Bruno Bucis é escritor, jornalista e professor, mestrando em literatura pela Universidade de Buenos Aires, autor de “Noites de Sol” (2017).

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Mais essencial que o sol é o café para começar o dia.
Eu tenho algumas “personas” profissionais. Além de escritor sou também professor, jornalista, mestrando, então variam os dias de qual desses Brunos desperta primeiro. Raramente escrevo pela manhã; não que ache contraproducente, mas é este o turno em que eu tenho mais energia para outras obrigações. Ainda que não seja o Bruno Escritor que começa o dia, eu sempre estou em contato com a literatura desde as primeiras horas: lendo, participando de uma aula, estudando por conta própria, ou mesmo limpando a casa enquanto escuto algum bom podcast literário.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
A escrita é vespertina ou noturna para mim. Sobretudo noturna. À tarde, as produções acadêmicas costumam tomar minha agenda, principalmente quando estou criando alguma temporada do livrAL, meu podcast sobre a literatura latino-americana contemporânea. Para mim, é a noite que tem mais cara de literatura. Não porque eu me sinta mais inspirado pela lua, mas gosto de escrever quando não restam outras coisas urgentes a fazer, quando terei tempo de ficar ali até cansar, sem precisar interromper as palavras. Detesto ter que parar uma história no meio, tanto como escritor como leitor. Me esforço ao máximo para ir pelo menos até o final do capítulo, ou de seu equivalente.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho uma meta. Tendo tantas obrigações reunidas em uma rotina, não gosto de transformar a escrita em uma delas. Quando estou empolgado com um projeto, deixo ele fluir. Quando ele não caminha, deixo ele quietinho um pouco. Não gosto de transformar a minha escrita em exigência.
Acabo escrevendo em períodos concentrados, quando estou empolgado com a história que estou desenvolvendo, quando ela também me deixa curioso e eu quero descobrir para aonde vai aquele caminho.
Gosto mais da palavra empolgação que inspiração. Inspiração não parece dar trabalho e a escrita é um processo cansativo, reflexivo, trabalhoso por natureza. Talvez daí a minha ideia de não criar um horário para isso.
Há ocasiões, porém, quando se aproximam datas de entrega de originais por editais de seleção, por exemplo, em que é preciso assumir uma rotina de escritura mais regrada. Nesses momentos, eu deixo a minha persona jornalista, acostumada a dead lines, tomar conta dos projetos.
Se quero que uma história que já está concluída, mas que ainda não foi editada fique pronta mais rápido, acabo inventando uma data limite qualquer — e respeito datas limite inventadas tanto quanto as estabelecidas — para me obrigar a assumir o “profissional” de escrita. Não uso esse recurso muito, é como um poder especial, uma carta na manga, que me permite ser, no geral, livre com minha criação, mas poder ter controle sobre ela quando é preciso apertar as rédeas do carro.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu não tenho muito medo da página em branco. Gosto das possibilidades que ela dá. Talvez por isso goste tanto de começar a escrever sempre a partir de um capítulo novo.
Eu planejo muito a história antes de começar a escrever. Sei onde quero chegar quando começo. Na verdade, sei uma hipótese de onde quero chegar, mas muitas vezes acabo parando em um lugar totalmente novo ao longo da jornada.
Um conto que escrevi, por exemplo, sobre uma vendedora de máscaras que trabalhava durante a pandemia, que era para ser uma comédia tola sobre a confusão entre máscara de cílios e máscara de proteção, acabou virando um texto denso, que discute precarização do trabalho, desvalorização da vida humana… Se no meio do percurso eu fico perdido, volto do início, releio e dali me surgem novas ideias.
Meus textos se alimentam muito do processo de edição. Mais que cortar ideias, ele primeiro é um multiplicador de possibilidades. Só depois do ponto final, ou melhor, do primeiro ponto final, é que volto para uma edição de cortes, limpeza e aclaração. Para mim, a pesquisa e a escrita são concomitantes. Não imagino o personagem totalmente antes de dar voz a ele. A voz tem que vir junto, ela indica também que história daquela vida quer ser contada.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Como falei, não tenho muitas travas. Não tenho medo de que um projeto comece apontando para um lado e que depois decida fazer uma curva fechada e mudar de direção. Deixo as coisas acontecerem primeiro para depois buscar dar sentido coeso a elas.
Com a minha alternância entre escritor livre e jornalista exigente, coloco a procrastinação e a produção em uma balança, busco o equilíbrio entre elas para que as coisas não percam sua função de dar prazer. Para mim, as boas histórias dão prazer não só a quem as consome, mas também a quem as produz.
Expectativas, ansiedade… Isso é fruto de uma visão de que temos que entregar as coisas, que temos que chegar a algum lugar com nossas carreiras, coisas que eu tento me afastar. Já há muita gente torcendo contra para que o escritor seja outro flagelo de si. Não sou uma alma evoluída, porém.
Claro que há um aspecto inevitável de autocobrança em tudo que fazemos, queremos ser lidos, publicados, discutidos, eu também quero, mas às vezes queremos tanto chegar lá que não apreciamos onde estamos. Sempre que esse pensamento de cobrança ou mesmo de inveja me vem, tento voltar a tudo que eu já obtive, entender que estar aqui, onde estou, já é um privilégio.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu reviso cada texto ao menos duas vezes.
A primeira faz o bolo crescer. Ela vai esclarecer frases que ficaram truncadas e se inspirar em pequenos detalhes que estavam soltos e que vão ganhando novas simbologias e contextos, isso porque eu só entendo completamente a mensagem que quero trabalhar em um livro ao chegar a seu final.
Depois vem a segunda edição, cortando os excessos, em que eu tiro as coisas que acho desnecessárias e que acabavam travando o ritmo do livro.
Quanto às leituras críticas, já no primeiro momento eu discuto as histórias com amigos, mas gosto de ter umas vinte páginas de rascunho antes de mostrar isso a alguém. Sempre mostro meus livros para muita gente antes de publicar, as contribuições que uma segunda visão pode dar são impressionantes. Nos contos nem sempre faço isso, apenas se acho o texto muito criativo, se acho que combina com a pessoa que quero que leia. Os poemas, esses são de esfera mais íntima. São os textos meus que menos vem à luz.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Tudo no computador. Caderno não tem ctrl+F. Adoro a facilidade que essas tecnologias dão, mas não confio totalmente nela. Quando estava no começo da minha primeira faculdade, eu tinha um computador muito ruim, mas era meu tesouro. Um dia ele bugou, não quis mais ligar, tive que formatar e perdi todos os textos que estavam nele. Desde então passei a escrever em nuvem, pelo Google Docs ou pelo One Drive, e ainda salvo esses arquivos de tempos em tempos. A única coisa manuscrita que faço é um mapa com alguns detalhes da narrativa que eu posso retomar depois e que deixo em uma folha com o nome dos personagens, para não me esquecer. Nem sempre, porém, ele é necessário e nunca toma mais que uma página.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Viver dá ideias. Conversar, conhecer causos, fofocas. Muitos foram os escritores que fizeram uma defesa da fofoca como o nascimento de toda arte, o Cozarinsky tem um texto muito legal em que traça esse histórico. Eu acho que meu texto nasce dessas conversas, que é o momento em que se estuda a psique, em que se narra a vida. A gente cria narrativas para metaforizar o mundo ao redor, isso todos nós, não só os escritores. Quantos relatos sobre tias assassinas, sobre primas que eram capazes de destruir hospitais para não tirar sangue, sobre amigos que escalavam melhor que gatos. Em todos esses lugares está a origem de ótimas narrativas.
Mas acho que nos últimos tempos o que mais tem me inspirado é o mestrado, as leituras filosóficas e teóricas que faço. Estudo literatura e em um estudo profissional de crítica você se depara com muitos casos de gente que soube experimentar com a literatura, de escritores que fizeram livros inteiros sem a letra “E”, ou usando um texto em segunda pessoa, projetos arrojados, inventivos e que te inspiram também a desafiar a si mesmo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acho que eu me tornei mais interessado na forma. Eu achava antes que bastava uma boa história para se ter um bom livro, mas é preciso mais. É preciso uma boa história com uma boa forma de contá-la, uma voz que combine com aquele relato.
Nada mais feio, por exemplo, do que um livro infantil que não sabe se comunicar com crianças. É preciso saber falar, saber onde desafiar-se, onde desafiar o leitor, onde explicar, onde apenas deixar supor. Comecei com o tempo o livro como um parente mais próximo do jogo de tabuleiro do que do relatório.
Se eu pudesse voltar à escrita dos meus primeiros textos eu experimentaria mais com a forma deles, mas também gosto de ver a evolução de lá pra cá. Nos pedaços em que não me reconheço, em que vejo que amadureci, é bom encontrar essas marcas.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Começar projetos não é difícil, difícil é terminá-los (risos); mas eu tenho um sonho de ajudar outros escritores, de fazer projetos de escrita criativa em escolas e faculdades, coisa que eu ainda não pude tocar adiante, mas que espero realizar.
O livro que eu gostaria de ler e que ainda não existe é o livro que conquistasse de uma vez todos aqueles que tem medo da leitura, que trouxesse para o mundo das palavras quem foi traumatizado por elas.