Camilla de Magalhães Gomes é doutora em Direito pela Universidade de Brasília e professora do Centro Universitário de Brasília.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não sou uma pessoa matinal, especialmente para a escrita. Então, pela manhã faço qualquer outra coisa que não escrever (tarefas domésticas e atividades burocráticas do trabalho de professora) e quando os prazos apertam, guardo as manhãs para resolver coisas mais burocráticas da escrita: formatações, revisões e releitura de fichamentos…
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
O melhor período para escrever para mim costuma ser das duas da tarde à meia noite (nos dias em que não estou trabalhando, isso funciona melhor ainda, porque, como demoro para escrever, prefiro fazê-lo por vários dias em sequência, em períodos mais longos por dia, usando o pomodoro para fazer intervalos e deixando espaço para procrastinações e desvios). Durante a minha escrita de tese, funcionava bem algo que quase virou ritual para o período da tarde: almoçava, assistia algum programa bem besta de TV (eram de preferência programas de decoração ou vídeos de dança flamenca ou contemporânea, sei lá porquê) pra esvaziar a cabeça. Aí depois ligava alguma música lá pelas 14h pra começar. Alguma não, foi de modo bem específico o álbum Entre dos aguas do Paco de Lucia. Ligava e o ritmo ia me introduzindo numa cadência de escrita. Esse ritual às vezes continua funcionando, outras não. Como não sou muito fiel à rotina, já estou buscando novas combinações.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não estabeleço metas e nem me coloco obrigações de escrever todo dia. Acaba acontecendo todo dia porque, quando estou com algum projeto de escrita, faço anotações enquanto leio e pesquiso. E sempre de um modo fluido mesmo, nunca como “vou sentar e escrever dois parágrafos por dia”. Alguns dos pontos fundamentais dos meus trabalhos surgem de divagações que vou anotando à mão em um caderno ou de ideias que aparecem em situações em que, por não conseguir anotar, gravo em áudio no celular. Também me acostumei a gravar aulas, discussões, palestras que realizo e estejam relacionadas ao tema que esteja pesquisando e dali retiro também ideias e trechos de textos. Acredito que a fala ajuda a destravar e superar alguns processos de sabotagem que podem nos dominar na escrita (falo deles mais à frente) e vez ou outra sinto que nessas oportunidades de discussão ou mesmo falando sozinha (já “escrevi” longos parágrafos dirigindo – mas juro que de modo seguro (risos), quando a ideia surgia, parava, ligava o gravador e depois ia dirigindo e falando – ou me preparando pra sair pro trabalho, gravados em áudio no celular) consigo fazer conexões que não se apresentavam de modo tão claro na escrita.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Não adoto um processo linear, como se a escrita fosse um conjunto de etapas progressivas. Claro que há mais períodos de leitura e pesquisa e outros de escrita e uma fase de finalização. Prefiro, no entanto, misturar e até fazer de modo simultâneo. Já fiz diferente: no mestrado, adotei um processo bem organizado e por etapas. Longos períodos de pesquisa e leitura, produção de fichamentos durante essa etapa e depois longo período de escrita. Hoje ainda faço fichamentos enquanto leio, mas ao mesmo tempo também faço anotações à mão ou mesmo paro no meio da leitura para desenvolver pontos que me foram despertados por ela. Organizo, no entanto, ao menos as plataformas em que vou fazendo cada uma dessas formas de anotações (explico isso em outra pergunta). Ao mesmo tempo, faço igualmente paradas no meio da escrita, quando percebo que as travas são resultado de uma falta de aprofundamento em algum ponto. Aprendi com meu orientador de mestrado que uma das chaves da escrita é a humildade no processo e o orgulho no resultado. Isso me fez, então, acreditar que essa postura de achar que “li tudo, estou pronta pra escrever” pode ser uma soberba contraproducente. Vejo a escrita como processo circular (ou espiral) e não evolutivo, que terminamos porque os prazos assim exigem e porque precisamos desapegar e colocar em circulação o que foi feito. Na “volta”, ainda estamos no mesmo processo, ele só vai tomando outras formas.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu sinto que uma das chaves e maiores dificuldades do processo de escrita está na autorização-autoria, em descobrirmos e nos permitirmos a autoria. Métodos/técnicas/fórmulas para melhorar a escrita são boas e importantes. Tenho as minhas e também as sugiro para minhas orientandas e amigas que estejam passando pelos entraves desse processo.
Mas sinto que, apesar dos métodos ajudarem, eles não fazem soltar as amarras da desautorização. E, aí, até conseguimos escrever, apenas que essa escrita ainda não é completamente nossa, ainda não é completamente autoral, e pode ser mesmo mecânica, burocrática, suficiente para cumprir ritos acadêmicos, porém não suficientes para nos aproximar de uma sensação de autoria. Claro que sempre poderemos ter aquela sensação de que a escrita não é boa o quanto queríamos. Sinto, no entanto, que a insatisfação é maior quando a escrita não é autoral, quando sabemos que temos muito o que dizer, temos nossas impressões e críticas sobre o que lemos e encontramos na pesquisa, mas não nos autorizamos a. Essa contenção é um grande gatilho de frustrações.
E aqui vejo duas questões: uma que, sim, os processos de desautorização atingem tantos de nós. Atingem, contudo, de modo mais profundo e constitutivo, aquelas de nós pertencentes a grupos minoritários (afinal, os processos racistas, sexistas, homofóbicos, transfóbicos e capacitistas são também processos de violência psiquicamente constitutivas). Outra que, apesar dessa desautorização acontecer por uma articulação entre processos externos e internos em que os (des)estímulos externos ganham força performativa, o processo contrário tem que ser pessoal. Pode até acontecer junto com um estímulo externo, mas não se pode esperar que venha de fora a autorização. E isso custa. E isso dói e exige muito. Exige o processo inverso de desautorizar aqueles desestímulos e seus autores (que podem ser pessoas próximas a nós), lidar com questões pessoais, psíquicas… Quem consegue passar por isso, fazer isso, dar forma e letra à própria voz, faz coisas lindas na escrita (e nos temas em que escrevo e estudo – raça, gênero, direitos fundamentais, dignidade humana, criminologia – mais interessantes ainda do que as produções daqueles desde sempre autorizados. Ao menos assim eu sinto).
Depois que compreendi isso tudo aí, minha escrita mudou. Ao me autorizar, pude diferenciar procrastinações-sabotagem, procrastinações-desautorização e procrastinações saudáveis de um processo criativo. Essas últimas eu deixo acontecer naturalmente, porque não acredito na escrita-produtividade que não respira, ou não funciona para mim a produção imediata. Escrever, para mim, leva tempo, demora, precisa de maturação. Os outros dois, só muita análise e muita autocrítica e coragem para reconhecer que eles acontecem e ir superando-os um a um enquanto e quando acontecem, sabendo que, sendo eles parte de processos que me constituíram que surgem como sintomas, não serão completamente “vencidos”, mas, uma vez elaborados, posso lidar com eles.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
(Reviso) O. Tempo. Todo.
Essa entrevista, por exemplo. Escrevi e reli e reescrevi algumas vezes (e sei que enviarei o arquivo querendo revisar mais). Pegando algumas coisas que estão nela espalhadas, dá pra juntar minhas impressões sobre o escrever: é um trabalho, exigente, difícil e artesanal. É um processo de autorização pessoal, de libertação da autoria. É um processo circular e isso requer escrever, revisar, reescrever, ler, reler. Eu volto ao mesmo texto a todo tempo. Na verdade, olho-o como olho os textos que leio e uso como fontes: coloco-me a tarefa de me apropriar do que leio, algo a ser tomado como moldável, maleável. E algo para o que olho como, primeiro, fonte e objeto de perguntas e pode ser que eu não consiga responder todas as perguntas colocadas nele e para ele (o texto), mas é nelas que me foco nessa apropriação dos textos e não é diferente com os meus. Isso exige também uma prática de desapego: nessa de reler e rever com olhar questionador, a gente vai precisando desapegar do que produziu pra refazer, apagar e, na hora que o prazo chega, parar.
Gosto de ter amigues leitores e com quem procuro dividir os textos. Na tese, tive algumas pessoas que me ajudaram, lendo ao longo do processo e debatendo ideias, ou fazendo uma revisão final. Só não mandei para uma profissional para revisão de ABNT e português – o que obviamente foi um erro – porque uma hora precisei considerar terminada a revisão pós-banca, precisava abandonar aquele texto de vez ou ele nunca sairia por sempre querer revisar mais e mais. Não cometerei esse erro de novo…
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Como disse acima, não escrevo tudo no computador direto e organizadamente. Sou meio analógica, meio digital. Mantenho algumas “plataformas” das duas naturezas: um caderno de fichamentos/resenhas à mão, para as leituras. Um caderno de anotações livres, rascunhos, ideias, esquemas, devaneios que me acompanha até o fim. Uso-o inclusive quando a escrita “formal/oficial” trava: começo a escrever à mão pra ver se surgem novas conexões e ideias. Também uso o gravador do celular. No trabalho no computador, mesmo ainda estando na fase Word e não tendo começado a usar editores de texto com mais recursos voltados à escrita acadêmica, gosto de, pelo menos, um pouco de organização (alguma tem que ter no meio desse caos). Montei uma biblioteca virtual grande, dividida por temas e autoras/es que me facilita bem a consulta. E faço o mesmo com arquivos de escrita: separo cada trabalho em vários arquivos e a divisão pode ser por partes (capítulos, subitens de artigos) ou por temas que quero abordar. Só depois vou juntando e conectando para formar o texto integral.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Não faço a menor ideia do que ou como seria cultivar hábitos para me manter criativa. Sei que minha cabeça está sempre “por aí”, sou nessas ainda a criança que fala sozinha e cria os próprios mundos. Só não vejo isso como hábito que cultivo, sim como sina ou “ela é assim mesmo”. Yoga e análise me ajudam a, ao menos, elaborar o que é isso pra não me perder nos devaneios.
Mas acho que, tentando um pouco pensar no que tem me estimulado hoje, eu diria o contato com estudantes, jovens pesquisadoras, alunas e alunos de graduação. Quando a gente se deixa provocar por essas pessoas, saindo do lugar de “eu vou te ensinar o que é escrever” e ouvindo e lendo o que elas têm a dizer, não há como não ter novas ideias surgindo e é esse contato que no último ano me manteve acesa e alerta na vida acadêmica.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Essa pergunta é a mais difícil de responder. Primeiro porque defendi minha tese recentemente, em março de 2017. Essa proximidade faz com que eu ainda acredite que aquele processo foi adequado e me deixou bastante feliz. Foi com a escrita da tese que me reencontrei com a escrita como prazer, porque se fez escrita autoral. Mas aí, se penso em o que falaria para mim mesma em outras situações, como a de minha dissertação por exemplo, a dificuldade não some. Por outro motivo agora, o de que entendo que aquela eu ali fez o que pode e que descobri meu caminho na escrita porque passei por cada uma dessas etapas. Sim, muitos dos meus textos anteriores cumpriam com as técnicas e formas da escrita acadêmica, mas por lhes faltar o sopro autoral eram pouco mais que esse fazer técnico. Não entendo, contudo, que isso possa me fazer dizer “eu faria diferente”. Eu fiz o que deu, o que me permitia e compreendo que o que fui ganhando não substitui a forma anterior de fazer e sim me permite ir somando experiências e técnicas. Acho que é essa eu de antes que tem a me dizer “que bom que não desistiu, que bom que conseguimos”. Acho que a gente pode se libertar dessa carga de olhar para trás como sábios que irão iluminar o passado e como se o presente fosse sempre evolução. Dá para ler as próprias experiências sem ser tão linear e conversar com esses eus desse outro modo. É o que tento.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Agora estou querendo apenas silêncio, acho. Tenho dado andamento a coisas que ficaram paradas com a tese e mesmo trabalhado para publicá-la (em artigos e em livro) ou usar o que desenvolvi ali. Nada muito novo, nenhum “projeto”. Acho estranho também pensar em “livros que não existem e eu gostaria de ler”. Há tanto escrito com que nem pude ainda ter contato, que me sentiria arrogante dizendo o que ainda não foi escrito.
Estou procurando o ritmo ainda. A academia tem dessas dinâmicas de “vitrine”, em que parece que precisamos anunciar sempre os 459 projetos que temos (antes mesmo que eles comecem, antes mesmo que eles resultem em algo, arrotando nossos novos interesses e leituras e exibindo-os. E alguns ainda querem te convencer de que importa muito ter e fazer muitas coisas ao mesmo tempo). Eu estou exercendo a resistência de dizer que não tenho ainda nada novo, só aproveitar um pouco de silêncio e quem sabe exercer a mineiridade de quem produz em silêncio.