Calebe Morais é graduando bolsista em Psicologia pelo ProUni na UNIP – Universidade Paulista.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Acho que a maneira mais simples de responder a estas duas inúmeras perguntas seria dizendo que já começo o meu dia tentando bolar algum jeito de ter uma rotina matinal, mas não sei se seria um meio simples de responder a esta dupla pergunta, nem se responder deste modo me permitiria estar consoante ao propósito deste projeto.
Atualmente eu faço uma graduação pela manhã e, afora o básico e primordial, de tomar um café preto, uma ducha, escovar os dentes, evitar um ou dois cigarros antes de enfrentar a condução em pleno horário do rush, às vezes 1h20, quando não duas de faróis fechados, buzinas, trilhos e mais um incontável número de obstáculos humanos enquanto engarrafamento, eu ouço música, troco mensagens nestes inúmeros aplicativos que nos conectam e desconectam uns dos outros, reparo nas pessoas, no céu, nas propagandas no meio do caminho; eu me distraio, ou tento, como possível, me distrair da urgência das palavras de que tenho a impressão precisar muitas vezes até mesmo mais do que o indispensável H20, do que o O2, sabe?
Isso porque tenho uma dificuldade imensa para escrever quando me sinto desesperado e, muitas vezes quando o dia começa, eu ainda me sinto um pouco desesperado por uma noite mal ou bem dormida. E a música, como eu já disse, é uma companheira quase que inseparável, não só pela manhã, mas quase que ininterruptamente durante as 24h diárias ou milenares que uma manhã, tarde ou noite podem durar.
Aliás, esta pergunta eu respondi agora, que ainda estou começando o meu dia.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
De madrugada. Mas recentemente descobri que isso varia. Vai depender do texto ou projeto em que estiver metido que envolva algum tato para com a palavra.
Há algum tempo, por exemplo, eu recebi uma proposta para publicar um conto em uma revista portuguesa chamada InComunidade. Não por acaso (o nome desse filme que parece caber em tudo o que diz respeito à vida), fui convidado justamente quando estava me decidindo voltar a enfrentar a escrita, esse demônio do qual nem o Rimbaud foi capaz de escapar, mesmo tendo demonstrado romper definitivamente para com ela em sua juventude. E eu aceitei, decidi aceitar o convite da revista, sem imaginar o presente de grego que me descobriria abrindo ao novamente tomar de lápis, borracha, gravador, blocos de notas e cadernos diversos. O momento era caótico por si só. E com o aceite, não poderia deixar de ser diferente. O texto me tomou de tal forma que já não podia fazer outra coisa a não ser escrever. Escrever em todas as horas em que me encontrava feito joguete da palavra. Seguramente posso dizer que o que deveria levar um mês se estendeu por muitos outros, comigo ainda escravo dessa história, que no fim, descobri ser a de meu primeiro livro, agora segundo, já que a história vem tomando uma forma tão inesperada que eu estou às voltas com um outro livro, de poemas, que não passa de um relato de uma busca por este conto, que decidiu se transformar em livro, se não algo mais.
Então a madrugada não foi o bastante neste caso. Tudo o que me acontecia quando decidi começá-lo começou a se descortinar como palco das palavras que tecia, ora no ônibus, no metrô, caminhando, tomando banho, consultando o oráculo, dormindo, sonhando. Até que descobri mais ou menos que o que eu esperava do texto não me esperava, e então a Musa começou a dar trégua e a me permitir um descanso com gavetas para a imaginação.
Então isso de ter uma hora do dia em que me sinto melhor para trabalhar costuma ser uma roubada, ao menos pra mim, principalmente quando me coloco em posição de escrever seguindo uma espécie de rotina ou ritual, como você colocou na continuação da pergunta. Quanto mais eu me esforço para estabelecer um ritual de preparação para escrita, menos preparado eu me sinto. Agora isso também depende do que eu procuro com a escrita, quando procuro algo. Se for subjetivo, não costuma haver nenhuma lógica objetiva que me permita uma sensação de “guia”, de “método”.
A mim me parece que quanto mais descobrimos sobre o funcionamento da escrita, menos sabemos. E talvez isso seja o que nos permita continuar.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não. Geralmente eu escrevo quando não vejo mais nenhuma alternativa que não escrever. Já tentei algumas vezes estabelecer uma espécie de meta, sem sucesso. Em todas as vezes. Mas às vezes, quando surge ou me acontece algo, consigo estruturar o meu pensamento em escrita. E então eu consigo uma espécie de crônica dos acontecimentos, com uma linguagem que não obedece critérios comuns a gêneros textuais, sempre variando. E se me entrego a isso, costumo ter mais material para trabalhar, sempre. A questão é que nem sempre consigo tal proeza. Tenho uma dificuldade enorme para escrever. Tenho uma dificuldade enorme para me entregar à escrita. Escrever me custa sempre muito caro. Escrever, para mim, também é uma maldição.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
É uma verdadeira bagunça, como já deve ter dado para perceber. Mas, no geral, pego o caminho inverso: da escrita para a pesquisa.
Os suportes que escolho são os que estão à mão: guardanapos, papéis de rascunho, post its, blocos de notas, cadernos, documentos de Word, desenhos, pinturas, fotos, algo que me marque, algo que me afete.
Houve um tempo em que o meu processo de escrita era ainda mais caótico do que é hoje. Parece que não, mas pensando agora, hoje o meu processo de escrita é mais organizado do que já foi em quase qualquer momento da minha vida diante das palavras. Hoje eu já consigo traçar objetivos e delimitar um ou outro passo a seguir. Mas a história precisa existir em algum nível.
Eu gosto muito de me orientar a partir de cenas, tons, traços, cores, sensações, jogo de palavras. E gosto de partir para a pesquisa, para a qual sigo com o foco em linhas e objetivos claros (me perdendo em mil e uma subjetividades durante o processo para não usar quase nada depois), coisas como uma ou outra expressão – e o que eu já disse aqui, como cenas, tons, sensações, odores, salivas, gestos. Aí, então, apesar da sempre dificuldade em cada etapa do processo, é divertido escrever. Com muitas aspas, é claro.
Se não me engano, foi o Marçal Aquino quem disse em um de seus belos livros, que um escritor às vezes passa anos à procura de uma palavra. É possível dizer que ele esteja enganado? Acho que você já sabe a minha resposta.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu procuro não me preocupar tanto com isso. E é óbvio que não funciona. Funciona para alguém? Mas se pré-ocupar é pior. A preocupação eu vejo como parte essencial do trabalho do escritor, de qualquer escritor que se preze; a preocupação, e não a pré-ocupação com o texto.
E, particularmente, eu penso que não existam travas da escrita, penso que como você bem coloca na continuação da pergunta, sobre o medo de não corresponder às expectativas, a ansiedade, que eu diria que não se trata única e exclusivamente de uma ansiedade relacionada a projetos longos, mas ansiedade mesmo, pura e somente ansiedade (para dizer o mínimo), assim como a procrastinação e as travas – elas não são da escrita, muito menos o medo; são nossos mesmo.
E aqui falando de mim, meu nível de pré e de preocupação já foram tamanhos que, dentre outras razões e motivos, me decidi por começar uma análise. Essa e as outras questões que coloca aqui já foram capazes de quase, junto a tudo o mais, me emudecer, até mesmo verbalmente, para todo e qualquer fim. Exprimir-me era, para mim, uma das coisas mais impossíveis e inimaginadas e inimagináveis. Então, mais do que nunca e sempre, passei a espiar minhas culpas, meus medos, minha vaidade, ganância, ambição, inveja, ignorância, afetos, sentimentos, emoções, obsessões, arrogâncias, o que considerava bom e mau, mal e bem em mim, em meu comportamento, em minhas origens, traumas e paixões.
Para mim foi e continua sendo de uma importância absurdas. E, claro, isso, como tudo, depende, varia, de pessoa para pessoa. Mas hoje eu imagino que tudo, absolutamente tudo, afeta a escrita. E isso é algo que se pode até mensurar histórica e culturalmente. Eu citei Rimbaud aqui em um determinado momento, e eis que é um bom exemplo do que estou querendo dizer.
Então hoje eu escrevo. Eu procuro escrever. Eu procuro buscar o livro, um escritor à procura de um livro, até comentei com um grande amigo recentemente. Na ocasião ele pensava em me convidar para um bate-papo na biblioteca da Secretaria da Fazenda aqui de Sampa, mas tinha o porém do livro não publicado, essas coisas, e conversamos sobre isso, porque, né, que coisa é essa de que só se é escritor com livro publicado? Mas não rolou, o bate-papo, agora voltando. A obra importa enquanto obra, mas para que ela possa importar, para que ela possa existir, é preciso trilhar um caminho como o próprio caminho, um eterno desconhecido.
Prazos ainda me atrapalham um pouco – se penso nos prazos. Se penso no texto, não. O que importa sempre e não deveria deixar de importar nunca, é o texto.
Expectativas? O que são expectativas? E das expectativas de quem estamos falando? Minha expectativa enquanto escritor é a de escrever. Estou sempre me colocando esta pergunta. Como: o que é a escrita para mim? O quê? Falei da minha análise. Quando esta questão surgiu, a angústia que senti e não deixei de sentir só aumentaram, mas, parece, tomaram o lugar adequado. Graças ao meu trabalho em conjunto com o meu analista, a questão mudou. Não é mais o que é a escrita para mim. E sim o que sou eu para a escrita. Quer dizer, o que posso, quero, e devo fazer pela escrita? O quê? E quem é que sabe? Mas as perguntas me levam agora a outras perguntas, a outras palavras, a outros prazos, a outros medos, ansiedades e procrastinações. Para mim foi o que funcionou e funciona, embora, feito Cazuza, às vezes (e isso é sempre), eu penso em pagar a conta do analista, para nunca mais ter que saber quem eu sou, sabe?
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Depende. Depende da mensagem que o meu texto deve passar. Esta entrevista, por exemplo, eu não vou revisar. Afinal, é uma entrevista, certo? Ainda que seja por escrito e que possua características diferentes do funcionamento de outras entrevistas, como tempo livre para resposta, é uma entrevista. E entrevista, no meu entendimento, é pergunta e resposta. Então neste caso, hoje, que a pego para responder pela terceira vez, irei terminá-la, digitar e enviar (porque agora estou escrevendo a meu modo, quando considero a ocasião de extrema importância, a lápis e borracha; tendo usado a borracha somente para trocar uma ou outra palavra mal empregada, como faria se fosse uma entrevista falada, mas não é, e não me parece agradável desdizer algo por escrito, embora tenha sido a alternativa escolhida por mim depois de novamente me lembrar: ‘péra, isso daqui é uma entrevista).
Então, como você vê, este é um caso. E não respondi de imediato ou de uma vez por uma questão de compromissos outros, desses chatos e pé-no-saco que a vida traz, que viver traz, melhor dizendo. Daí, continuando, aqui o meu compromisso é o de responder à entrevista. E isto, ao menos eu penso, deve ser feito de modo o mais espontâneo possível – ou eu estou enganado e deveria encarar como se se tratasse (olha a cacofonia) de um tratado?
Então eu acho que o que dita a revisão, se não todo o processo envolvido na escrita, é a mensagem. E responder a uma entrevista é diferente de escrever um poema, é diferente de uma publicação de status em redes sociais e, obviamente, de um texto acadêmico, técnico, literário, que envolvem outras complexidades e níveis de leitura e escrita. E quando é que se revisa algo sem passar por todo o processo que envolve aquilo em que se está trabalhando? Eu não sei como é para outros escritores, mas para mim, é a mensagem que dita a intensidade com que me preocupo com a revisão. No meu caso, ela possui tamanha importância que a gramática, a ortografia, eu mando às favas. Afinal, de que me adianta um português todo amarradinho em vírgula, vocabulário e sopa de vogais e consoantes, se o texto não diz o que pretendo nem para mim mesmo?
Tá aí o meu “método”. É assim que se fala?
E eu cada vez menos mostro o meu trabalho a outras pessoas. A não ser quando está pronto ou eu mesmo ainda me sinto extremamente descontente com a forma. Quando eu espero que alguém me diga: “olha, você já leu esse livro aqui?, parece tratar do que você fala”. Acontece que não é o que eu ouço. Quando eu mostro algo pra alguém eu não quero receber um tapinha nas costas ou palmas. Eu quero ouvir sobre sua impressão, eu quero que me diga: “meu, isso aqui tá uma merda; sim, você tem razão, precisa melhorar”. Ou então espero que me diga: “alguém já falou sobre isso e você tá usando as mesmas palavras, toma cuidado”. Não estou dizendo que o elogio a um trabalho não sirva pra nada. É que amigos, sabe como é… Os elogios de alguns nem sempre vão refletir que eu estou no caminho, mas justamente o inverso.
E, sim, eu mostro os meus textos às vezes pros amigos. E pros que mostro, que são poucos dentre os muitos, só o tom com que vão me falar sobre, são um divisor de águas. Mostrar nossas vísceras, ainda em total exposição para alguém, é difícil, não só para quem mostra, mas pra quem é convidado a olhar bem pra dentro da caixa de Pandora de si e do outro. Às vezes, se não sempre, colocamos os nossos amigos e contatos em uma verdadeira saia-justa com essa história de: “ei, posso te mostrar uma coisa que escrevi?” Para mim, o mais adequado é contar com uma opinião profissional. Mas, daí, de novo, no meu caso, entra aquele tal negócio: a mensagem.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
É um pouco problemática ainda. Eu sou de um tempo, mas mais de uma cidade, onde a tecnologia foi chegando com o atraso que chegou e chega a todos nós, só que mais. Hoje eu não uso mais candeeiro para ler e escrever, ou mesmo vela, mas já usei, e muito. Acho que eu estou aprendendo mesmo a me valer da tecnologia só agora. Para mim, a dificuldade maior não é só a quantidade de opções à disposição, mas as distrações. Esse negócio de mil e uma funções em um aparelho celular, tablet, computador, TV, e por aí vai, não é pra qualquer um não. Mas a gente aprende, com esforço mas aprende, ou não aprende nada e se torna refém do marketing mais capitalista e sujo possível por trás da tecnologia.
Eu ainda sinto muita necessidade da minha relação e do meu contato com o papel e, aí sim, as mil e uma opções do universo que gira em torno desse pedaço de árvore multifacetado e multicolorido. Gosto muito de escrever à mão. As palavras estão mais ao alcance. Só que não dá para fazer tudo no papel, à mão, felizmente ainda quase tudo. O computador eu uso mais para questões mais objetivas e práticas. Subjetivamente, a tecnologia ainda me limita mais do que liberta.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Não acho que alguém seja capaz de responder a essa pergunta. Se soubesse também, me serviria de quê? A mesma coisa em relação à criatividade. Sabemos muito pouco disso ainda, e o que sabemos nem sempre usamos. Já sabemos da importância indiscutível da leitura para quem escreve, mas eu ainda ouço falar de mais escritores que leitores, e não só em nosso país.
Outra coisa é que existem níveis e tipos de leitura. Pessoa já falava disso em seus escritos. Todo escritor que se preze fala. Gosto muito do jeito como o Affonso Romano de Sant’Anna coloca essa questão no título de um de seus livros: “Ler o mundo”.
E, óbvio, é preciso enfrentar o que está por trás da página em branco. Não é só se perguntar o que move a página em branco, mas enfrentar, eu diria até mesmo que, seja lá o quer, enfrentar. E, se possível, sobreviver a esse isso e aquilo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Olha, não sei, eu não faço ideia do que diria, talvez o que me digo ainda agora: “não desista, você depende disso”, porque dependo e não dependo, mas dependo, e escrever me ajuda a continuar, pensando aqui no quê que a escrita me ajuda, a continuar, a permanecer.
E eu acho que pouco mudou ao longo dos anos, acho que eu esgotei as possibilidades de minha escrita ao longo de desde sempre escrevendo. É também por isso que agora estou planejando livros, porque eu preciso de palavras novas, de histórias outras; a impressão que eu tenho é que tudo o que eu escrevo hoje sai igual. Então, de novo, eu devo continuar, dependendo ou não disso para permanecer. Vivo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Me interessam muito as discussões sobre o novo livro, o futuro dele. Claro que para mim, o futuro do livro é continuar livro, a mesma coisa isso de novo livro, porque esse negócio que se discute beira às vezes uma bobagem sem tamanho, como se uma descoberta pifasse qualquer outra. Mas as possibilidades de se contar uma história hoje são muitas, no sentido de muito mais? Não, no sentido de diversidade. E isso eu quero, e já estou explorando. Estamos todos, não?
O livro que eu gostaria de ler caminha neste sentido, e se ele não existe não é porque não houve alguém capaz de escrevê-lo, mas de publicá-lo e torná-lo disponível, a todos. Porque, a mim, esse “todos” é em todo importante.