Camila Prando é professora da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília.
Despreze os discursos irreais que circulam no ambiente acadêmico de que há pessoas geniais que escrevem coisas geniais, porque isto é uma marcação de poder masculina, elitista e branca, que permite que pesquisadores medíocres se sintam grandes homens, e que pesquisadoras interessantes tenham medo de ser autênticas.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Rotina é uma palavra um pouco fora de lugar para mim. Sou mãe de duas crianças, e junto com meu companheiro nos ocupamos com as tarefas do trabalho reprodutivo. E nesta convivência diária, imprevistos são nossa rotina.
Procuro guardar as manhãs para estar com as crianças. Se preciso resolver questões de trabalho, deixo para tratar de coisas estritamente burocráticas e mecânicas neste período. Mas se estou trabalhando com algum texto, as ideias podem vir a qualquer tempo e, por vezes, eu me sento para anotar perguntas, problemas ou encaminhamentos importantes, para que nos períodos de maior silêncio e concentração eu possa desenvolver.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Já tive ritual para preparar a escrita. Hoje em dia meu único ritual é ter tempo disponível e solitário. O que costuma ocorrer no período da tarde ou no período noturno, depois que as crianças dormem.
Meu horário mais produtivo para produzir sempre costumou ser na madrugada. Hoje em dia não tenho condições de avançar durante a noite, pois preciso acordar cedo. Portanto, não tenho tido condições de trabalho ideais. Mas faço o que posso especialmente no período da tarde, quando estou só.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Em virtude do tempo solitário escasso, eu tenho escrito um pouco todos os dias. Mas para finalizar os textos, preciso de um tempo concentrado mais estendido, o que não é sempre possível. Ano passado rompi o ligamento do tornozelo e consegui, com isto, vinte dias acamada. Foi um período incrível para finalizar os textos que estavam na gaveta aguardando por um fôlego concentrado.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu começo a escrita assim que começo a pensar num problema de pesquisa. O processo se dá simultaneamente. Faço muitas anotações, trago resenhas e notas de textos, sem uma ordem específica. Até que decido que as questões estão mais delimitadas e que posso dar uma configuração de texto para as notas que acumulo. Isto ocorre especialmente quando escrevo textos com inclinações mais epistemológicas. Mas embora sejam textos escritos apenas por mim, gosto de circular entre algumas pessoas de confiança para conversar. Também gosto de conversar sobre o processo da elaboração do artigo com amigas e amigos.
Quando a escrita está associada a projetos com pesquisas empíricas delimitadas, o processo tende a ser mais dirigido e simples. Seja porque a escrita coletiva exige uma disciplina para o diálogo entre as coautoras, seja porque o trabalho com a empiria organiza melhor a estruturação do texto.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Já tive muitas travas para escrever, especialmente durante o mestrado e nos anos seguintes. Fui mais uma das pesquisadoras que passou tempos assombrada pelo mito da genialidade e do trabalho pronto tão reproduzido na academia. Neste tempo perdi a oportunidade de exercitar a escrita. E entendo que apenas com o exercício da escrita aprendemos a escrever. Sinto que ainda não sei escrever, ou escrever do modo como desejo. Mas tenho a tranquilidade para visualizar cada texto como um momento de aprendizagem de um estilo próprio e autoral.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu reviso o texto todas as vezes que retomo a escrita do ponto onde parei. Isto faz com que eu me perca no número de vezes que volto a ler o texto. Ao final, gosto de compartilhá-lo com algumas pessoas antes de enviá-lo para ser publicado.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Atualmente escrevo quase tudo no computador. Sinto que perdi a destreza e a habilidade para escrever no papel.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias partem de muitos lugares. Eu me reconheço como uma pensadora de fronteira. Sou muito pouco disciplinar para pensar os problemas. Leio artigos científicos de disciplinas diversas, leio muita literatura. E gosto muito de conversar e de observar. Tudo está relacionado. Mas acho que são especialmente as vivências na Universidade, nos projetos que desenvolvo, nas lutas políticas nas quais me engajo, no espaço doméstico e nos espaços afetivos que me despertam questões para serem trabalhadas. É da sensibilidade para o mundo no qual convivo que meus interesses e desejos de pesquisa surgem.
Há um caso bastante explicativo. Minha aproximação com o tema de estudo da branquidade se deu por um conjunto de fatores. A minha convivência na UnB com as perguntas e os confrontos sobre questões raciais, mas especialmente a criação dos meus filhos me levaram até uma necessidade de me deparar com os estudos sobre branquidade. Tenho uma filha de 6 anos e um filho de 4 anos e conforme eles cresciam, eles espelhavam as estruturas de privilégio branco no qual vivem. E todo o discurso antirracista que eu pudesse desenvolver em casa não dava conta das experiências e vivências marcadas pelo privilégio que desde cedo eles traziam com suas perguntas e seus vieses. Isto foi marcante para que eu buscasse quase existencialmente entender, estudar, ler sobre uma pedagogia da branquidade. Ao mesmo tempo isto ressoou diretamente sobre todas as questões teóricas que eu havia pensado até então, especialmente nos estudos criminológicos.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de sua tese?
A escrita da minha tese foi uma escrita mais livre. Eu havia acabado de parir minha primeira filha, e depois daquela experiência, soube colocar a tese no seu lugar devido, sem grandes dramas ou neuroses tipicamente acadêmicas.
Mas se eu pudesse voltar para antes do doutorado, eu diria para mim: escreva, escreva, escreva. Despreze os discursos irreais que circulam no ambiente acadêmico de que há pessoas geniais que escrevem coisas geniais, porque isto é uma marcação de poder masculina, elitista e branca, que permite que pesquisadores medíocres se sintam grandes homens, e que pesquisadoras interessantes tenham medo de ser autênticas.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu gostaria de fazer muitos projetos que até o momento são parágrafos registrados no arquivo “rastros e possibilidades”. Tenho muito mais desejos e ideias do que tempo. Mas sei que maturam com o tempo. Uma das questões que atravessa todos estes projetos é aprender a escrever com a liberdade de quem se sente à vontade de expor os caminhos do pensamento, longe da assepsia de uma academia hegemônica.
Acho que há muitos livros que existem e ainda não li.