Carlos Ari Sundfeld é professor titular da Escola de Direito da FGV-SP e presidente da Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Sempre lendo os jornais em papel, mesmo tendo de acordar mais cedo. Eu os acho divertidos: grandões, tratando de tudo, da economia à fofoca. Meus olhos ciscam fácil por aquele espaço todo, descubro assuntos de que nada sabia e não me interessavam. Eles desafiam minhas opiniões e percepções, têm provocações boas para a saúde mental.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não há hora nem ritual. Mas minha vida útil é só falar (aulas, palestras, reuniões), responder e-mails e escrever, de modo que ou estou em uma coisa ou nas outras. Há dias em que a falação começa cedíssimo e os e-mails reclamam atenção sempre. Isso tudo vai atrapalhando a escrita, claro, e nesses dias ela acaba ficando para aquele horário de fim de tarde em que todo mundo foi para casa ou para o chopp e enfim deixou a gente em paz com as palavras e pontos.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo todos os dias. Pode ser algo menor, um artigo de imprensa ou para algum site especializado; cada semana sai ao menos um desses. Pode ser texto profissional, um parecer jurídico longo, complicado, cheio de palavras técnicas. Parecer tenho de escrever todos os dias, às vezes por 10 horas seguidas, sem olhar para o lado, mas em outras vezes sou interrompido mil vezes, o que é um inferno. Para os artigos e livros científicos, eu tento tirar o dia, mas nem sempre funciona; em geral, ao menos um dia por semana reservo para eles. Por vezes radicalizo e sumo uma semana inteira, viajo para longe, para me concentrar em um livro ou artigo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Depois de juntar as informações ou ideias básicas, é tudo fácil, embora demorado. Basta bolar as três primeiras frases. Mas escrever é coisa para doido. Então volto para trás e corrijo palavras, insiro ou tiro algo das frases, e assim vai, em um processo enlouquecedor de avançar um passo, recuar para ver como está ficando, mexer porque ainda não está bom… As (muitas) horas vão passando e, sei lá como, há uma primeira versão. Aí tenho de imprimir e ler no papel branco. E descubro um monte de problemas de ritmo, informações imprecisas, incoerências, excessos. Tento corrigir e pesquiso mais. Isso se repete e repete. Até que surge uma versão mais ajeitada, que descansa antes de uma releitura final (por vezes o fim é o lixo, fazer o quê?).
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Em algumas ocasiões demoro um pouco para começar só porque o prazo ainda não está me pressionando tanto e há outras demandas urgentes (sempre há). Quando sinto que a enrolação vai me meter em uma fria, que posso perder o prazo, escrevo as três primeiras frases. E pronto, começou o inferno do escreve e revisa.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu reviso cada pequeno trecho (de três frases, mais ou menos) umas sete vezes antes de ir adiante, sempre mexendo demais. Quando já há dois ou três trechos, eu os reviso umas quatro ou cinco vezes e eles crescem ou diminuem. Se tenho uma página completa, vou voltar atrás e revê-la umas duas vezes por inteiro. Aí enjoo, deixo essa página de lado e posso avançar. E vou repetindo a dinâmica. Quando tenho umas cinco páginas, paro, falo no telefone, dou uma volta, saio correndo para dar aula. Depois, com a cabeça meio desligada, releio do início. E às vezes decido inserir algo bem longo no meio, ou inverter a ordem dos parágrafos todos, ou suprimir algum. Revisões infinitas: este é o meu jeito.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
É no computador. Salvo quando o texto está completo e vou fazer uma leitura geral no papel, indispensável. Por vezes levo o maço para passear longe do computador e anoto mudanças à mão, para passar depois. Quando fizer isso, com certeza vou reler tudo na tela e aí mexer no texto para melhorar o ritmo (troco palavras por outras mais curtas, corto muitas palavras, inverto e suprimo frases, mudo o tempo dos verbos, quebro parágrafos, troco vírgulas por pontos, tento encaixar algum ponto e vírgula). Não resisto e imprimo outra vez para a leitura final (confesso que mesmo aí ainda tiro umas coisinhas e, bem, tenho de imprimir mais uma vez para outra conferida).
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Minha mania é sempre querer entender as coisas, para em seguida mudar tudo nelas. Eu pergunto: como arrumar, resolver, fazer ou explicar diferente? Aí tento imaginar se alguma solução melhora, por algum critério, aquilo em que estou focado. Esse hábito instiga minha cabeça a ficar criando, em geral bobagens que não servem para nada (andando na rua derrubo casas e prédios e imagino outras coisas, ou nada, no lugar). De vez em quando surge algo que parece aproveitável. Aí minha cabeça fica obcecada com aquilo, vai mexendo e remexendo as ideias (durante o banho elas surgem mais limpas). Depois em geral desisto, concluo que não tem nada a ver, ou apenas esqueço. Um mínimo que sobrar é o que eu vou passar adiante em textos, aulas, reuniões e conferências. Proporcionalmente não é tanto, mas em uma vida longa dá para juntar um punhadinho.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Diria: menos, Carlos, bem menos; vá direto, Carlos; prove o que disse, Carlos; chega, Carlos. Com os anos fui ficando mais curto, informal e objetivo. Também aumentei o vício das revisões sucessivas, vício que o computador foi levando ao extremo. E com certeza fiquei mais desconfiado das minhas afirmações, opiniões e conclusões.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Farei ou escreverei uma coisa que nunca fiz e não tenho a mínima ideia do que seja. Mas ainda descubro. Lavando os pés, talvez. Vai saber.