calí boreaz é poeta, nasceu em Portugal, passou pela Romênia e vive no Brasil. seu primeiro livro é outono azul a sul.
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Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
o problema (se for mesmo um problema) é que o meu dia não começa — porque não termina. isto é, eu nunca ponho um “fim” ao dia, do tipo “vou me deitar”. não… eu luto tanto quanto posso com o sono, numa violenta luta corporal, até que ele — o sono — simplesmente me sequestra e eu caio em qualquer lugar. quando acordo, esbaforida, geralmente fico irritadíssima por isso ter acontecido (de novo) e sempre me prometo que na próxima noite me deito e descanso como um ser humano normal.
em vão, porque depois a madrugada vem chegando e tudo que ela leva e traz é algo irresistível para mim.
(esta é a fase em que me encontro de há um tempo a esta parte. talvez daqui a um tempo eu esteja diferente. espero que sim, porque assim não duro muito.)
bem, por tudo isto, não posso dizer que eu “comece” o dia, tudo é meio que um fluxo contínuo, dias e noites e dias se acendendo uns nos outros.
a minha única rotina matinal é essa de me irritar com o não ter cumprido o que me prometi em relação ao sono. depois disso, é imprevisível. posso continuar escrevendo, fingindo que ainda é de madrugada, até o dia, com todas as suas solicitações, me convencer de que não… posso parar para fazer um belo café da manhã, mas outras vezes não como nada. posso dormir mais um pouco, agora sim, na cama, tentando enganar o corpo. ou ponho-me a trabalhar em algo mais mecânico até me desirritar. ou saio para fazer algo que preciso fazer.
lá para o meio da tarde, começo a ser alguém disposto para o mundo novamente.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
sem dúvida, a madrugada. a própria chegada da madrugada já é, para mim, o ritual de preparação para a escrita. a noite entrando à vontade pela casa.
a música é parte crucial. minha escrita tem (porque a minha vida tem) trilha sonora. aliás, o meu livro outono azul a sul assume uma trilha sonora, no início de cada parte. para além dessa que está explícita no livro, acabei de criar a playlist no spotify com todas as músicas que andam pelos poemas ou que acompanharam momentos da história (basta procurar pelo nome do livro por lá).
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
não tenho meta de nada. não dá para contar com a poesia. com a prosa creio que sim, poderia existir, mas eu não sei escrever prosa. ou seja, mesmo quando escrevo em forma de prosa ainda é poesia. espero saber um dia… vou tentando, mas acho dificílimo.
o que eu faço todos os dias é observar poeticamente.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
a poesia acontece antes da escrita.
em algum momento de espanto. ou de erro. vou na rua e parece-me que ouvi alguém dizer uma coisa sem sentido; logo, o meu cérebro corrige a informação e mostra a coisa banal que realmente foi dita; mas eu guardo a primeira coisa, o erro, que é muito mais interessante, como poesia.
anoto, anoto. muita coisa da natureza, da respiração da cidade. fotografo mentalmente.
num momento posterior (que pode ser mais ou menos imediato) aquilo se torna escrita.
não me é difícil começar a escrever, justamente porque não forço. é sempre uma urgência, um não poder mais conter em mim. às vezes, escrevo apenas o primeiro verso, era só ele que urgia. respeito. mas ele, ali, já exclui milhões de caminhos em branco, já indica algo. e deixo-o ali até que algo mais aconteça. tem vezes que, pelo contrário, o poema sai inteiro, desliza. é o que eu digo: não dá para contar com a poesia.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
com excesso de chocolate. e também com o alimento das outras artes: paro e assisto a um filme ou escuto música ou leio ou zappeio o instagram. outras vezes, saio para caminhar em alta velocidade (não correr, caminhar — acho correr um horror). ou faço o meu pilates caseiro bastante demorado, praticamente uma meditação. ou durmo, apago.
há muitas formas de contornar a ansiedade e sempre vou encontrando uma que mais ou menos me relaxa a ponto de retornar. às vezes esse “vou ali e já volto” demora 30 segundos, outras vezes algumas horas, outras vezes semanas.
mas o jeito é nunca forçar esse retorno, deixar sempre que ele surja de uma vontade irresistível, urgente. uma hora ela vem e vem com muito mais pujança (produtividade) do que se tivesse estado a forçar na esterilidade. o respeito do silêncio compensa.
quanto ao “medo de não corresponder às expectativas”, a única expectativa que tenho é a de comunicar algo com um poema que seja com uma pessoa que seja. e nem sequer precisa ser algo em torno da beleza — fico igualmente feliz quando alguém me diz que o poema lhe deu uma sensação de estranheza, de mal-estar.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
eu sinto sempre que o poema é uma casa em que eu entro e aí tenho de lhe destapar os móveis — as palavras —, descobrir a decoração — as sutilezas a ligar esses objetos-palavras —, atentar aos cheiros — o clima cromático-musical que ele tem. já está tudo lá, é quase como se houvesse uma forma “perfeita” ou acabada, e ele-poema, essa entidade a princípio coletiva, me tivesse por acaso convidado a mim para entrar, porque eu estava passando por ali, estava mais à mão, e então, uma vez dentro, me tivesse convidado a escavar, levantar os véus, investigar os cantos e tetos e bordas das janelas. escrevê-lo.
nem sempre as coisas estão tão à vista. e enquanto não atinjo aquele poema é impossível descansar. a carpintaria, o parto da escrita. é a forma que me vai revelando o conteúdo. o poema é um grande mistério e uma grande estrada para mim. tem aquelas outras vezes em que eu entro e está tudo à vista, iluminado — confio na arte tanto quanto no artesanato. ambos são boas conversas.
mas tem um momento em que eu sei que atingi o poema e aí sossego. não publico se não chegar nesse estado. nunca me aconteceu de abrir o livro e achar que devia mexer aqui ou ali.
no caso do outono azul a sul, mostrei-o, sim, para algumas pessoas antes de publicá-lo, pessoas próximas e escritores que admiro, com o objetivo de buscar parcerias \ conversas. estou terminando agora um segundo livro, também de poesia, e este ainda não o mostrei a ninguém, a não ser um ou outro poema, mas não a composição do livro.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
minha relação com a tecnologia é ótima. o primeiro poema do meu livro outono azul a sul — o som cinza — é sobre esse espanto e as implicações de me aperceber de que, ao contrário do que acontecia anos atrás, em que só conseguia escrever poesia com lápis e borracha, agora escrevo quase sempre teclando, seja no computador, seja até mesmo nas notas do celular. mas mantenho caderninhos espalhados também (amo cadernos e continuo querendo ter todos), em que anoto coisas e, de vez em quando, ainda acontece começar a nascer um poema à mão, mas sempre o acabo no computador. já no avião, nas horas de travessia do Atlântico entre Brasil-Portugal, escrevo muito à mão, do princípio ao fim — como se regressasse a um tempo antigo, sem internet nem celular… curioso. sou um ser meio gato, vou me adaptando a tudo.
já quanto a ler, não largo dos livros-objeto por nada, tenho uma relação física com eles: preciso sublinhar, escrever, desenhar, conversar com o autor.
também gosto do que a tecnologia permite fazer na interseção da arte da escrita com a arte visual, seja fotos ou vídeos — gosto imenso dessa potência criativa à disposição. gosto do instagram (o meu é @caliboreaz), de me mover artisticamente por lá, e de encontrar por lá outros artistas e conversar com suas obras — acho o instagram, entre as virtualidades, uma vitrine bem interessante do trabalho artístico contemporâneo e um grande espaço de conversa inspiradora com quem está pensando e vivendo o mundo ao mesmo tempo que eu. também descobri recentemente o mundo dos podcasts e estou muito animada em encontrar coisas e produzir as minhas. lancei o meu podcast de audiopoemas no spotify e no soundcloud. os videopoemas já estavam no youtube. também gosto de cuidar da minha casa virtual, que é o meu site.
mas o que eu acho que devemos manter sempre é os pés bem assentes no chão desta possibilidade: toda a tecnologia pode, num instante, evaporar, todinha. e depois? eu estou sempre muito consciente do que há fora de tudo o que é tela, do que tem de irradiar e que só depende de o meu corpo continuar vivo para se poder manifestar.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
alimentar-me das outras artes, minhas e dos outros. e observar a rua.
minha matéria-prima é basicamente a minha vida, meu ofício é cruzá-la com outros planos encontrando, assim, uma forma de expressão que, por sua vez, me conte algo que eu não sabia apenas vivendo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
não diria nada, assim como não queria que viesse agora um eu do futuro dizer-me coisas. deixe-me em paz, a caminhar. há um tempo próprio de tudo.
o outono azul a sul, por exemplo, por abraçar um período de tempo longo — 8 anos de exílio desejado no Brasil — possui diferentes vozes estilísticas e eu abracei essas várias poetas que me habitaram como marca deste livro.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
na poesia não tenho projeto nenhum, ela simplesmente vai acontecendo a seu bel-prazer, não há racionalização poética para mim. depois, no momento da composição do livro, sim, começo a pensar. mas mais me espanto como tudo parece se encaixar de repente.
agora, eu adoraria conseguir escrever um bom livro de contos ou — sonho mais longínquo ainda — um bom romance. sempre que tentei, desanimei depois de criar a história toda na minha cabeça, porque aí perdeu a graça de escrever.
não acho que não exista ainda um livro, acho é que me falta ler muita coisa que já existe e eu ainda não consegui saber dessa sua existência. isso causa-me uma ansiedade, pensar em tudo que não li ainda. e por outro lado todos os livros que estão sendo escritos neste momento potencialmente inexistem. não compartilho da opinião de que tudo já foi escrito ou pensado. acho sempre que algo novo pode acontecer.