Como eu escrevo

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Como escreve Bruno Pastore

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Bruno Pastore é artista, escritor e estudante de filosofia, autor de “Galo de Briga” (DoBurro, 2017).

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?

Sim, durmo uma noite sim e uma  não  por conta de minha profissão  como orientador sócio educativo em um centro de acolhida para pessoas em situação de rua. O dia em que durmo acordo às 9hs para fazer exercícios físicos e agilizar afazeres da casa como compras, cuidar das crianças,  contas , fora meu trabalho como terapeuta complementar com a reflexologia podal e também meu trabalho em meu ateliê de arte, intercalo entre isso alguns momentos de lazer, leituras com amigos , xadrez, filmes, sexo, essas coisas.  Tenho um cronograma semanal, tento cada vez mais me organizar pragmaticamente, isso tem me ajudado a pegar a vida com as mãos na tentativa de sair da linha da mera sobrevivência.

Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?

Sinto que acordar cedo é a melhor coisa,  acordando cedo o dia rende mais. Porém pra mim uma rotina certa de escritor que senta em um horário específico para escrever ainda me é um ideal. Meu ritual para a escrita é somente ter um caderno sempre a mão. Nele escrevo meus fichamentos , poemas e pensamentos. Tenho usado também o bloco de notas do celular e gravado registros em áudio. Não escrevo como um escritor, não sento para escrever,   todo esse  processo romântico de um escritor melancólico que se senta  para escrever  não condiz com meu ritmo de vida e nem com minhas necessidades  fisiologicas atuais.  Sou agitado demais, tenho muita raiva e sou nervoso demais para ser um escritor desse tipo, mesmo que intimamente admire este esteriotipo. Por isso me  dedico à outros suportes além da escrita, pois escrever não gasta a energia que preciso gastar , me é monótono , a escrita não me é o principal meio de atuação, não me satisfaz tanto, atualmente demando de outras ações , a escrita me serve como parte de um processo, ajuda na afinação da vida, mas ela não é como dançar , cantar, correr ou dar socos num pallet de madeira, por exemplo. Essas coisas mais enérgicas tem me atraído mais, tenho dedicado meu  tempo de criação a isso através das artes visuais, performance e vídeos poesia editados pelo celular, isso também tem sido uma forma de criar em meu ritmo de vida. A escrita, ou o ser para a escrita é uma construção de toda uma vida. Tenho escrito mais  quando me solicitam um texto , um ensaio sobre a arte  de algum artista amigo, por exemplo, ou os ensaios de filosofia para a faculdade, daí  escrevo de madrugada no meu trabalho, quando todos vão dormir. Meu ritual é estar disponível, ter sempre um caderno , um bloco de notas no celular ou até um gravador. Não gosto de deixar nada solto, assim me organizo pra quando eu precisar sentar pra escrever as coisas já estarem encaminhadas.

Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?

Não , escrevo sempre que vem a escrita. Estou sempre com o caderno na mão , assim me organizo para estar disponível quando ela vem, no mais só escrevo quando me é solicitado,  atendo demandas. Em meu trabalho sou solicitado para escrever a ata dos plantões , escrevo também  ensaios filosóficos para a faculdade e relatórios para um  pacto de organização plástica  Méthodo RES no C.A.C (conglomerado ateliê do centro), onde tenho encontros sobre arte  com a Gabi Celan, supervisionados por Rubens Espírito Santo. No mais escrevo aforismos, pensamentos  e poemas em meu caderno, quando eles vem. Como eu disse sou adepto dos fichamentos , assim quando sento pra escrever consigo costurar as anotações em um texto, pois sinto que texto vem mesmo de têxtil, pra mim funcionam como retalhos, assuntos  onde posso junta-los, remaneja-los de acordo com as necessidades. Sinto que uma coisa escrita  pode servir para diferentes contextos , vou escrevendo aforismos, frases soltas, ou um texto reflexivo que já sai pronto numa tacada só; daí quando me é solicitado  monto um homolunco com esses escritos, empilhando uns sobre os outros, mudando suas  ordens, juntando como num quebra cabeças, até sentir que posso dizer que tenho um texto.

Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?

Penso em arte e filosofia nas 48 horas do meu dia, estou filosofando e escrevendo em tempo integral, há uma guitarra em minha cabeça que toca sem parar. Estou sempre lendo filosofia e poesia em específico , disso saio  escrevendo, compondo poemas  em silêncio ,  rangendo os dentes enquanto rumino alguma questão, ando na rua fazendo rimas e  falando sozinho. Sempre que consigo anoto tudo , essa é minha luta: acompanhar com a mão o fluxo do pensamento acerca do que é lido, escutado  e visto, que é uma tarefa impossível. Mas tento fazer isso ao máximo pra quando eu me sentar para escrever na frente do computador  as coisas já  estarem encaminhadas. Sinto que assim sofro menos. Comecei a me interessar por livros  através do rap freestyle, comecei a ler pra ampliar meu vocabulário na hora de rimar, pra ter conteúdo nos rap’s, daí foi um caminho sem volta, fui engolido. Escrever não me apetece tanto, escrevo não tanto  por prazer mas por necessidade, escrever me é um sacrifício, mas com o tempo fui me obrigando, por necessidade e até por vaidade, e posso dizer que cada vez mais, conforme passa o tempo e me ponho à disposição da escrita, parece que dói menos. Acho que deve ter a ver com horas de vôo , o mesmo deve acontecer com um piloto de avião , escrita tem muito a ver com carga horária, a disposição é algo muscular e com a escrita não é diferente. Sempre vi uma importância ímpar na escrita, por sentir que a literatura precisava ser explorada e difundida em nosso país, por sentir que  há  algo por ser feito  e também por vaidade é claro, escrever um livro é algo grandioso, sempre intuí isso e quis operar por aí , por isso ainda me dedico diariamente, sem a escrita  sinto que nem sou.

Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?

Vivo num esforço constante contra a preguiça, faço umas flexões de braço , corrida e agachamentos  pelo menos umas três vezes por semana,  assim arrumo  jeitos de burlar minha minha depressão.  No mais  eu tenho a noção de que sou travado de nascença , e que tenho um evidente  retraimento em minha personalidade,  se não eu não teria escolhido a escrita e a arte como meios de comunicação, pois quem vai por aí já tem um desvio na linguagem e por isso precisou desenvolver  outras maneiras para o dizer. Essa consciência me ajuda a fluir , a estar disponível. Procuro estar sempre atento, e como disse, tenho cadernos sempre a mão e isso faz com que as coisas fruam. Em relação às espectativas, tento me lembrar que sou um mísero jovem escritor guarulhense, ou seja , um nada no mundo da escrita. Lembrar disso me tira os embargos literários das costas e assim posso errar com tranquilidade. Projetos longos, principalmente com prazos, me ajudam a canalizar as forças, me  dão um norte contra o aspecto randômico e depressivo de minha personalidade preguiçosa.

Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?

As vezes reviso muito as vezes nada. Se tratando de poemas, estou cada vez mais revisando menos, essa é a meta. Mas como disse , a escrita me é como costurar, eu escrevo escrevo escrevo e posso adequar a escrita para inúmeros contextos distintos. Nada impede de um rap  virar um texto sobre estética , e vice e versa. Nada fica pronto, sofro um pouco, claro, tenho minhas carências e expectativas , mas logo envio o texto e me livro dele, pois se ficarmos na coisa ela nos engole, é interminável , o poema é continuo, é como quando compramos uma roupa, se fomos olhar em outra loja sempre acharemos algo mais barato e vamos nos arrepender. Sempre tem o arrependimento, a escrita sempre é inacabada, pelo menos no meu caso eu exploro esse caráter de inacabamento, então não tem como, se não me desapegar vou ficar sofrendo infinitamente. Pra abandonar de vez o texto  eu me lembro do que dizem por aí sobre a história do Marx quando ele estava concluindo o Capital e passava por muita dificuldade. Ele estava doente com furúnculos nas nádegas, por conta da má alimentação e da sua rotina de vida excessivamente pobre. Quando ele enviou os manuscritos para o Engels, este lhe respondeu que  haviam  alguns erros de gramática, impasses no ritimo da escrita que precisavam ser revistos , e que talvez tivessem sido causados pela dor de seus  furúnculos na bunda. E Marx respondeu a ele , ansioso e decidido a publicar  o texto do jeito que estava, que a burguesia ia ter de conviver com os seus furúnculos . Sinto que é isso,  não ajeito muito não.  Vale lembrar que os livros circulam em pequenos grupos restritos, a maioria das pessoas cagam para toda essa coisa de literatura e poesia.  Essa noção  me ajuda a não ser muito exigente comigo mesmo , pois poesia é e sempre será uma arte minoritária. Uso isso para ampliar minha liberdade de atuação e não ficar racionalizando muito, pois  se eu errar ou não , capaz de ninguem nem ler. Essa noção da realidade a qual estou inserido e que poderia ser decepcionante, na verdade é um mar de infinitas possibilidades,  coisa que só a solidão do escritor brasileiro pode proporcionar.  Em todo caso a poesia e a escrita já é um exercício de suportar este lugar da solidão. Por fim, amo as tertúlias , cada vez mais elas se fazem essenciais, a co-criação é o que liga. Sempre procuro ler em grupo antes e depois de publicar, sou um entusiasta do conceito de  livro-encontro, que é uma resposta contra a maneira asséptica a qual cada vez mais nos relacionamos. Sou do tipo das arenas, sujeito de praça, atendo sempre ao chamado dionisiaco. Além disso acho o mistério e a austeridade que se criou entorno da da coisa da  escrita e da literatura uma babaquice, poema tem de estar na calçada , poesia guardada não vale de nada. Mas sinto que essa ideia de co-criação  poderia ser levado para um outro nível , coisa que o mercado, com seus estudos antropológicos,  estão  anos luz a frente de nós artistas. Imagina se nós  saltassemos de nosso umbiguismo lírico e ouvissemos as pessoas sobre o que elas gostariam de ler , de ver e ouvir em arte. Imagina se saíssemos a campo para ouvir o outro e sentir o que ele realmente precisa ao invés de acharmos que somos a antena da raça. Desde um apartamento até  uma novela hoje em dia não são lançados  sem antes ter várias reuniões de co-criação junto ao público alvo. Estudos precisos são feitos para atingir o âmago das pessoas afim de proporcionar-lhes experiências que façam sentido. Muitos artistas não entenderão isso que quero dizer e vão levar a mal, talvez até por que me falte palavras e gramática pra dizer isso que até pra mim é quase um absurdo. Mas sinto que essa seria uma estratégia para sairmos do solopsismo que faz com que as artes, as teses acadêmicas e a literatura não passem de um deposituário de coisas inúteis que poderiam ser usados na vida cotidiana.  Mas sei que serei mal compreendido nisso pois nós artistas ainda  estamos  presos à ideia de autoria, fadados à ideia autoritária do artista como um criador absoluto.

Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?

Tanto faz, não tenho impedimentos, faço uso das ferramentas que me vem a mão, sem toc para com os suportes materiais. Escrevo muito no caderno,  uso o bloco de notas do celular, o gravador de áudio do watzapp mandando mensagens para mim mesmo. Mas por fim na maioria das vezes tudo vai parar no computador, no bom e velho word.

De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?

Sim. Desde os meus 15 anos tenho o hábito de confeccionar cadernos que uso como diários, aos quais chamo hoje de diários de borda. Venho da cultura de rua da pixação e do graffiti, onde é comum e até necessário se ter um caderno de mão para os rascunhos e para as presas.  A pichação e o graffiti já são um tipo de escrita, esses cadernos não são diferentes do que chamamos  de livro de artista.

Depois vi que Manoel de Barros e João Cabral de Melo Neto também faziam seus cadernos a mão. Sempre convivi com pessoas que levam a ideia de caderno a sério, artistas e escritores como  Valter Nomura( Tinho),  Rubens Espírito Santo, Angela Castelo Branco e Juliano Pessanha me são fortes referências  vivas neste quesito.  Sou paranóico para com isso, confecciono cadernos manufaturados semestralmente , pois os cadernos feitos a mão  me fazem maior sentido do que um comprado, eles me motivam, pois sinto que a escrita passa pelas fortes sensações de impregnação e pertencimento. Se me verem por aí e eu  estiver numa fase sem caderno, podem saber que estou em depressão , drogado, ou psicotisei mesmo. Meus cadernos me organizam a vida, vão além da literatura, neles anoto tudo, escrevo minhas metas mensais ,  tarefas do dia a dia , check lists,  colo imagens, referências , desenho e escrevo pensamentos . Parto sempre e principalmente daí .Minhas ideias vem da cabeça , do que escuto , do que leio, dos filmes que assisto, mas principalmente do que leio e anoto. Apesar de compor sempre uns contos na mente, de ser muito criativo, de imaginar coisas, fatos e imagens que não existem, numa espécie de paranoia , sempre parto de experiências reais do cotidiano, teorias filosóficas , algo que li, um filme que assisti, algum acontecimento, essas são minhas matérias, não tenho dado muita bola para imaginações , infelizmente. Um dia penso em me organizar para ter tempo de me debruçar e essas imaginações , sinto que minhas paranoias dariam bons contos. No mais o que tem me dado ânimo é fazer como o João Cabral; vi em um documentário que ele confeccionava seus cadernos e já colocava o título neles. Ou seja, o título do livro vinha antes do próprio livro  escrito. Isso tem me desafiado, além de me ajudado na tarefa de  pilotar o caos da minha mente, podendo escrever  vários livros de uma vez só,  pois me ajuda a saber que tenho um suporte pra cada linha de pensamento e que elas estarão ali quando necessário.

O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?

Diria que agora sinto que escrevo, e que cada dia que passa pareço comigo…rsrs. O hábito regular dos cadernos, diários, me ajudam muito, isso cada vez mais vem tomando corpo, me dando um corpo. Confeço que não me importo com estilo,  porém  parei de rimar quando escrevo, e essa é uma diferença para com meus primeiros escritos. Tenho asco de meus textos antigos com rimas, aliás, fora o rap, tudo que rima em poesia cada vez mais vem me desinteressando, salvo algumas raras excessões como Jorge de Lima em invenção de Orfeu . Olhando pra trás, percebo que tenho abandonado a pegada mais imagética, tenho me distanciado das vertentes de Roberto Piva , Herberto Helder, Claudio Willer , saindo do delírio imagético e indo mais para o cotidiano, pra uma poesia mais pragmática no estilo de Carlos William Carlos, ou  Drummond mesmo. Essas coisas tem me atraído mais,  tenho buscado esse ritmo menos romântico quando escrevo, evitando tudo que soa como poético, inclusive palavras poéticas. Porém  não refaço textos , acho inútil , é como retocar tatuagem, acho bobagem, se for pra sentir dor  prefiro fazer uma nova. Mas sem querer cagar regras, se precisar retomar um texto eu retomo também , pois como disse, a escrita está lá e ela pode servir para diferentes contextos .Não opero no plano do gosto, se gostei ou não do texto pouco importa, procuro agir conforme as demandas reais.  O importante é estar sempre escrevendo,  ter texto na mão , ter o calibre pesado.

Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?

Tenho uma ideia de gravar umas poesias encima de sons , fazer algo musical, gravar umas guias sonoras, cantar algumas coisas, algo que me proporcione cantar e dançar ao mesmo tempo, e ainda proporcionar isso aos outros. O projeto disso se chama enguias, estou na luta pra fazer isso andar. Também tenho  uns livros a serem publicados: ” Sutras e encruzilhadas”, “Opolus – vou ver a sobra que se és” , “dissensos”, “imagma” e o mais recente ” o bloco de notas mais rápido da leste” são alguns volumes à espera de serem publicados. A ideia é sentar com uma turma e ler, cocriar isso. Se se materializar um editor na minha frente, coisas  que lhe aqueçam  as  mãos não faltarão.   Agora um livro que não existe…, se eu entendi direito a brincadeira,  essa ideia me faz  imaginar um livro sobre as pinturas do Maiakóvski, ou sobre os subjéteis de Artaud, um livro sobre o bispo do Rosario escrito por Nise da silveira , poemas de Estamira com prefácio de Lou Salomé , coisas assim, como eu disse, o delírio é meu forte, sinto que se o poeta não passar por aí é melhor que cale a boca.

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    José Nunes é editor da Colenda.

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