Caê Guimarães é escritor, jornalista e redator.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Durmo pouco, o que implica deitar tarde e levantar cedo. Mas meu começo do dia é tomado pelos afazeres cotidianos, atividades físicas, ir eventualmente à feira e sair para trabalhar. Não há, portanto, uma disciplina ligada à escrita nas minhas primeiras horas do dia. Mas pode acontecer que uma ideia ou uma solução surja nesse período do dia, aí anoto. E se não tiver à mão papel e caneta, gravo no celular.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Funciono melhor quando a noite cai. E me sinto mais produtivo na medida em que ela avança. Escrevo muito a partir de 23 horas e ao longo da madrugada. Nessas horas o whats aap é menos acionado, idem para as chamadas telefônicas, a temperatura é mais amena e a rua é menos barulhenta. Não tenho um ritual específico, mas estou sempre cercado por blocos onde anoto as observações e ideias para o que estou escrevendo, livros onde pesquiso os temas abordados, e por aí vai.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo ao menos um pouco todos os dias, às vezes escrevo muito em um dia só, tudo depende de alguns fatores: o volume de outros trabalhos (sou jornalista, redator e roteirista) o encadeamento de alguma ideia, a inspiração – e ela tem que te encontrar trabalhando, como disse Picasso. Não há uma meta diária, mas coloco sempre na linha do horizonte uma data para finalizar um projeto literário.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meu movimento às vezes é o oposto, a pesquisa surge porque cheguei a um tema, e para consolidar o tema tenho que ter escrito algo, ainda que poucas linhas, ainda que sem uma forma definida. A partir daí começo a organizar a narrativa na minha cabeça. Na medida em que escrevo vou marcando observações sobre o próprio texto, e elas podem tanto ser frases e situações como também indicações das características de uma personagem, ou ainda viradas narrativas no texto em construção. Então, após o impulso inicial da escrita, e a posterior definição de uma linha, um tema, uma abordagem, escrevo e pesquiso simultaneamente. Mas chega um momento em que a pesquisa cessa, e tudo que resta e interessa é escrever.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Quando um texto “trava” volto à pesquisa, pesquiso outros aspectos do mesmo tema, ou temas correlatos. O medo de não corresponder às expectativas é algo com que um escritor tem que aprender a lidar. Lido bem com isso, não deixo que me contamine ou interfira no meu trabalho. E os projetos longos – algo que tenho experimentado como um mergulho desde o Encontro você no oitavo round, não me provocam ansiedade. É como virar uma chave, me adapto a esse longo envolvimento com obra, personagens, estilo narrativo. Gosto da exigência que os projetos longos demandam, dessa arqueologia a ser desenvolvida, e como isso me deixa confortável, não percebo a ansiedade, ou ela sequer existe em mim nessa circunstância.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso bastante, e cada vez mais. Já tive livro lançado com erros de revisão E isso é terrível. Livros mudam enquanto são feitos. Um exemplo, tenho outras três versões do Encontro você no oitavo round, duas delas bem diferentes, com outras personagens, ou personagens reconstruídas. Em uma delas, Esther Miller, a jornalista do livro, tinha outro nome e era dona do restaurante onde Cristiano Machado Amoroso, o narrador, fazia suas refeições, e não a mulher que resolve vasculhar seu passado. Em outra versão utilizei o fluxo de consciência na narrativa, fui ajustando até chagar no formato final. Tenho um pequeno grupo de amigos e amigas, os chamo de Leitores Afetivos, a quem mostro meu trabalho antes de publicar. Nem todos são escritores, mas todos são grandes leitores. Mas só consigo compartilhar, e sempre faço assim, quando estou próximo e finalizar a narrativa.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Quase tudo no computador. Mas anoto muitas coisas à mão, ideias, frases inteiras, um parágrafo que já vem pronto. No entanto, grosso modo, sou eu e as teclas negras do computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Mantenho-me em permanente conexão com o estado de observação. Acho que todo artista chega a um ponto em que isso acontece. A partir daí, não há mais uma cosa mentale, um click que te conecta com o mundo das ideias – a conexão passa a ser um reflexo da própria existência. As ideias surgem de leituras, filmes, música, pintura, mas sobretudo do grande livro da vida que todos os dias se abre ante nossos olhos. Os hábitos citados acima são alimento para o meu espírito, e podem, ou não, disparar o gatilho de ideias criativas.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Hoje tenho mais domínio técnico, um paideuma muito mais amplo, vasto, acúmulos de vivências pessoais, lugares, pessoas, viagens que fortaleceram minha escrita. Eu diria ao jovem Caê Guimarães de 32 anos atrás – comecei a levar a escrita a sério com 18 e hoje tenho cinquenta – que não perca a conexão consigo próprio. Que tenha muita paciência, o processo da escrita é lento, o retorno é demorado, a absorção por parte do público é individuada. Diria que siga escrevendo tendo em conta a inevitabilidade do acidente biológico, como disse Antero de Quental, que o acomete. Na verdade, acho que aquele moleque ouviu isso tudo mesmo sem ter quem o dissesse. Sinto muito orgulho dele.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O que eu gostaria já comecei. Meu romance, em construção, Os Amorosos, aborda a imigração da Espanha para a América do Sul no final do Século XIX, a migração dentro do continente, da Argentina para o Brasil no começo do século XX, relacionamento inter-racial e o pano de fundo das ditaduras militares e conflitos político-sociais comuns aos três países. É uma história sobre diáspora. E os novelos invisíveis que unem tempo e espaço distintos, neste caso, em um período que vai do final do século XIX até 1970. A base para isso são as histórias que ouvi, vida afora, de minha bisavó, Angústias, espanhola falecida em 1980, de minha avó, Carmen, argentina falecida em 1985, e de minha mãe, Vitória, brasileira falecida em 2020. As três foram minhas primeiras narradoras, os primeiros oráculos, as primeiras contadoras de histórias que tive na vida. Também tenho documentos de época, vasto material fotográfico e a oralidade que as três me deixaram como maior herança. Mas não se trata da biografia de uma família, o que faço neste trabalho é, assim como bastante coisa do Encontro você no oitavo round, me apropriar da realidade como argamassa para a criação ficcional e a invenção. Sobre o livro que gostaria de ler, estou com meu colega Saulo Ribeiro, em entrevista publicada aqui neste espaço, salvo engano em 2018. “Todo escritor escreve o livro que gostaria de ler, mas que ainda não foi escrito”. Tenho muitos desses livros dentro de mim. Vamos a eles.