Camille Gouveia Castelo Branco Barata é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal do Pará.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Como quase toda pessoa que tem insônia, as manhãs são penosas para mim e esse dificilmente é um bom momento para a escrita acadêmica. Normalmente esse é o horário de ler literatura e blogs que acompanho, checar e responder mensagens e resolver questões mais práticas e rotineiras, que não exigem concentração extremada de mim. Conforme as horas vão se adiantando, consigo voltar à plena forma.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sempre rendo mais durante a noite e a madrugada. O silêncio e o pouco alvoroço desse horário ajudam na concentração. No entanto, creio que essa também seja uma característica do momento de formação que estou vivenciando, escrevendo a dissertação de mestrado. Conheço muitas pessoas que durante a pós-graduação preferiam as madrugadas e, passado esse período, tornaram-se absolutamente matinais. Não tenho rituais de escrita, se me apegasse a essas formas de fazer, acredito que a procrastinação só aumentaria. Mas isso é bastante pessoal. Se tiver um espaço onde posso colocar livros, cadernos e um computador, escrevo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Disciplinei-me a escrever todos os dias, o que quer que seja. Podem ser anotações sobre textos lidos, cronogramas de atividades, textos em diários ou escritos acadêmicos mais formais e elaborados. O que importa é exercitar a escrita e desconstruir a autocensura e o compromisso com a perfeição, que só atravancam o processo. Porém, quando preciso responder a prazos, passo um tempo maior escrevendo em períodos concentrados. Funciona melhor para mim.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A elaboração de um problema de pesquisa já pressupõe uma conformação escrita para mim. Porém, como alguém com formação em antropologia, minha escrita ganha densidade após o trabalho de campo, pois é por meio da escuta e convívio com os interlocutores (ou do exame de documentos, da etnografia de ações estatais, etc. As formas de fazer campo são inúmeras) que se aprofunda a reflexão intelectual. É a partir dessa experiência que temos chance de fazer correlações com textos e teorias. Nesse sentido, a escrita já se inicia durante a feitura do campo, por meio da elaboração de diários. Depois caminho em direção à produção de artigos, da dissertação, de capítulos de livro. Em função do mito do pesquisador infalível, que já nasce pronto, escrever, de modo geral, será difícil, especialmente para minorias sociais. Porém, acredito que com muita leitura e trabalho de campo consistente, as dificuldades podem se atenuar.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
É engraçado, porque comecei a escrever ainda muito pequena, foi uma das primeiras formas de me expressar no mundo, junto com o desenho. Em função disso, durante muito tempo escrever não foi difícil, era uma forma de lidar com inquietações e angústias. Pelo contrário, sofria quando não escrevia. Porém, com a entrada na universidade, veio o contato com o mito da genialidade acadêmica e com ele, as inseguranças e travas chegaram. Não acho que essa seja uma sensação aleatória ou individual. Ela atinge com especial intensidade mulheres, pessoas negras e pessoas indígenas, protagonistas a quem historicamente a participação no espaço universitário foi negada. Embora os avanços tenham sido inúmeros (as ações afirmativas são prova disso), esse modelo de produção intelectual marcadamente branco, masculino e elitizado permanece como obstáculo a ser desestabilizado. Creio que uma das possibilidades mais frutíferas de levar esse projeto adiante seja por meio da criação de redes de colaboração e solidariedade, onde o diálogo e o amadurecimento intelectual conjuntos sejam viáveis.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Sempre que retomo a escrita dos textos, releio e reviso o que já está feito e faço uma revisão final quando o concluo. Costumo circular os trabalhos entre pessoas nas quais confio antes de considerá-los prontos, de modo a ouvir críticas e rever fragilidades.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo quase tudo no computador, exceto listas de afazeres e diários, para os quais prefiro o papel.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
As ideias surgem dos mais variados lugares. Elas nascem na participação em lutas políticas nas quais milito, especialmente o movimento feminista. Nascem do aprendizado com as mulheres indígenas e quilombolas com quem tive chance de dialogar durante os anos de universidade. Da interlocução com colegas e professores, especialmente no grupo de pesquisa do qual participo na UFPA, o Cidade, Aldeia & Patrimônio. Da literatura que leio, dos filmes que assisto, das conversas com pessoas que formam a rede dos meus afetos. Em suma, as ideias surgem a partir de sensibilidades e indignações nascidas dos contextos onde circulo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar aos seus primeiros escritos?
Ainda estou começando a amadurecer um estilo próprio e uma voz, pois estou cursando o mestrado. O que procuro dizer a mim mesma para me tranquilizar durante esse processo é que não preciso apresentar um métier acadêmico pronto e acabado e sim compreender que essa é uma dimensão sempre em construção e nela há espaço para experimentação e mudanças. E, acima de tudo, tento lembrar que o mais importante é escrever, escrever e escrever e inseguranças e medos não devem me silenciar.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Os projetos são variados, mas todos são marcados pelo desejo de romper com sistemas de pensamento hegemônicos (e violentos) que se pretendem universais, pelo engajamento político pelos direitos das mulheres e pela expectativa de construir relações mais empáticas e menos desiguais.
Creio que há muitos livros já escritos que ainda não li. Ainda há tempo.