Camilo Vannuchi é jornalista e escritor, autor da biografia “Marisa Letícia Lula da Silva” (Alameda, 2020).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Tenho um casal de filhos pequenos, de 8 e 6 anos. Acordo com eles por volta das 7h ou 7h30 e preparo café da manhã para tomarmos juntos. Enquanto passo o café e esquento os pães, começo a correr os olhos nos e-mails, no WhatsApp, nas redes sociais e em uma ou duas homepages de portais de notícias, normalmente UOL e Folha. Tenho sido muito assíduo em redes sociais e gosto de acompanhar as polêmicas do momento, as notícias de maior repercussão, quase sempre com o impulso de também me manifestar. Dificilmente começo a trabalhar para valer antes das 10h. Acabo preferindo ficar mais com as crianças nesse primeiro horário, tomar café com calma e me inteirar das notícias. Nesta fase de isolamento social em razão da Covid-19, acabei sacrificando por completo as manhãs em razão dos trabalhos domésticos. Uma vez solucionado o pacote “casa, comida e roupa lavada” – e louça lavada também –, me organizei para focar na escrita nas tardes e noites.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Embora nem sempre consiga, prefiro escrever de manhã. É como se o corpo estivesse leve e a cabeça fresca, com o auxílio inexorável do café preto fartamente consumido nas primeiras horas do dia. Não tão cedo quanto, por exemplo, Ignácio de Loyola Brandão, que costumava despertar às 5h para escrever. Mas esse horário das 9h às 12h costuma ser fértil para mim. Agora, mais uma vez: esses hábitos são moldados também pelas circunstâncias. Com as crianças o tempo todo em casa, as noites acabam se tornando momentos valiosos em razão do silêncio e, principalmente, por saber que ninguém vai me chamar para brincar, perguntar o que significa “alterar” ou pedir ajuda para responder a uma atividade da escola pela internet.
Não sei se tenho exatamente um ritual. Tento me certificar de algumas coisas. A cadeira está confortável, o carregador do notebook está conectado (escrevo exclusivamente no notebook há mais de uma década, não temos computador de mesa em casa), nada de frio ou calor, o material de que vou precisar está à mão (algo fundamental para um escritor de não ficção)… Minha ideia é não precisar levantar para nada por um bom período. Em geral, preciso encerrar um pensamento (uma análise, um argumento, a narração de um episódio) para me sentir confortável para um intervalo, o que muitas vezes leva três ou quatro horas. Aí consigo tomar água, ir ao banheiro ou pegar um café. Pensando bem, é relativamente comum eu escutar música enquanto escrevo, e muitas vezes de uma forma ritualística. Explico: seleciono o repertório de acordo com o assunto da minha escrita naquele momento. Pode ser por estilo, por época, por autoria. Escrevo muito sobre a ditadura militar, por exemplo, o que me faz recorrer com frequência a canções da Era dos festivais, da música de protesto, da Tropicália. Durante a escrita do meu último livro, uma biografia da ex-primeira-dama Marisa Letícia, passei muitos dias ouvindo artistas de que ela gostava, e que eu conhecia pouquíssimo, como Jessé, autor de “Porto Solidão”, que muito provavelmente era a música preferida dela. Essas coisas acabam inspirando e ajudam a construir um ambiente que favorece a fruição da escrita. É verdade, também, que algumas músicas me fazem cantar junto, e aí é uma tristeza, porque acabo me distraindo. Nessas horas, recorro à música instrumental ou pelo menos em outro idioma para não ter o mesmo impulso de cantarolar junto e prestar atenção na letra. Tenho enorme admiração e um acervo razoável de álbuns de jazz e de viola caipira instrumental, o que torna essa tarefa algo bastante tranquilo. Esse é um ritual, não?
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo todos os dias. Geralmente, trabalho em mais de um projeto ao mesmo tempo e fico girando os pratinhos. Escrever sobre dois assuntos diferentes no mesmo dia é mais raro, mas escrever todos os dias é praticamente certo. Como concilio a atividade de escritor com o jornalismo e, nos últimos sete anos, também com a academia (fiz mestrado e agora estou concluindo o doutorado), vou administrando os prazos e as inspirações e tocando tudo ao mesmo tempo: uma coluna, um artigo, um capítulo. No caso dos livros, como escrevo principalmente biografias e livros reportagens, é normal passar uns meses focado na apuração, nas pesquisas e nas entrevistas e, a partir do momento em que sinto ter informações suficientes para escrever, inaugurar o processo de redação. Nesses períodos dedicados principalmente à pesquisa, acabo escrevendo menos. Mas, mesmo assim, tem sempre uma coluna para publicar, um projeto a redigir, os posts nas redes sociais. Só não tenho metas diárias. A não ser quando há um prazo irremediável e, por questão de sobrevivência, faço aquele cálculo maroto na cabeça para saber o que tenho de escrever por dia para conseguir finalizar no tempo certo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Gosto de escrever os capítulos do livro ou os parágrafos do artigo na ordem em que eles vão aparecer quando forem publicados. E costumo me esforçar para que as frases e os parágrafos saiam com cara de texto final. Tenho dificuldade em começar um livro pelo capítulo 4, por exemplo, ou um artigo pela segunda parte. Também tenho dificuldade em escrever obedecendo ao fluxo de pensamento, colocar tudo no papel de qualquer jeito para melhorar depois, uma prática muito comum entre escritores. No meu caso, esboço apenas o sumário, para não me perder na estrutura nem deixar nada de fora, mas não consigo escrever rapidamente para resolver o estilo e as lacunas de conteúdo depois. Isso faz com que eu atrase bastante o início da redação. E acabo demorando mais para escrever os primeiros 20% do que nos 80% restantes. Esses 20% são muito preciosos, porque definem o tom, o ritmo, a linguagem, se o texto sairá mais coloquial ou mais rebuscado, mais sintético ou detalhado, mais grave ou mais leve. E às vezes levo muito tempo para selecionar o que abrirá o texto, a primeira cena, a primeira imagem, algo que seja ao mesmo tempo instigante e representativo. Depois engrena.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Olha, acho que é do jogo. Uma pessoa não pode entrar para a política com a ilusão de não ser xingada e acusada de tudo que é prática ilegal por seus opositores. Também não é prudente ir trabalhar num pet shop quem for alérgico a pelos de gatos e cachorros. Escrever é se deparar o tempo todo com a página em branco, essa esfinge intimidadora, por vezes perversa, nefasta. Acho que o jornalismo me deu régua e compasso para enfrentar razoavelmente essas travas. Era preciso sentar e escrever, entregar o texto para fechar a revista e mandar pra gráfica, publicar no site. Apurar até onde fosse seguro e escrever em seguida, com as informações que foi possível reunir. E saber que é virtualmente impossível atender às expectativas de todos. Um mantra que me ajuda nesse sentido é lembrar que nenhum leitor tem acesso ao meu bloco de notas nem tem ideia de tudo o que eu li, ouvi ou pesquisei para fazer aquele texto. Os leitores não viram as entrevistas, o que eles sabem da minha reportagem é o que estiver no papel. Esse é um recurso para tornar menos frustrante o desafio de cortar, deixar muita coisa de fora, ou não conseguir me aprofundar como gostaria em determinado aspecto. Tenho consciência dos dados que tentei obter para aquele texto e não consegui, das entrevistas que pedi e que foram negadas, mas o leitor não os tem. E isso traz algum alívio.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso pouco. Leio uma ou duas vezes e publico. Ou, no caso dos livros, leio uma ou duas vezes e mando pro editor ou editora. Aí volto ao texto após ouvir os comentários e sugestões de ajustes e leio outra vez de cabo a rabo. Sobre mostrar os trabalhos, meu esquema tem sido um tanto solitário. As colunas do UOL eu mesmo publico, sem mostrar para ninguém. Nos projetos profissionais, acabo me restringindo à troca de figurinhas com o contratante, cliente ou coordenador do projeto, da mesma forma que, no doutorado, acabo dialogando somente com o orientador no processo de escrita. Na literatura, os grandes aliados são mesmo os editores.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sempre no computador. E desenvolvi a estranha mania de enviar por e-mail para mim mesmo a cada etapa avançada, às vezes todos os dias nos períodos mais intensos, para servir de backup. Os projetos concluídos vão pra nuvem e pra HD externo. Garrei trauma quando meu computador anterior faleceu, no ano passado, após 12 anos comigo, e eu não tinha feito backup de algumas coisas importantes.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Acho que me manter curioso e atento talvez seja a ferramenta mais relevante nesse sentido. E ler sempre. Manter uma coluna semanal também ajuda. Porque cria rotina, prazos e, principalmente, essa atenção permanente. Sobre o que escrever desta vez? E como tornar esse tema ou essa história saborosa e instigante para que os internautas queiram clicar, abrir e ler, quiçá comentar ou compartilhar o texto?
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acho que passei a valorizar mais a síntese e também a irreverência. Eu era mais pretensioso e mais maçante nos primeiros escritos, acho, como se precisasse exibir densidade e como se cada obra tivesse de parecer um manifesto, um tratado. Sobre o processo de escrita, acho que eu diria para o jovem Camilo Vannuchi não perder muito tempo com o que não for divertido, inédito ou relevante. Diria para ele usar como paradigma o papo de bar. O que é isso? Bem, se você tiver de contar uma história, ou passar para o papel uma descoberta, ou o perfil de alguém, concentre-se em colocar aquilo que você contaria para alguém na mesa do bar. Inevitavelmente, se você for contar sua pauta, ou seu argumento, ou a trama do seu livro, para algum conhecido enquanto toma uma cerveja e come um sanduíche de pernil, você muito provavelmente vai privilegiar as histórias mais incríveis, mais engraçadas, inéditas ou imprevisíveis. Ou, sobretudo no jornalismo, o que for absolutamente relevante, útil, indispensável. Todo o resto não é tão necessário quanto o que você contou na mesa do bar. Ou porque é maçante, ou porque não traz nenhuma novidade, ou porque não serve pra nada. Dispense. Ou sintetize. Concentre-se no que você contaria numa conversa informal.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Comecei agora a escrever um livro-reportagem sobre um dos crimes mais bárbaros da ditadura militar: a construção de uma vala clandestina em um cemitério de São Paulo onde foram ocultadas mais de 1 mil ossadas entre 1975 e 1976, incluindo esqueletos de vítimas dos esquadrões da morte, espécie de milícias da época, e de militantes políticos tidos até hoje como desaparecidos. A vala de Perus, como ficou conhecida, foi descoberta em 1990, trinta anos atrás, e só agora o trabalho de análise das ossadas está sendo concluído. Dois desaparecidos políticos foram identificados em 2018 e ainda pode surgir mais algum. Fora isso, há outros temas e personagens que estão sempre no meu radar. Defenderei meu doutorado neste semestre, uma pesquisa sobre direito à comunicação e regulação dos meios, e vou querer transformar a tese ou parte dela em livro. Passei boa parte dos últimos três anos pesquisando e escrevendo sobre a vida de Marisa Letícia Lula da Silva e a experiência me trouxe duas vontades relacionadas a ela: transformar a vida do Lula numa graphic novel – talvez num roteiro focado na história do casal – e escrever a história da formação do PT, sua gênese e seus primeiros anos, talvez até a eleição de 2002, não em estilo acadêmico, como uma tese de ciência política, mas num livro-reportagem, com os episódios, as histórias, as aventuras, as memórias mais curiosas. Tem alguns personagens que quero biografar, mas isso é assunto para o futuro.
Gostaria de ler, ou escrever, um livro sobre canções de protesto no Brasil, que contextualizasse, contasse os bastidores e cumprisse o papel de nota de rodapé, cotejando essas letras com a história. Quem é a Angélica de Chico? E o monstro da Lagoa? O que quer dizer o verso “quero cheirar fumaça de óleo diesel”? Em que música Gilberto Gil grita o nome do ex-guerrilheiro Marighela? Por que a censura liberou a gravação de “Pesadelo”, de Eduardo Gudin e Paulo César Pinheiro? Como Elis Regina gravou “O Bêbado e a Equilibrista” depois de ter sido enterrada no cemitério do Cabôco Mamadô do Henfil?