Carina Luft é secretária executiva, administradora e escritora de romances policiais.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Tenho. E ela começa a partir do café. Preciso dele pra despertar e seguir bem. Sem ele, meu humor fica comprometido e tenho enxaqueca. Minha rotina segue dois modelos: o de segunda a sexta e o de fim de semana, mas o café é o abre-alas todos os dias. Por muito tempo, creio que cinco anos, incorporei na rotina matinal a leitura de poesias, gostava de ler poemas tomando o café em meio às frutas e pães. Hoje, infelizmente, uso esse tempo pra ler recados que estão no celular, de tarefas que preciso despachar logo que chego ao trabalho. Enfim, começo trabalhando ali mesmo – o que não é saudável, eu sei.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Trabalho melhor na parte da manhã, principalmente quando se trata de ideias e criação. Preciso da mente livre do barulho e das influências da rua. Infelizmente, hoje não tenho um ritual de preparação pra escrita e sinto falta dessa disciplina. Escrevo quando dá, principalmente quando estou inspirada, e nessas horas fico inquieta e a inquietação transforma-se em gastrite (risos). Então, quando o estômago arde, é hora de parar e colocar as ideias pra fora.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo um pouco todos os dias, mas são ideias soltas, fragmentos escritos em vários blocos. Não tenho uma meta diária, embora eu reconheça a importância da disciplina. A escrita funciona com o uma terapia, ela não é o meu trabalho. Meu sustento financeiro não vem dela então não quero engessá-la colocando normas e procedimentos. Isso tudo é muito chato e já tenho práticas assim no trabalho, nas atividades físicas, na alimentação onde tudo é monitorado e precisa gerar resultado. A literatura é a minha válvula de escape, ela está ali pra despressurizar. Acho que nunca conseguirei colocar metas ou números no meu modo de escrever.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Quando me dedico a escrever romances ou crônicas para o blog, o processo é organizado até porque a desordem me deixa ansiosa e dispersiva. Eu preciso da organização pra me concentrar e o ambiente precisa estar limpo. Pra mim, é difícil começar, não por conta da ausência de ideias ou vontade, mas por falta de tempo. O trabalho, a casa e a família ocupam longos períodos, minhas horas livres são restritas e escrever exige tempo, dedicação e concentração. E é nessa hora que vem a procrastinação. Me organizo mentalmente pra começar no dia x, aí surge um imprevisto, algo mais urgente (ou necessário) e termino não priorizando a escrita. Já o movimento da pesquisa para a escrita é bastante cruel. Eu sou cruel comigo (risos) porque a pesquisa acontece dentro da pesquisa e entra ainda mais dentro da pesquisa, vou me aprofundando e, de repente, não consigo sair pra realmente operacionalizar, fico envolvida pelos vários níveis da pesquisa. Como escrevo literatura de gênero, sou romancista noir, e não trabalho na área policial, preciso pesquisar muito, mesmo durante o desenvolvimento da história, aí navego, navego, navego, e me disperso.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Olha, não lido muito bem com isso, por incrível que pareça. Sei que tenho maturidade e tal, mas a procrastinação e o medo de não corresponder às expectativas me incomodam. Primeiro porque fui criada num ambiente rígido, de muita disciplina, e tenho uma profissão onde é preciso gerar resultado diariamente, logo, é difícil me desvencilhar de um modelo de vida enraizado. Sempre que postergo uma atividade, me sinto incompleta ou culpada. Confesso que já melhorei muito, o peso não é grande a ponto de me agredir, mas ainda gera incômodo. E, quanto às expectativas, é sabido que não atingirei todas porque isso é irreal, mas eu preciso atender as minhas e dos meus leitores. No momento em que lanço um projeto, texto ou ideia, eu preciso oferecer algo bom, no mínimo. Precisa ter conteúdo, verossimilhança, boa linguagem, ordem e uma sequência lógica. Se usarmos romance de gênero como exemplo, é evidente que não me sinto cobrada em agradar aqueles que não gostam de literatura noir, mas aos que gostam e se alimentam dessas histórias, eu preciso surpreender, sim! É o meu compromisso enquanto escritora. Já quanto à ansiedade, é outro problema. Sou naturalmente ansiosa e luto todos os dias contra esse estado independente de ser projeto longo ou curto.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Confesso que pra mim eles nunca estão prontos e eu os reviso inúmeras vezes, creio que dez ou mais. Além disso, eu os deixo parados alguns dias; depois, volto e os reviso novamente. Sempre há coisas para alterar e limpar. Sempre! Gosto de mostrar para outras pessoas, mas para poucas e de extrema confiança. Normalmente, mostro para o meu marido que, mesmo não sendo do meio, é sensato, sensível e certamente não me deixará publicar algo ruim. Ele é meu melhor crítico porque me dá choques de realidade.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Me dou bem com tecnologias, embora não seja apaixonada. Só escrevo à mão se estiver num local público e com limitações de acesso. Acho mais fácil escrever uma ideia num guardanapo de papel e guardar na carteira do que abrir o bloco de notas do celular, digitar no tecladinho, salvar, sair daquela tela etc. ou abrir notebook… Sei lá, nem sempre a tecnologia é ágil e prática. Tenho meus blocos de anotações e gosto muito de usá-los.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias vem do cotidiano, de uma cena que observo, de um diálogo que escuto e também de livros, filmes e viagens. Aeroportos são extremamente inspiradores pra mim e aviões são os principais gatilhos. Gosto de desdobrar uma ideia, pegar o mote de um filme, pinçar uma personagem ou comportamento e explorar aquilo. Não tenho hábitos diários pra estimular a criatividade, ela vem a qualquer hora em qualquer momento, chega a ser perturbador.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
A linguagem, ela melhorou. Eu diria pra mim: leia mais poesia, Carina!, mais poesia para desenvolver uma linguagem melhor.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Vários. (risos). E aqui está uma das minhas ansiedades: vontade versus falta de tempo. Tenho muitas ideias e não consigo coloca-las em prática, isso é frustrante. Quanto ao livro, será que ainda não existe? (risos). Tudo já foi escrito, mas, vamos lá, gostaria de ler um livro de poesias que falasse só de lugares, de viagens. Poesias normalmente falam de alma, amor e relações. Estou lendo Crônicas de Viagem da Cecília Meireles onde a prosa poética das crônicas me acendeu a vontade de ler um livro de poesias que fale só de lugares como Fernando Pessoa fazia com Lisboa e o Tejo.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Nada cartesiano, mas eu planejo, sou metódica e disciplinada. Organizo o ambiente e o roteiro. Na verdade, vivo um conflito porque preciso de ordem e de um ambiente vazio para me concentrar, e, às vezes, isso não acontece porque a imaginação flui desordenada. O meu processo criativo não funciona de acordo as minhas vontades, eu não tenho domínio, não digo agora vou me sentar ali e compor. Isso não acontece, e é angustiante porque a ideia chega a qualquer momento. Então, deixo a sala organizada e limpa, com o essencial, para aproveitar a oportunidade quando ela surgir. Tudo precisa estar desanuviado e no lugar certo para eu arrumar as ideias e escrever.
Para mim, é mais difícil fazer a última frase. De nada adianta desenvolver um bom texto, com elementos necessários para prender o leitor, se pecarmos no final e desconstruirmos o todo. Para fechar uma obra não basta uma ideia. O desfecho precisa ir além de um simples arremate, é preciso selar a narrativa provocando um fascínio na pessoa que lê. O fim precisa ser valioso para ambos.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Prefiro não ter vários projetos ao mesmo tempo, embora eu os tenha. risos. Infelizmente, vivemos um momento em que está difícil priorizar, focar ou abster-se do restante. As coisas vão acontecendo simultaneamente. Por mais que eu tenha eliminado interferências e distrações, existem outros movimentos acontecendo em paralelo. Se eu pudesse viver apenas da escrita, sem dúvida eu a teria como única, mas tenho o trabalho, a família, os amigos, o esporte e a saúde para cuidar.
Acredito, até, que me organizo bem. Defini que no fim de semana eu ficaria off-line das redes sociais. Sábados e domingos são para a família – incluindo os cães – os amigos, as leituras e a escrita.
Eu acordo cedo. Levanto-me seis e quinze, preparo o café, um ritual que me agrada muito, e leio. Não tenho regra nesta leitura, ela pode acontecer entre trinta minutos e uma hora ou ser pautada no tempo de um capítulo, de um conto, de uma poesia. Depois, faço uma hora de atividade física, normalmente na rua. Isso eu faço todos os dias. Na parte da manhã, organizo a parcela menos agradável: reuniões, trabalho, burocracias, compras, contas, networkingetc. À tarde, estudo assuntos do meu interesse: história da arte, minimalismo e fotografia, e ainda faço uma hora de inglês online para manter a proficiência além de preparar minhas aulas de inglês. E as ideias surgem no meio de tudo isso, então vou anotando para não as perder. À noite, leio um pouco e medito. Depois de adotar essa rotina, fiquei mais leve e feliz.
O que motiva você como escritora? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
A motivação vem do diálogo que estabeleço com pessoas desconhecidas. É o momento onde levo minhas ideias e percepções para pessoas que não vivem no mesmo meio social. Há uma interação grandiosa. Talvez uma rapsódia de mim mesma. É gostoso saber que tem alguém que deseja ouvir as minhas histórias. O escritor é um ser solitário por natureza; para mim, ele encontra no leitor a resposta dos seus anseios.
Lembro-me, sim. Por incrível que pareça, não aconteceu de forma racional. Lembro-me de como tudo começou, mas nunca falei vou ser escritora, vou dedicar meu tempo para isso. A escrita acontece como um processo de despressurização, eu preciso dela para não adoecer. A relação que estabeleço com o papel, e com as (minhas) letras, me dá um bem-estar indescritível. Se depois elas virão a público, é outro assunto.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
As interferências do meio externo atrapalharam um pouco. Por muito tempo, por não me conhecer nesta escrita, eu ouvia a opinião dos outros, e elas eram desencontradas, diferentes. Óbvio, cada um seguindo o seu estilo, querendo moldar-me de acordo com a sua preferência. Mas eu precisava dar ouvidos à minha voz. Quando percebi isso, fechei-me em casa e comecei a estudar para ouvir a minha linguagem, identificar o que havia de bom e ruim nela, independente de agradar a maioria ou não. Antes de encontrar o leitor era preciso encontrar-me. Embora eu seja uma romancista noir, o aperfeiçoamento da linguagem, e da forma de expressão, veio através de Cecília Meireles, Adélia Prado e Clarice Lispector – elas foram e continuam sendo as minhas influências.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
De novo, embora eu seja uma romancista noir e goste da literatura de suspense, prefiro recomendar leituras que tenham profundidade filosófica, aquelas que abordam os dramas humanos, o cotidiano. Então recomendo Longe das Aldeias, de Robertson Frizero; Perto do Coração Selvagem, de Clarice Lispector e O Jardim de Cimento, de Ian McEwan.
O Longe das Aldeias tem uma carga dramática sem aqueles sentimentalismos rasos. O autor consegue trazer a complexidade das relações humanas numa prosa poética capaz de sensibilizar o leitor sem pieguices. O livro traz a história de “um jovem de dezessete anos, que diante da doença da mãe, decide desfazer um passado de mentira e ilusão a respeito da identidade do próprio pai”.
Perto do Coração Selvagem traz as inquietações de uma mulher cuja autoestima está frágil em razão dos suscetíveis acontecimentos do cotidiano – um negócio que se repete nos dias atuais, mesmo em épocas de emancipação feminina. Sem dúvida, uma obra universal. Além do mais, Clarice imprime a sua linguagem poética numa narrativa introspectiva e, quem sabe, até mesmo confessional. O livro traz a história de Joana e todas as suas aflições, da infância à maturidade.
O Jardim de Cimento, narrado numa linguagem que é oposto dos demais livros citados, traz o lado grotesco do ser humano. É um livro visceral, literalmente. Mas não está tão distante assim dos demais quando se fala da complexidade humana, do inferno existencial e suas várias formas de se manifestar. O livro traz a história de “quatro crianças que, após a morte dos pais, encerram-se no minúsculo mundo do lar, entregando-se a todo tipo de sensações e descobertas bizarras”.