Bruno Darcoleto Malavolta é poeta, professor e pesquisador, autor de Quase (Patuá, 2018) e O esquecido de si, Dante Milano (Cultura Acadêmica, 2017).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Sou indisciplinado. E noturno. Tendo a dormir o mais tarde possível. Creio que isso seja um “vão afã, como é vã toda tentativa de imobilizar o fluxo do tempo”, como diria Ivan Junqueira. Mas, quando estou dando aulas em todas as manhãs, isso se torna impraticável. O custo é muito alto: perco o dia. Por muito tempo rebati essa tendência com café e rivotril. Hoje, estou limpo das duas substâncias. Não vale a pena. A impressão que tenho é que o rivotril aumenta a ansiedade, já que tentamos ligar o corpo (daí o café) para rebater o estado quase cataléptico em que o rivotril nos joga. Sobre a interação de rivotril e escrita, quando fazia uso do rivotril, possuía outra percepção do processo de escrita. Podia entrelaçar inúmeros períodos e orações, fazendo enormes parágrafos. Era como uma imensa cama de calma, na qual eu me deitava e escrevia. Sem ele, me tornei um escritor mais violento, mais metafórico e menos racionalista (menos barroco, pensando nessa coisa de entrelaçar períodos). São humores distintos de escrita. Mas, por fim, a manhã para mim é, se estiver com a liberdade de não acordar cedo e dar aulas, uma hora imprestável. Rigorosamente imprestável. A noite sempre me parecerá melhor, e luto ainda contra essa tendência.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
No momento que o texto precisa sair (ou seja, deadlines), qualquer hora e qualquer lugar para a escrita parece ser bom. Mas, preferencialmente, escrevo noite adentro. Já li em alguma notícia e é verdade: escreve-se com mais criatividade e inventividade de noite, mas com menos produtividade. A noite, em geral regada a café, deixa o processo de escrita imerso numa espécie de lugar alienígena. Ou seja: escrevemos em uma espécie de universo paralelo, gerando uma espécie de efeito rebote: acordamos com culpa por termos escrito, literalmente arrependidos de termos escrito, com vergonha mesmo de olhar para o que foi produzido. O ideal me parece é aliar a lucidez crítica do dia e usar a noite para ter arroubos poéticos, inventivos, mesmo no texto acadêmico. Inventar de noite e concretizar de dia.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Já experimentei os dois, em termos de escrita acadêmica. Usei a meta de uma página por dia. Isso é interessante, pois abaixa a ansiedade, mesmo que não obedeçamos ao cronograma por completo. No mínimo, cria-se princípios de textos, que aos poucos vão se preenchendo. Na verdade, usei o processo para disciplinar minha escrita, na intenção de escrever, no futuro, um romance. Assim, percebi que me tornei mais metafórico, mais inteligente, mais crítico com relação ao texto. Escrever de uma vez me torna mais agressivo e violento. O texto ganha um punch massa. Parece um ringue. E o leitor sente isso. Não é bom nem ruim, são humores diferentes de escrita. De novo, aliar ambos me parece o ideal. Já a poesia, com o tempo passei a domar melhor minha voz. Não escrevo mais poemas ruins, hoje: eu em geral desisto deles antes de começar e, se começo, percebo rapidamente que se trata de um fracasso. Ultimamente, sempre sei quando de fato farei um poema.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A escrita, para mim, nasce da escrita, e não de notas. No máximo, esboço um índice. O que me dita o texto é o ritmo. Às vezes sinto que devo puxar para a direita, para a esquerda. Não há uma lógica clara nessa coisa do ritmo. Ele manda. Tendo, como é costumeiro em nosso meio, a postergar o máximo possível, e de repente me arremessar no texto com esse senso de urgência. Escrever quase sempre parecerá uma atividade inútil, o que pode levar a bloqueios. Deixar para a última hora nos cria um sentimento instintivo (instinto, mesmo) de sobrevivência. Nenhum boxeador pode entrar no ringue sem adrenalina, certo? Não lutaria bem. Não faz sentido. O mesmo com o texto. O senso do ator nervoso que entra em palco e dá seu melhor combina com essa coisa de protelar até o último momento, e acho, ao contrário do que em geral se acha, que é uma estratégia boa de escrita. É preciso trabalhar a cabeça para deixar a culpa de lado e encarar esse modo de escrita como um processo, um bom processo, melhor que muitos outros, em geral idealizações sem muito pé nem cabeça: “tenho que escrever assim, assado”. Isso não funciona na prática.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Aprendi a respeitar tudo isso. Procrastinação é importante, ansiedade é importante. Hoje, sei que farei, mesmo que não esteja fazendo. E, se não quiser, não faço, mesmo. E sei que ficará bom, no fim das contas. Ou seja, “bom”: ficará o máximo que posso fazer, que pude fazer, e nada mais que isso. Querer mais que isso é uma ilusão vaidosa. E a vaidade mata qualquer texto. O texto jamais será a melhor forma acabada e idealizada de si. Um texto é apenas uma fotografia da sua alma. Da sua alma naquele momento. Nada mais. Em geral, não é o trabalho da sua vida e, se for, você só saberá após a publicação.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Leio e releio o texto do começo muitas vezes, sobretudo quando perco o fio do texto. Sou antes de tudo um revisor. Mostro, adoro mostrar os parágrafos bonitos. Quase sempre me arrependo depois e acho que ficaram feios, mas, na hora, rio, me divirto. Veja: há duas inteligências. O escritor e o restaurador. O restaurador é quase mais importante que o escritor. É impossível recuperar a alma e o ânimo daquele momento específico da escrita de um texto. Foi uma outra alma que escreveu tudo aquilo ali. Por isso é tão difícil, como diria o Octavio Paz, mexer num texto pronto. Não é mais seu, as palavras não correspondem mais a sua “nova alma”. Mas o seu eu que nasceu mais maduro daquele processo de escrita é um restaurador foda. Ele pode melhorar o texto e entender melhor o que o texto quis. A ansiedade que as pessoas em geral sentem, com relação à escrita acadêmica, tem a ver com querer a perfeição de saída. Isso é um absurdo. O restaurador deve corrigir o texto rindo do escritor, da ingenuidade do escritor. A ingenuidade é amiga do escritor, porque permite os grandes voos, as generalizações rasantes, as ingenuidades criativas, às vezes vaidosas, a ousadia, enfim. Mas o verdadeiro escritor, no fim das contas, é o restaurador, pois é ele que dá o tom e o humor do texto final. Uma frase numa tese, e uma palavra num poema, podem mudar o texto por completo.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Não faço rascunhos, é sempre direto o objeto final. Minha memória é grande a vida, e isso é algo além de meu controle. Enquanto escrevo, outros textos saltam na minha cabeça. Em geral, decoro quase tudo que escrevo. É uma coisa minha, difícil de explicar e de encontrar. Borges tinha isso. Então, uma enorme estrutura do texto vai se desenhando na minha cabeça. Em alguma medida, mais ou menos, de todos nós. A tecnologia entra como uma espécie de memória artificial, me serve como um dicionário de caos. Ou seja, a tecnologia te proporciona procurar e citar qualquer coisa em qualquer momento que quiser, rolar o Facebook e os jornais e entrelaças informações e relações imprevistas, e isso enriquece qualquer texto. As informações aleatórias são fundamentais para a escrita. Esses tempos, comecei um capítulo de minha tese querendo citar algo que o Eduardo Sterzi, poeta e professor da Unicamp, tinha postado no Facebook. Não achei por nada. Revirei o Facebook, e achei no máximo um comentário de um cara com uma matéria sobre o assunto. Comecei o capítulo assim: “É conhecida a anedota do professor de literatura inglesa, num campus universitário inglês, que, enquanto levava à boca uma xícara de chá, diz ser a literatura brasileira muito diferente da literatura ocidental, e por ocidental se referia: às literaturas europeias e estadunidense”. Ora, essa anedota não existe. Mas o ritmo do parágrafo dá um tcham no texto, parece que é possível argumentar para qualquer lado, agora, que qualquer coisa que disser irá colar. Retórica não é a verdade, nem é só sistema. Retórica é, sobretudo, ritmo. E até piada. O humor é uma parte da retórica importante e esquecida, e isso o Quevedo já criticava em Aristóteles.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Só conheço uma fórmula: nutra-se de experiências e leituras, sobretudo as aleatórias. Às vezes, antes de começar um texto ou parágrafo, abro ensaios e romances aleatoriamente, em busca de uma dicção parecida com a que busco imprimir no meu texto. Em geral, relaciono as últimas leituras (como esse caso do Facebook) com antigas, e começo sempre de um ponto rigorosamente nada a ver com o texto. Começar de um ponto x me parece importante parece se conduzir o texto aonde se quer chegar. Claro. Não é um desenho livre. Mas tampouco é uma prisão. No entanto, se achar mais honesto, começo do óbvio, e procuro não inventar muito. É preciso, como sempre, equilíbrio.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Não faço mais coisas mirabolantes, não tento dar uma de gênio, e respeito o texto que não quer sair. Não forço a barra. Não diria nada a mim mesmo antes. Sofri muito para aprender isso. Não há outra forma de aprender.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Escrevo os poemas que gostaria de ler. Escrevo a poesia que eu acho que deveria existir. Já, na tese, escrevo o texto que posso. Textos que acho que deveriam existir, no sentido de seu conteúdo, e não no estético. Isso não significa que ache necessariamente bom aquilo que escrevo. Significa, só, que respeito o texto como espaço limitado, espaço da limitação por excelência. O texto é o que deve ser, o que pôde ser. É o que você pôde fazer naquele momento. E também o que não pôde fazer. É, como disse, uma fotografia da alma. Em baixa resolução. Querer mais que isso mata tanto o autor do texto quanto o texto. Borges dizia que nós começamos, os escritores, barrocos, “vaidosamente barrocos”, e que quando jovem costumava “colher as flores de metáfora”. Respeitar a sua própria voz pode trazer a paz de espírito necessária para abandonar a ansiedade e a vaidade (são irmãs) e concentrar-se no que o texto pede de você. No fim, só há o texto, jamais o autor. O autor do texto passado não existe mais, e deve se concentrar, sempre, em não se repetir. Inventar pode ser a chave para anular a ansiedade, já que invenção e erro são rigorosamente a mesma coisa. Errar, errância, são caminho. E “verso” significa, em latim, retorno.