorrem a partir de outras leituras, embora eu não as use de imediato. Apesar de todas as notas, quase nunca as leio antes de escrever. E quase sempre escrevo sem me preocupar com o que li e anotei (fico apenas com a ideia, a visão geral do que estou construindo). Só depois de ter um relato mais claro, e legível, é que vou fazer as minhas consultas e aí, e eventualmente, usar essas anotações.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Acho que tudo isso faz parte de um certo tipo de angústia que, a meu ver, me parecem mais partes do processo que peças que não se encaixam nele. Tento lidar com naturalidade, assumindo e reconhecendo que isso acontece, sobretudo quando está acontecendo. O que implica, é claro, umas boas doses de frustração e angústia. No meu caso, isso acontece de duas maneiras. Nas tarefas fora do âmbito da literatura, é fácil identificar as razões. Geralmente travo ou procrastino quando fico fora do meu eixo, quando não sinto prazer no que estou fazendo. Na literatura é diferente. O que me trava ou me faz adiar um texto é quando percebo algum equívoco ou um erro conceitual na construção da história. Quando isso acontece, as coisas param de fluir. O texto começa a se arrastar, e faz com que eu tenha de ficar forçando muito toda a elaboração, o encaminhamento das coisas. Se percebo isso – e quase sempre percebo –, uso um macete, que não é bem um macete, mas um jeito possível, para mim, de tentar rearranjar as coisas. Volto ao texto, desde o início, releio, reescrevo, tento pensar aquela escritura em perspectiva, refletindo sobre onde é que pensava chegar, o que estava buscando, em face do que estou produzindo e encontrando. Isso quase sempre resolve, me ajuda a reencaminhar a coisa, a revigorar o texto – às vezes até a mudá-lo completamente. É claro que há momentos em que a conclusão é que o texto, ou a história, era realmente um tremendo equívoco, e que não haveria mesmo jeito de continuar com aquilo – de forma séria, consistente. Às vezes isso acontece. E o jeito aí é abandonar o barco, jogar tudo fora. O que não dá é ficar forçando a barra. Outra coisa que faço, quando percebo algum impasse, uma indecisão, é “olhar” por trás da palavra, pensar a palavra que estou escrevendo, o que ela diz por si e o quanto pode dizer por mim, pelo que quero dizer, isto é, o quanto ajuda o que quero contar. Pode parecer um jogo de palavras, mas não é. As palavras, em si, são conformações vivas. É fácil embarcarmos nelas, porque já vêm com significado e intenção prontos – ou, digamos, “atualizados”. Mas se atravessamos seus sentidos, talvez seja possível descobrir coisas que não estão sendo ditas – ou que não tínhamos percebido ou compreendido bem. Não sei o quanto isso se reflete no que escrevo (tenho muitas dúvidas nesse ponto), mas é uma preocupação constante, que me toma e me faz ficar vigiando o texto o tempo todo. De todo modo, quando ponho a ideia no papel, não me importo com nada disso; simplesmente escrevo, mesmo que repetindo palavras ou escrevendo frases e imagens imprecisas. O importante nesse instante é construir a paisagem da ideia, em primeiro lugar, do conceito do que vou escrever. Depois vem o dito, e com este a estética, modos de dizer. Penso que são etapas importantes na construção de um texto. Para mim, pelo menos.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso muito – leio e releio durante todo o processo. Até para ajustar trechos já escritos com ideias que vão me ocorrendo com a coisa já mais adiantada. Não estou fechado para nada, por isso vou e volto o tempo todo. Sobre mostrar o trabalho antes de publicar, é algo que tento fazer com algum critério. Por exemplo, só apresento o texto quando compreendi plenamente o que quero dizer e percebo que a ideia está resolvida no texto. Não significa que o texto esteja fechado e que não possa mais receber ajustes. Isso pode acontecer o tempo todo, mesmo em textos meus já publicados – e por isso evito; sinto certa compulsão para um ou outro ajuste, um modo diferente de apresentar a coisa. Acho isso razoável. Complicado é mudar a ideia de um texto pensado de determinada maneira. Se a ideia é mudar, como é que poderia manter o mesmo texto? Aí será outra coisa, uma nova escritura. Por isso só mostro quando tenho para mim que a ideia, o que penso em escrever, está resolvido. Nesse caso, o que apresento é uma versão da ideia (em texto). E aí cabem ajustes, uma expressão diferente, uma nova construção de frase, mais clareza aqui e ali, mudanças, talvez até uma montagem diferente das cenas, enfim, nesse sentido quase tudo é possível.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
No computador. Porque é o que mais tenho à mão quando vou escrever. Mas não é fundamental. Quando preciso escrever, quando me ocorre a necessidade de escrever algo importante, escrevo em qualquer lugar, no que estiver mais à mão. Já me aconteceu de escrever em guardanapo, toalha de mesa, quadro negro, na mão, no braço, e até, quando não é possível escrever com ou em nada, em gravar a voz, como faço às vezes. Nesses instantes, tento apenas registrar a impressão de uma ideia, e isso pode acontecer em qualquer lugar. Portanto, qualquer meio é útil. Num segundo momento, quando vou trabalhar essas notas, então o processo é um pouco mais formal, uso computador, e dicionários, e todos os meios possíveis de consulta. Exceto essas situações, a tela em branco é meu quintal mais usual.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Prestar atenção nas coisas. Ver o que acontece num livro, numa praia, num filme, na rua, num ponto de ônibus. No que acontece em torno de tudo isso. Ouvir pessoas. De modo independente, quero dizer, sem interferir, sem julgar, sem pensar se é certo ou errado. Apenas absorver o que se apresenta. E misturar isso com minhas fontes naturais, as malas da memória. O ponto principal é este: estar aberto. O tempo inteiro. Acho que é daí que chegam minhas ideias. Quando quero contar algo, uma passagem da infância, por exemplo, tento fugir do registro literal o máximo que posso, mas sem apagar o fato. Tento ver isso no meio de outras intervenções (eu sou apenas uma delas), sob certas perspectivas e meios que estão além da mera memória.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Houve um tempo em que eu queria saber tudo e ser perfeito. Era uma idealização. Talvez fosse parte de um processo de amadurecimento. A despeito dessa presunção, foi importante essa fase e esse desejo, por me pôr em movimento. Em comparação com o passado, as coisas ficaram mais concentradas, parecem fazer algum sentido, mas isso não significa que tenham sido resolvidas. Na verdade, acho que vão ficando cada vez mais complexas, porque no fundo sei muito pouco. É um processo que não tem fim – o dia que tiver fim, acabou-se. O que mudou, fundamentalmente, foi perceber que o processo é contínuo, não dá mesmo para saber tudo, tanto quanto não dá mais para parar de seguir. Há momentos em que percebo/descubro que sei menos ainda, cada vez menos. É impressionante isso, mas sei cada vez menos – e isso contrasta muito com a época em que queria saber tudo. Saber cada vez menos é, para mim, admitir a possibilidade de outros caminhos. O desconhecido está no horizonte. É isso que me move, essa busca por saber cada vez menos.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho alguns livros na cabeça, e acho que serão feitos dentro de um tempo natural de produção. Mas há um projeto que ainda não se resolve em mim, e que penso realizá-lo, mas não sei muito bem de que forma. Como trabalho também com fotografia e música, gostaria muito de criar algo que envolvesse essas duas expressões – mas não de modo incidental. Quando escrevi o romance “Máscara da invisibilidade”, compus uma pequena trilha musical (o narrador era um músico de bar), com canções que dialogavam com o enredo e a atmosfera do livro, mas que não se restringiam a ele. Mais ou menos assim: quem lesse o livro e ouvisse as músicas, certamente faria alguma associação. Mas quem só lesse o livro ou só ouvisse as músicas, também não teria problema em fazer uma coisa ou outra de forma independente. Apesar de conectados, não foram construídos de modo funcional. Nesse projeto que imagino, gostaria de fazer algo bem específico, de maneira que tanto a música quando a literatura conversassem, de um jeito mais intricado, com a fotografia – e que não pudessem existir de modo independente. Isso talvez tivesse que ocorrer num espaço específico, talvez virtual, não sei. Tenho algumas ideias sobre como fazer isso, mas isso ainda não se definiu plenamente. Bem, gostaria de ler muitos outros livros, que já existem. Dos que não existem (ainda), gostaria de ler esse, que ainda não fiz.