Caio Riscado é professor, pesquisador, diretor de teatro, performer e escritor, autor de “Com as costas cheias de futuro” (Urutau, 2020).

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Nas manhãs, não tenho uma rotina pautada pelo trabalho. A hora em que acordo varia bastante, dependendo dos compromissos do dia. Uma vez de pé, gosto de tomar café, ler notícias, fumar um cigarro e me preparar para lidar com o tempo. De manhã também faço exercícios físicos, alguma leitura e organizo minha produção. Geralmente, eu listo o que precisa ser feito, revisto ou editado. Mas as minhas manhãs também são uma espécie de sobra da noite/madrugada anterior. Nesse sentido, estou sempre no meio de um assunto, agarrado em alguma questão que tenha sido interrompida pelo sono. É raro eu começar algo do zero. Fico com a sensação de que acordar se parece com um convite para olhar de novo. E eu olho. De manhã estou sempre rabiscando coisas, averiguando se ainda conversa comigo o que me seduziu na noite anterior.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Com certeza trabalho melhor de noite. Escrevo, sobretudo, de madrugada. Gosto da casa silenciosa e de não precisar dividir a minha atenção. Sempre fui uma pessoa noturna. Depois de dar conta das tarefas do dia, me sento para escrever. Escrevo também em outros momentos, pois a escrita é parte integrante de quase todas as minhas atividades. Mas é de noite que me concentro para iniciar projetos novos ou continuar o desenvolvimento de algo. Embora a minha relação com a escrita seja ampla, ela também pode se dar de modo direcionado. Ou seja, é comum que durante o dia eu escreva para atividades mais definidas: notas sobre minha pesquisa atual, planejamento ou resumo de aulas, fichamento de artigos, estudos etc. Já de noite, me volto para projetos que demandam um olhar mais demorado e que, por vezes, não apontam para um fim específico. Com o tempo, aprendi a lidar com a escrita de diferentes maneiras. Seja por demanda ou desejo, gosto de escrever. O meu ritual, se é que vale como um, consiste em deixar as coisas perto das mãos para que eu não precise me levantar e ir atrás delas. Minha mesa parece um carro alegórico que, apesar de bem intencionado, passou na avenida de forma violenta e caótica. São papéis soltos, cadernos e mais cadernos, livros riscados, rabiscados, canetinhas, maços de cigarro, cinzeiros, uma imagem de nossa senhora desatadora dos nós que era da minha avó, isqueiros, um pedaço de tecido que estou tentando descrever a textura, uma ou duas canecas de café, garrafa com água, um suporte para copo com a pintura da monalisa, protetor labial, celular, meus óculos e o computador. Penso que o meu ritual seja esse: me sentar perto das coisas e, com elas, inventar conversas. Minha mesa tem gavetas e me pego mexendo nelas sem motivo. Parece que preciso confirmar que as coisas estão. Depois delas, é necessário que eu também esteja. Para dar textualidade as ideias, eu deixo que meus olhos se demorem sobre outras formalizações. Os materiais brutos me ajudam no derretimento interno. Antes de escrever palavra, procuro ver e tocar palavra. É a pele das coisas que me leva na escrita e inscrição de outras narrativas; na imaginação de outros contornos.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo todos os dias e de maneira desornada. É raro eu me debruçar sobre um projeto e ir com ele até o fim sem interrupções. Costumo ter muitas coisas em aberto que vão se desenvolendo juntas. Um texto puxa o outro e por aí vai. É comum que uma determinada escrita me leve para outra produção. Existe nesse modo de produzir um perigo de confundir as calças. Ou perdê-las. Tenho sempre muitos documentos abertos e tento me organizar diante dessa polifonia. Embora eu não tenha nenhuma meta de escrita, lido bem com prazos. Na verdade, os prazos me animam para escrever porque inserem na escrita uma ambientação de jogo que, particularmente, me interessa. É claro que existem prazos que são da ordem do abuso. Isso seria outra conversa. Mas, na maior parte das vezes, gosto de ter uma data, uma baliza estabelecida que limite o tempo da criação. Sabemos que as criações nunca terminam, mas me parece fundamental criar interrupções, finalizações temporárias que visem, sobretudo, o compartilhamento daquilo que, até o momento, foi possível estruturar. Um texto publicado, por exemplo, sempre pode ser retrabalhado, expandido ou cortado. Eu adoro encontrar textos que produzi em diferentes momentos e não me reconhecer neles. Talvez, essa seja uma das minhas metas: escrever para manter vivo o sonho de escapar das certezas.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Os meus processos variam de acordo com as necessidades. Geralmente, tenho uma ideia e rabisco apontamentos em um caderno ou no bloco de notas do celular. Começar a escrever não é algo que me apavora, pois cada produção pede um tipo de início. Quando estou escrevendo um artigo acadêmico, por exemplo, tenho o hábito de listar os pontos que me interessam discutir, as autoras com quem eu gostaria de dialogar e o estado da arte em que se insere tal discussão. Mesmo que eu não siga essa lista, ela me ajuda a organizar os pensamentos, funcionando como uma espécie de orientação para a condução da narrativa. As escritas que não se estruturam nos moldes acadêmicos, começam das mais variadas formas. Tenho cardernos onde junto versos, experimento poemas, pequenos parágrafos sobre qualquer coisa ou coisa nenhuma. Quando algum desses rabiscos se mostra persistente, indo e voltando, ao longo dos dias, como imagem, eu crio um documento no computador para ele e sigo com o trabalho. Assim como percebo, a pesquisa e a escrita não são instâncias separadas. Escrevo para pesquisar e pesquiso, quase sempre, escrevendo. Quero dizer com isso que a escrita é também uma forma de pesquisa e que não a encaro como algo que exija uma preparação pré-determinada. Quando escrevo, estou refazendo o caminho das minhas pesquisas e, quando pesquiso, aprimorando a minha escrita. São atividades complementares que se justapõem para formar um todo de definições imprecisas. Minhas horas de pesquisa são também horas de escrita e vice e versa. De modo que eu não me vejo no movimento de uma para a outra. O mais honesto seria dizer que busco estar entre elas, tensionando, justamente, seus lugares consolidados.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Quando tenho uma ideia e não consigo colocá-la em desenvolvimento da forma como eu gostaria, deixo que o texto descanse. Os nossos níveis de julgamento ou expectativa variam. As vezes, nem sabemos, de fato, porque não estamos gostando do que ainda está em processo. Dessa forma, quando possível, abandono um pouco o texto e volto a olhar para ele com olhos de outro dia. Revisão e edição também são partes integrantes de um projeto de escrita. Depois que entendi isso, me dei mais liberdade para seguir escrevendo com dificuldade ou falta de interesse. Não tenho problema em escrever uma boa quantidade de material e, depois, ficar somente com uma ou duas frases do que foi produzido. É preciso continuar escrevendo para chegar ao nó da ideia, para localizar o seu complicador e criar tentativas de desbloqueio. Nem sempre é possível. Gosto de pensar a escrita como uma atividade que elabora o seu próprio caminho. Mesmo quando o ponto de chegada já é sabido, como, por exemplo, um ensaio, livro ou artigo, é possível desconhecer os caminhos que, geralmente, nos levam até eles. Se uma maneira não está dando certo, é tempo de testar outras formas. Se não há tempo, a própria impossibilidade se torna o caminho. Transformar as travas da escrita em material para a própria escrita pode ser uma maneira interessante de, além de comentar, entender também o processo como obra.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Gosto muito de revisar os meus textos. Quando há tempo, costumo olhar para eles muitas vezes e em diferentes momentos do dia. Não saberia dizer um número exato. Mas considero a revisão uma etapa indispensável. Eu reviso os meus textos também em diferentes suportes. Apesar de desenvolver os projetos mais longos no computador, quase sempre imprimo o material para que eu possa riscar as folhas, fazer comentários, correções etc. Por mais que eu revise os textos, tem sempre algo que me escapa na tela do computador e que o papel revela, surpreendentemente, com mais agilidade. Antes de publicar, sempre compartilho a minha produção com algumas pessoas. Tenho uma pequena rede de amigas escritoras ou interessadas em processos de escrita que me ajudam durante essa etapa. Quando é possível estar junto da pessoa no momento da leitura, reparo nas suas primeiras impressões. Guardo comigo todos os papéis e versões riscadas que são produzidas nesses encontros. Mais do que julgar a qualidade do que foi escrito, me interessa saber se o texto produz conversa. Quando passamos um bocado de tempo debatendo um verso, uma ideia ou imagem, penso que metade do trabalho já foi feito. Depois, é preciso saber se essas conversas se ampliam, se elas transbordam essa pequena rede e os seus privilégios de afinidade e proximidade. Mas essas respostas só chegam com o tempo. Então, é preciso fazer apostas. Isso é o que mais me anima numa publicação: sua possibilidade de retorno.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Como disse, tenho muitos cadernos e também faço uso do bloco de notas do celular. Geralmente, escrevo pequenas ideias ou desejos neles. Quando essas vontades persistem, é que costumo abrir espaço para elas no computador. Eu também me envio e-mails quando tenho receio de esquecer algo ou quando acho que determinado projeto precisa ser constantemente alimentado com novas imagens. Também já tirei fotos das minhas anotações porque tive medo de perder os meus cadernos. Lido bem com a tecnologia e acredito que os meios não só produzem diferentes materialidades como também se transformam de acordo com o uso que fazemos deles. Tenho no meu telefone, por exemplo, uma pasta com prints. E não vejo o menor problema em chamá-la de caderno. Me interesso mais pela ideia do esboço, do traçado rápido, do chamado para aquilo que não pode ser deixado para depois ou perdido, do que sobre onde ele é feito.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
As minhas ideias nascem de lugares variados. Como sou diretor de teatro, performer e professor de artes cênicas, o trabalho me exije uma leitura atualizada. Para além da minha curadoria pessoal, é comum que eu esteja envolvido em leituras e pesquisas que me possibilitem colaborar com os projetos cênicos e de iniciação científica das alunas e alunos. Esses constantes diálogos em arte ampliam o meu campo de interesses na medida em que me apresentam novas autoras, discursos e possibilidades para a criação. A sala de aula é também um espaço fértil para o surgimento ou debate de ideias. Sou uma pessoa bastante privilegiada por poder dialogar e potencializar os meus pensamentos em contato com as turmas de estudantes. Acho que as minhas ideias nascem desses espaços em que a troca é possível e os desejos são contaminados/tranformados através das contribuições do coletivo. Cultivo alguns hábitos para me manter ativo e não necessariamente criativo. Na verdade, não sei se a criatividade é algo que deva ser perseguido como dispositivo de valor. Trabalhos que, tradicionalmente, não são recebidos como criativos podem ser interessantes e articular contribuições pontuais para o estado das pesquisas em arte. A minha curiosidade está direcionada para o estudo de metodologias da criação e a peserseguição por novos modos de fazer. De certa forma, escrever é também testar procedimentos, acolher o erro, a falha e o fracasso. A determinação de se manter criativo o tempo todo pode ser angustiante. Assim, procuro me manter ativo e atento para observar as transformações processuais das ideias e trabalhos que estão em movimento. Contemplar a transformação processual das formas me anima para uma interação mais serena e continuada com o meu próprio desejo de escrita.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Hoje, tenho menos receio de compartilhar as minhas ideias e lido com os meus processos com menos cobrança. Tenho mais convicção de que o trabalho com a escrita requer um esforço continuado que não se aproxima do treinamento e que, justamente por isso, não objetiva uma superação. Ecrevo para continuar reelaborando o meu próprio caminho e ativar experiências que embaralhem os tempos. Para os meus primeiros textos, eu diria que está tudo bem. Diria que não há nada para ser superado, mas experimentado. Diria que a escrita é um projeto de vida que necessita, antes de qualquer coisa, ser vivido. Então, eu diria: viva. Viva: por estar vivo e por celebrar a possibilidade de uma vida em contato com a escrita.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de escrever um romance. Esse chamado ainda não chegou. Já tive ideias, mas nada se mostrou persistente para disparar em mim o início desse projeto. Sigo observando o mundo e as coisas do mundo. Um dia, quem sabe, acontece. Felizmente temos muitas autoras e autores produzindo e as publicações independentes estão ocupando um espaço cada vez mais importante no mercado editorial. Não saberia dizer um livro específico que ainda não existe. Fico feliz em termos hoje mais possibilidade de leitura e escuta para vozes que foram, e ainda são, amplamente silenciadas. Nesse sentido, eu quero ler o que essas vozes querem escrever. O meu desejo de leitura é também um exercício de ampliação da minha própria escuta.