Camila Assad Quintanilha é escritora, desenhista, pintora e tradutora, autora de Desterro (Macondo).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu não sou uma pessoa matutina. Durmo tarde e dificilmente acordo antes das nove. Aceitei meu relógio biológico, já tive fases de achar que estava perdendo horas do meu dia, mas não consigo ser produtiva às sete da manhã. Logo que acordo checo o meu e-mail e as malditas redes sociais e muitas vezes anoto os meus sonhos, mesmo que sejam nonsense. Tenho filho pequeno, então na verdade as manhãs são em função dele, organizar a rotina da casa e toda essa poesia não tão romântica do dia a dia. (risos)
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Trabalho melhor depois das 18 horas. Isso desde pequena, e meu pico máximo de energia é por volta das 22 horas. As primeiras horas da madrugada são bem eficientes para mim. É quando sinto que as coisas fluem, que o trabalho rende. Apenas coloco um despertador para não me prolongar demais. Acho importante ter a hora de encerrar, ir desacelerando o cérebro pelo menos meia hora antes de me deitar. Tenho uns rituais de preparação para a escrita que beiram superstições, gosto de trabalhar na mesa de jantar, uso sempre a mesma cadeira, e coloco meias nos pés antes de começar. Preciso estar me sentindo confortável termicamente. Bebo bastante água antes (e durante) o processo. E gosto da companhia do meu gato dormindo na cadeira ao lado. É um espectador silente, mas ao mesmo tempo afasta a sensação de isolamento.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo todos os dias mesmo que seja meia lauda, mesmo que eu apague tudo no dia seguinte por achar insuficiente. A constância é fundamental. Não tenho uma meta diária, mas todos os dias me proponho a escrever, ou desenhar, qualquer coisa que exercite a criatividade e ajude a organizar meus pensamentos. Tenho uma meta semanal de produzir pelo menos quatro poemas, mas não me frustro se não consigo. O importante é o medidor qualitativo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Já caí na besteira da imaturidade de enxergar escrita como inspiração. Quando comecei a enxergar a literatura com seriedade e com pretensões profissionais percebi que deve haver metodologia, horas de dedicação, discussão entre os pares, estudos de referências. Então hoje o cuidado que tenho com o meu processo é bem maior. Tenho processos diferentes para cada gênero literário. Na poesia tudo começa através percepção da realidade, vou compilando palavras, frases, desenhos. Depois de transcrever para o computador, procuro trabalhar bastante a forma, os vocábulos, estudar novas possibilidades. Tento organizar em eixos temáticos, criar pequenas coletâneas, fazer com que os poemas dialoguem entre si. Já na prosa há necessidade de uma pesquisa mais aprofundada, então estabeleço uma metodologia mais acirrada, sobretudo se há criação de personagens. Faço um desenho de cada um deles, crio as roupas, faço playlist das músicas que eles ouviriam, converso com pessoas que me pareçam com aquela personagem que quero dar voz.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Essa questão da procrastinação já me incomodou bem mais quando eu era mais jovem. Tinha a sensação de que deveria estar em constante produtividade e qualquer dia que se passasse sem escrever seria um dia perdido. Hoje percebo que tenho fases. Há momentos de menor produção, mas encaro como uma preparação para a palavra que vai sair. Os pensamentos e sentimentos estão acontecendo o tempo todo, as percepções estão ocorrendo, na hora certa aquilo vai sair na forma escrita. O tal do ócio criativo é realmente importante. A ansiedade é um traço forte na minha personalidade, mas já a converti em amiga íntima. Respeito e aceito sua existência e já sei como fazer para que ela não me sabote. Penso que cada projeto precisa do seu tempo para acontecer, e esse tempo é muito variável. Um mês, um ano, dez anos? Nunca se sabe. Mas no fim isso agrega qualidade à obra.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Ultimamente tenho dado mais valor ao processo de revisão do que ao da produção em si. Aprendi sobre a importância de decantar o texto, respeitar o tempo de maturação do poema, experimentar formas diferentes, novas pausas, a questão da pontuação, o corte dos pronomes. É um pouco exaustivo, tem hora que quero me livrar logo daquilo, mas sei quanto isso é fundamental. O texto não acadêmico nunca vai estar totalmente pronto. Sempre há brechas para novas alterações, novas interpretações. Tenho a sorte de ter excelentes amigos escritores com olhares críticos bem apurados, esse olhar de fora é muito importante. Às vezes uma mínima observação já me auxilia bastante nesse processo de finalização.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu tenho hábitos bem analógicos, ando sempre com papel e caneta. Vou anotando frases, fazendo desenhos, incorporando ao caderninho tudo o que vejo. Tenho o cotidiano sempre registrado, e essas percepções constantes me auxiliam muito nos processos criativos (ou minimamente me ajudam a digerir o caos que me permeia, sensações impalpáveis que de certa forma me incomodariam mais se não fossem concretamente apontadas num papel). De uns dois anos para cá tenho usado o bloco de notas do celular. Muitos pré-poemas nascem nele, é uma ferramenta simples, fluida. Depois mando para o meu e-mail e de lá encaminho para o Word, onde consigo trabalhar melhor e finalizar as ideias. Gostaria de entender mais de tecnologia, usar softwares mais avançados de criação de imagens, saber editar vídeos. Poderia ser interessante para agregar inovações ao desenvolvimento criativo.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Sou uma pessoa extremamente sensível, sinto que sou uma esponjinha absorvendo tudo ao meu redor. Essa sensibilidade apurada me fornece muito material para o trabalho. É clichê reafirmar isso, mas de fato estamos o tempo todo absorvendo matéria. Sou aquela que está sempre prestando atenção na conversa da mesa ao lado, sempre observando as pessoas no metrô, prestando atenção nas calçadas, nas árvores, nos pássaros. No mais, todos os livros, filmes, músicas, papos de bar, sessões de análise me servem como referência, ainda que de maneira indireta, ainda que de forma subconsciente. Não me preocupo em me manter criativa, mesmo porque sinceramente queria dar uma desligada nessa observação constante da realidade, é exaustivo! Mas isso se deve ao fato de eu escrever poesia, crônica e prosas mais realistas. Talvez se eu trabalhasse com ficção científica ou com dramaturgia seria uma preocupação.
O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Meus primeiros textos são muito confessionais. Essa carga autobiográfica faz com que a escrita fique empobrecida. Gostaria de saber disso antes. Mas ainda me vejo numa posição de aprendiz (e espero sempre me ver assim, afinal o aprimoramento da escrita como arte não se finda). Me digo diariamente: “permita-se ousar mais. Experimente novas técnicas, novas linguagens, outros eu-líricos. Não tenha medo de se expor”. Aliás, essa questão da exposição é algo que venho trabalhando bastante ultimamente. Como escritora mulher ainda tenho barreiras grandes. O meu sensor autocrítico é altíssimo. Felizmente tenho encontrado redes de apoio, me fortalecido junto a colegas, é algo maravilhoso! Bom, isso é uma coisa que diria a mim no início: “busque pessoas parecidas com você, procure sempre estar inserida em grupos que te fortaleçam como escritora e como pessoa”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Nossa, existem vários projetos. Tenho uma tendência de querer fazer várias coisas, vários cursos, me jogar de cabeça em milhões de planos, tudo ao mesmo tempo, e depois acabo me enrolando; uma amiga me falou uma frase que adotei como lema: “você precisa pirar com parcimônia”. A curto/médio prazo estou trabalhando um segundo livro de poesias e um livro de prosa. Estou fazendo traduções de poetas norte-americanas, quem sabe isso se torne algo mais sólido. Quanto à questão do livro que não existe não tenho nenhum em mente, o que tenho é aquela sensação de que tudo o que é incrível no campo das artes já foi feito. O que é uma falácia, claro, porque invariavelmente coisas novas e incríveis estão surgindo. Mas tenho uma lista enorme de livros que existem e que pretendo ler.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Não acredito em literatura sem planejamento. É como uma cirurgia, você tem que saber o passo a passo, onde pretende chegar, os instrumentos necessários, a equipe que vai estar envolvida. É um processo cheio de etapas e não dá para determinar muito bem quando tempo cada uma vai levar. Começar para mim não é problema, ando sempre grávida de ideias, anoto pensamentos e estou sempre no mood criação. Honrando esse esquema de saber para onde estou indo a última frase também já está predefinida, não a frase ipsis litteris, mas o propósito de todo processo. O trabalho mesmo é o meio, preencher as lacunas entre a ideia e a finalização.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Eu adoraria ter apenas um projeto, mas acabo não conseguindo por questões de viabilidade financeira e sobretudo da minha própria mente zapeante que me faz escrever poemas o tempo todo, redigir uns contos testando o aleatório no processo criativo, estruturar um romance sobre o efeito da passagem do tempo em um casamento, testar umas crônicas mais leves e com humor, traduzir uma escritora australiana, desenhar uma capivara pra uma amiga, pintar uma tela em branco que achei em casa, fazer roteiros pra um possível curta metragem sobre mulheres nas cidades, escrever uma carta pra amiga que mora na Groenlândia, planejar uma intervenção urbana que misture poesia com arte e por aí vou (eu queria estar sendo hiperbólica mas é tudo verdadeiro, inclusive a capivara e a Groenlândia). Eu tenho essa coisa frenética de querer fazer um milhão de coisas, em muitas áreas que não chegam exatamente a divergir – afinal tudo exercita a criatividade – mas vivo com a constate sensação de que a semana me atravessou sem que eu conseguisse dominá-la. Gosto de trabalhar com deadlines porque sei que muita coisa vem nos momentos finais. Infelizmente sou dessa que precisa estar quase se afogando para conseguir realmente findar algo.
O que motiva você como escritora? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
É difícil falar sobre motivação num momento tão crítico do nosso país, em que a arte anda tão desvalorizada e em mãos de pessoas malucas e/ou despreparadas. Se existe uma motivação, ela é não é racional, é mais uma necessidade, parece ingênuo dizer isso, mas é uma forma de sobrevivência emocional. Vou citar a orelha do Livro das Postagens (editora 7letras) do poeta fluminense Carlito Azevedo: “Certa vez Cioran perguntou a Beckett: Por que então seguir escrevendo? “Pela alegria”, respondeu Beckett. Este é o motor”…. talvez seja isso alegria, pela beleza, pela necessidade de expressão, por ser uma forma de resposta ao desconforto e à angústia de estar inserida nesse mundo caótico.
Escrever, para mim, sempre foi natural, sempre fui aquela criança que adorava a aula de gramática e matava as aulas de educação física. Me alfabetizei cedo, percebi ainda bem nova o tesão do lápis criando palavras nos cadernos, depois frases, e depois textos inteiros, então as professoras me diziam que eu escrevia bem e isso foi ficando ao longo da vida escolar. Na adolescência a escrita funcionou como terapia pras dorzinhas do momento, os sonetinhos toscos funcionavam como bálsamos pras primeiras frustrações amorosas. Não tive um momento exato de dizer “eu quero ser escritora”. Comecei com publicações em revistas online, depois em antologias coletivas, um jornalzinho aqui e acolá, só depois vieram as publicações próprias.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
Eu ainda encontro essas dificuldades, para ser bem honesta. Não posso me dar ao luxo de dizer “esse é meu estilo”. Não sei se isso vai existir, e se vier a existir levará anos e anos. Sei das minhas preferências estéticas, por exemplo gosto do hibridismo, das experimentações, refuto as formas mais clássicas, prefiro cada vez mais o quedesconcerta ao contrário do que acaricia.
Bom, sobre influências, tenho que dizer que na minha formação literária escolar tive basicamente contato com obras masculinas. Li muito Camões, Machado, Pessoa, Drummond, os modernistas brasileiros, tudo aquilo que aparece nas apostilas didáticas. Então lembro quando eu tinha 14 anos e surgiu para mim a Clarice Lispector. Li a Hora da Estrela três vezes seguidas, aquilo foi mágico! Hoje ela não é a minha favorita, mas foi a primeira a aparecer e me mostrar uma intensidade e um poder de reflexão sobre si mesma e sobre o universo até então inéditos. Eu tenho a consciência de que minha formação literária básica é formada majoritariamente por escritores homens, brancos, com forte influência eurocêntrica, então hoje eu tento compensar isso de todas as formas, preencher todas essas lacunas de outros pontos de vista e outras referências culturais. Eu aprendo muito com as mulheres que convivo no dia a dia. A leitura e a troca com escritoras contemporâneas têm sido cada vez mais frequente e prazerosa. É muito bom poder conviver com gente de todos os cantos do país, alargar os limites geográficos, sorver um pouquinho da escrita de cada uma.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Poxa, José, apenas três? Isso é uma quase uma tortura, mas vamos lá. Vou optar por autoras mulheres, brasileiras, editoras independentes e tentar descentralizar.
Sem vista para o mar, da Carol Rodrigues (Edith): depois de ler esse livro eu fiquei seis meses seguidos escrevendo contos. Aqui a linguagem não é apenas o meio de transmitir as histórias; ela possui, em si mesma, uma vivacidade e fluidez que embala a leitura. Neste livro não existe visão dicotômica de mundo: as personagens da Carol são sempre multifacetadas, com qualidades que vão além de um discurso moral, econômico ou social. Por mais que a concretude das realidades apresentadas seja parte inerente da história, não funcionam como ponto de partida.Os contos são também permeados de imprevistos, encontros e desencontros – tanto em nível de trama quanto de experiência do leitor.
O Martelo, da Adelaide Ivánova (Garupa): a autora pernambucana que mora em Berlim não tem medo de tocar nas feridas. O livro é dividido em duas partes, na primeira há a voz da mulher estuprada e na segunda da mulher adúltera. Adelaide renuncia qualquer resquício de parnasianismo poético e sabe que a poesia pode nascer de qualquer coisa. Ela também é excelente em subverter as estruturas primárias da poesia masculina com suas musas. Aqui neste livro temos o Humboldt, que é uma espécie de muso que representa todos os homens presentes no nosso dia a dia. Não posso deixar de falar do livro enquanto objeto, que vem com uma fina camada de tinta vermelha e deixa as mãos coloridas depois da leitura, dentro de um significante super potente.
Quarto de Despejo – diário de uma favelada, da Carolina Maria de Jesus (Ática): trata-se do diário da catadora de papel que viveu na favela do Canindé com seus três filhos. Aqui temos um relato cruel da nossasociedade igualmente cruel; não há borboletas ou passarinhos, tudo o que permeia a vida da Carolina é fome, miséria, desigualdade, violência e incerteza com relação ao futuro. É puro realismo com um olhar sensível da escritora. É uma leitura dura, dolorida e necessária.