Camila Caldeira Nunes Dias é doutora em sociologia pela USP e professora adjunta da UFABC.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Tenho uma rotina de acordar cedo (em geral, por volta de 7 horas) e fazer café. Faço uma garrafa térmica de café, ao mesmo tempo em que lavo a louça do dia anterior. É um ritual quase diário, incluindo sábados, domingos e feriados – exceto nos dias em que dou aula de manhã ou tenho algum outro compromisso muito cedo e que me impede de fazer isso. Após fazer o café, eu sento à frente do computador com a garrafa térmica ao meu lado e começo. Primeiro dou uma olhada rápida e geral em alguns sites de notícias, e-mails, facebook etc. Em seguida, inicio o trabalho propriamente dito. Em geral, respondendo a e-mails e, depois, fazendo outras atividades a depender dos prazos e das urgências.
Essa rotina matinal para mim é tão importante e acabou se tornando tão atrelada ao meu dia que quando não consigo tomar café (o cafezinho preto mesmo, não o breakfast, que já não tem espaço mesmo nesta rotina…) fico com dor de cabeça e parece que falta alguma coisa no decorrer do meu dia. E por esse mesmo motivo tenho extrema dificuldade de programar quaisquer atividades matutinas (não impositivas), como exercícios físicos. Para mim é impensável sair de casa cedo para me exercitar, por exemplo, sem ter antes tomado a “garrafa” de café que preparo com tanto carinho.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Desde que minha filha nasceu (há quase 8 anos) o horário em que trabalho melhor é mesmo pela manhã. Antes disso, eu trabalhava melhor à noite. Mas as rotinas relacionadas à maternidade acabaram por alterar bastante as rotinas de trabalho. Atualmente, quando chega o fim do dia ou início da noite é o momento em que, em geral, vou buscar minha filha na escola e, então, procuro me dedicar a ela, aproveitar sua companhia. Assim, primeiro vou responder como “termino” o dia: desligo o computador e vou buscar minha filha na escola. Então, eu trabalho melhor pela manhã e também à tarde. Claro que tudo depende do tipo de trabalho – escrever, fazer ou participar de reuniões, tomar decisões, orientar, preparar ou dar aulas, trabalhos administrativos, relatórios, pareceres – e tem dias que alguns destes tipos de trabalhos saem melhor do que outros. Ou seja, tem dia que alguns deles não sai de jeito nenhum.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu não consigo escrever “picado”. E isso acaba sendo um problema, porque tenho que me organizar muito bem para deixar alguns dias da semana – um ou dois, raramente três…- exclusivamente para escrever. Eu não consigo escrever pensando que daqui meia hora ou uma hora eu vou ter que parar para fazer outra coisa, sair para uma reunião, uma aula, viajar para um evento. Por isso, quando estou com a agenda cheia de compromissos acabo priorizando, nos intervalos dos compromissos, fazer tarefas mais rápidas, que exigem menos concentração. A principal delas é responder e-mails… e-mails e e-mails… Isso acaba tomando uma parte significativa do nosso tempo, mas faz parte. Afinal, são as relações pedagógicas, administrativas, burocráticas, acadêmicas, enfim, que são constitutivas do nosso trabalho. Então, a escrita propriamente dita acaba ficando “prejudicada” em períodos que esses compromissos assumem um volume maior – e, diga-se de passagem, que esses “períodos” constituem grande parte da minha jornada… O que eu tenho feito no último ano e tenho conseguido com “relativo” sucesso – salvo alguns períodos mais conturbados – é reservar na semana, um ou dois dias sem reuniões, sem tarefas “pontuais” a serem feitas. Deixar esses dias inteiros, exclusivamente para a escrita (no momento, estou escrevendo um livro em parceria com um amigo e esse livro é a prioridade nestes momentos de concentração). Assim, tento encaixar todas as tarefas pontuais nos demais dias, com as demais tarefas. Idealmente nem e-mails eu deveria responder nos dias de “concentração”, mas, aí também eu já não consigo porque, afinal, não vivemos no mundo ideal e mesmo nesses dias de concentração não é possível bloquear todas as demais demandas. Não trabalho, portanto, com metas diárias. Tento estabelecer prazos para enviar trabalhos, porque, do contrário, aquela atividade ficará sempre sendo postergada. Aliás, participar deste lindo projeto seu, cujo convite muito me deixou honrada, exemplifica bem essa questão: como não tinha uma data definida, foi sendo postergado, sempre com tarefas urgentes ou com prazos curtos. E, ao final das contas, já se passaram cinco meses desde o recebimento do seu convite… (que vergonha).
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Atualmente – diferentemente da época do mestrado e doutorado, por exemplo – o processo de escrita e a pesquisa propriamente dita são atividades que eu faço em meio a um turbilhão de outras – como mencionei antes. Parece repetitivo, mas acho que isso é fundamental para situar esse processo. A passagem da pesquisa para a escrita implica em tempo de “maturação”, que envolve ler – ler sempre e muito e nunca o suficiente! – e estabelecer conexões entre os dados coletados em pesquisa de campo (documentos, entrevistas, conversas) e a bibliografia da área e/ou os aportes teóricos. Trata-se de um trabalho artesanal, como diria C. Wright Mills, um artesanato intelectual em que um elemento fundamental é a imaginação sociológica. Não trabalho com dados quantitativos e com metodologias que envolvem o estabelecimento de relações causais e/ou de conexões de causa e efeito entre determinadas variáveis. Eu trabalho com uma perspectiva qualitativa em que tento interpretar e compreender os dados coletados dentro de um específico quadro teórico-metodológico. Assim, é difícil descrever o movimento da pesquisa para a escrita. Ou melhor, é até simples descrever, mas é difícil dizer “como” esse movimento ocorre. A elaboração de relatórios de pesquisa – em geral, exigência em projetos de pesquisa que são financiados por agências de fomento – acaba impondo esse movimento e eu acho que isso acaba sendo bom porque faz com que eu possa estabelecer um parâmetro temporal para elaborar essas reflexões, ainda que elas sejam sempre parciais e não definitivas. Em geral, o relatório que é elaborado é uma primeira interpretação e que, depois, será aprofundada e, em geral, dará ensejo a várias abordagens – isto é, diversos textos, sejam eles capítulos, artigos, papers etc.
Eu vejo o processo de escrita como resultado de uma pesquisa como um “processo”, um “working in progress” permanente. Ao menos no meu caso cujo campo de pesquisas permanece relativamente próximo desde o mestrado. Trata-se de um acúmulo de conhecimentos, de informações, de dados e esse é um ponto muito importante da produção do conhecimento: o acúmulo que advém não só do nosso próprio trabalho evidentemente, mas essencialmente do trabalho de colegas, de outros pesquisadores, de alunos e que muitas vezes, propõem outras abordagens, outras perspectivas teóricas, metodológicas, empíricas. Todo conhecimento é cumulativo. E, ainda, o mais importante na minha opinião: esse acúmulo de conhecimento envolve não só as perspectivas em relação às quais eu me aproximo ou me identifico mais; ao contrário. Muitas vezes, as abordagens que não apresentam tanta proximidade com a nossa própria são essenciais para o desenvolvimento deste campo específico do conhecimento. Através do debate acadêmico honesto, claro, transparente – ou seja, da crítica aberta, com a citação do referido trabalho, com a problematização. Isso é constitutivo do campo acadêmico e da acumulação de conhecimento. Enfim, o diálogo e o debate são essenciais e constitutivos da produção do conhecimento científico.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu não tenho medo de não corresponder às expectativas e nem ansiedade de trabalhar em projetos longos. A minha ansiedade – terrível! – é de trabalhar dentro dos prazos apertados que acabam nos sufocando. Quando se tem tempo, melhor. Quanto às expectativas, eu acho que já “apanhei” tanto – em termos de críticas – que hoje já considero que isso é constitutivo do trabalho acadêmico. Portanto, vejo as críticas sempre com muita tranquilidade, buscando aprender com elas e é isso o que, em geral, acontece. Claro que há críticas que apelam para elementos não acadêmicos ou elevam as questões “acadêmicas” – teóricas, metodológicas, empíricas, técnicas – às questões e questionamentos de cunho pessoal, político, ético. Isso já aconteceu muitas vezes e é claro que chateia. Chateia sobretudo a falta de ética, a incapacidade de debater de maneira transparente, clara, olhando no olho ao fazer a crítica e obter a resposta. O debate que eu gosto e que eu acho que precisa ter é assim: olho no olho. Com respeito, mas com a possibilidade de cada um ou cada uma colocar suas posições, seus argumentos. Isso é constitutivo do mundo acadêmico e eu já me acostumei a essas condições. Ou seja, não “corresponder” às expectativas é parte constitutiva do trabalho acadêmico até porque nunca iremos mesmo atender às expectativas de todo mundo. Portanto, atualmente, eu busco fazer meu trabalho a partir das expectativas que eu mesmo tenho para com ele – e que são muito altas, exigentes (risos) – mas sabendo que desagradarão a tantas outras pessoas. Paciência. Eu penso será uma oportunidade para o debate (o chato é quando as pessoas, ao invés do debate, preferem a fofoca… mas faz parte, também…).
Quanto às travas da escrita… acho que não tem muito o que fazer. Quando trava, travou. O que ocorre, muitas vezes, é que não há margem de tempo suficiente para “respeitar” as travadas. O que eu faço é escrever mesmo assim. Em geral, quando estou “travada” e escrevo mesmo assim, o texto sai horroroso. Ele será reescrito, com certeza. Mas, de toda forma, acho que é um processo necessário. Você escreve, mesmo que saiba que escreverá tudo novamente e de uma outra forma, no dia seguinte. Outras vezes, quando o prazo permite, quando trava a escrita, vou fazer outra coisa: ler, analisar os documentos coletados, responder e-mails, dar uma passeada nas redes sociais, nos sites de notícias, enfim…
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu vou revisando, relendo, reescrevendo durante a própria produção do texto e não necessariamente quando está pronto. Mas, quando está pronto, eu releio uma ou duas vezes, no máximo. Porque a cada releitura haverá sempre coisas a se ajustar, a melhorar. É um processo que não tem fim. Chega uma hora que precisa por um ponto final e encaminhar – ponto final até a leitura do parecerista… Atualmente, uma boa parte dos textos que escrevo são em colaboração com outros pesquisadores. Então, é sempre um trabalho conjunto, efetivamente. Cada um vai escrevendo e trocando seus textos para a leitura e intervenção do outro. E assim o texto vai se produzindo. Mas quando escrevo sozinha, não tenho o hábito de enviar para alguém ler o texto antes publicar. Aliás, nunca tive, mesmo quando ainda estava na pós-graduação.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo direto no computador. Só escrevo à mão quando surge uma ideia do nada, num lugar qualquer e que quero registrá-la, fixá-la para que ela não “saia correndo” da cabeça e se esfumace, virando esquecimento. Então, às vezes acontece um “lampejo”, uma percepção que não tinha antes e que considero que pode gerar boas reflexões. Em eventos (palestras, seminários, congressos) é mais comum isso ocorrer. Estou ouvindo outras pessoas e a partir destas interações, das trocas que tais momentos permitem e surgem novas ideias, novas formas de olhar para o que pesquisamos, perspectivas para a qual não nos atentamos antes. Mas as ideias surgem também no ônibus, no metrô, na fila do banco… e aí eu anoto em qualquer pedacinho de papel que estiver ao meu alcance. Fora isso, eu escrevo (e reescrevo) direto no computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Os meus hábitos consistem basicamente em passar os olhos por alguns sites de notícias ou jornais e acompanhar as notícias mais específicas sobre os temas com os quais trabalho – violência criminal, sistema prisional, polícia, facções, sistema de justiça criminal. Por outro lado, não me fecho numa determinada perspectiva teórica como se essa escolha fosse uma profissão de fé a qual eu tenha que me manter presa o resto dos meus dias ou ao menos durante minha vida acadêmica. Eu gosto de ler livros ou textos propriamente teóricos e de matizes totalmente diferentes e de pensar se é possível, conveniente, adequado e/ou válido interpretar as questões empíricas com as quais trabalho à luz dessas “novas” lentes teóricas. Quase sempre que estou lendo esses textos fico tentando “operacionalizá-los”. Pra falar a verdade, não sei se isso é em si algo adequado – certamente muitos colegas da academia ficariam chocados com essa “instrumentalização” – mas a minha cabeça acaba trabalhando assim, não posso negar. Bem, eu acho que esses hábitos não me tornam ou mantêm criativa, mas por vezes esse exercício me dá estalos, ideias e então tento novas experimentações teóricas. Eu gosto desses desafios e, como disse, não vejo alinhamento teórico como profissão de fé que exige fidelidade até o fim da vida. Inclusive, neste momento estou numa empreitada dessas, de nova experimentação. Mas, ainda não tenho segurança de que dará certo, ou seja, de que será analiticamente viável o “experimento” que estou começando, que ele terá possibilidades de trazer novas luzes ou novas cores às questões empíricas com as quais trabalho.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Nunca vou esquecer de uma frase de meu orientador, professor Sergio Adorno, numa situação em que eu lamentava o cansaço em virtude da escrita da tese: “aproveite esse momento, porque o doutorado é praticamente a última oportunidade que você terá de se dedicar integralmente a uma pesquisa”. Eu me lembro disso quase todos os dias… De fato, após a pós-graduação, quando a gente começa a carreira acadêmica propriamente dita, ou seja, como docente de uma determinada instituição, temos que conciliar a pesquisa com diversas outras atividades que acabam influenciando de maneira muito contundente o processo de escrita. Porque nossa cabeça tem que se dividir em dezenas de outros compromissos, preocupações. Por vezes escrevemos vários textos ao mesmo tempo; lidamos com várias pesquisas simultaneamente; orientamos projetos de pesquisas totalmente diferentes uns dos outros e dos nossos. Também temos que ler para preparar aulas. E temos muitos compromissos burocráticos. Enfim, isso acaba impondo condições bem menos adequadas, digamos assim, das condições que, em geral, temos durante o doutorado. O doutorado é um mergulho profundo na pesquisa, lidamos com aquele tema – e, em geral só com ele – durante anos. Especialmente quando temos bolsa e nos dedicamos integralmente à pesquisa (que foi o meu caso). É solitário, mas permite profundidade. Depois do doutorado, essa profundidade passa a ser muito mais difícil – evidentemente, falo do meu caso. Por outro lado, carregamos uma bagagem que nos torna mais maleáveis e com mais capacidade de acompanhar e apreender o que está sendo produzido no campo.
Sobre a minha tese, o que eu faria diferente hoje: eu teria dado mais espaço e deixado aflorar mais as contradições e os paradoxos que estão presentes ali, mas que de certa forma foram sufocados pela minha interpretação. Eu daria mais ênfase à precariedade que é inerente e constitutiva dos fenômenos e das dinâmicas que analiso. A precariedade está presente no texto, mas de forma muito tímida. Como se eu quisesse enterrá-la sob o corpo teórico e a interpretação que construí.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
São muitos os projetos que ainda gostaria de realizar e muitos livros – que existem, inclusive parte deles eu tenho – que gostaria de ler. Muita, muita coisa. Sobre os projetos. Para além de muitos projetos de pesquisa que tenho em mente, tenho um sonho de realizar um projeto de extensão que permita trazer presos ou egressos do sistema prisional para a universidade. Poderia ser através de um curso que envolvesse questões de direitos humanos, cidadania, mobilização, resistência. Não sei bem, mas o objetivo central seria abrir as portas da universidade pública para esse público que, em regra, é absolutamente alijado das condições de acessar a educação pública e, principalmente, o ensino superior. A quase maioria deles passou poucos anos na escola – em geral uma escola ruim, abandonada, degradada – e nunca colocou os pés numa universidade, não tem sequer perspectiva de fazê-lo. É só um sonho mesmo, pois o atual cenário político e social pelo qual passamos é marcado por impressionantes retrocessos em todos os campos da vida social e de ataques intensos aos direitos dos trabalhadores, às mulheres, às populações mais vulneráveis e também à universidade pública, pela criminalização dos movimentos sociais e entidades que lutam e defendem tão somente o cumprimento da lei e dos direitos nelas assegurados a todos. Assim, eu não tenho dúvidas da impossibilidade concreta de construção dessa universidade pública, verdadeira e completamente inclusiva e plural neste momento. Porque ser inclusiva implica, na minha visão, em não excluir ninguém. E os jovens e as jovens pobres e negras/negros que passaram ou que estão nos cárceres brasileiros acumulam em si mesmos, nos seus corpos e em suas trajetórias de vida, uma multiplicidade de exclusões, segregações, discriminações que aumentam ainda mais os abismos gigantescos que os separam do universo da educação formal e de participação de um espaço em que o debate, o diálogo e a reflexão – em lugar da violência – ainda tem condições de florescer. Esse é o projeto que eu gostaria de fazer.