Bruna Meneguetti é jornalista e escritora, autora de O Céu de Clarice.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Minhas manhãs são tão ausentes de criatividade que fico pensando como os autores conseguem dar respostas interessantes para essa pergunta. Geralmente vou dormir tarde e me obrigo a acordar em um horário aceitável para resolver algumas obrigações da vida. Uma vez ouvi falar que os escritores produzem bem nas primeiras horas do dia, que é quando a mente está mais limpa e descansada para dar asas à imaginação, porém só aplico essa lei quando sei que terei um dia muito cheio e a minha cabeça estará fritando dali a poucas horas. Nesse sentido, funciona. A verdade é que a manhã voa e eu não tenho a menor intenção de domesticá-la ou que ela me domestique. Ficamos bem assim.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Quando não tenho tempo, trabalho bem em qualquer hora e quando tenho costumo produzir mais do meio da tarde para a noite. As horas depois do almoço são as mais difíceis de escrever – ainda que haja criatividade, diferente das manhãs. Sou um pouco míope, de forma que não é raro confundir o cavalo do carrossel, que só dá voltas, com o puro sangue, responsável por me levar para longe. O ritual envolve falar com fantasmas do passado, olhar os formatos das nuvens e prever o futuro através delas como nas borras de café. Quando não há tempo para fazer isso, o único ritual é sentar em algum lugar, pegar algo onde possa rascunhar e ficar ali até a hora proposta por mim.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Minha meta diária é conseguir fazer algo suficientemente bom a ponto de ser capaz de puxar aquele fio e partir dele no dia seguinte. Esse ano minha vida mudou um pouco depois que ganhei um edital de publicação de livros para terminar o meu próximo romance histórico. Tive que largar um emprego fixo para finalizar o projeto, então tem sido um período de dedicação máxima; todos os dias escrevo e reviso, enquanto concilio com os meus freelas. É simplesmente maravilhoso poder fazer isso, algo que nunca havia experimentado. Antes, tentava escrever quando tinha tempo: antes ou depois de chegar do trabalho, no transporte público, na pausa do café, no final de semana, enquanto fingia fazer a pausa do café… Foi assim que terminei o meu primeiro livro, então é possível, apesar de demorar muito mais. Quando estou num grande projeto, como o romance, de vez em quando pego algumas horas para rascunhar um conto ou um poema, isso me dá impulso e fôlego para continuar o projeto longo. É como se o conto e a poesia fossem cilindros de oxigênio e o livro fosse o mergulho, se eu não respiro me acabo ali dentro.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Começar é fácil, o difícil é terminar por mil razões: o projeto dá trabalho, ficar tanto tempo em um só é cansativo, o processo é longo, tudo parece mais importante e pode ocorrer um verdadeiro desânimo com a própria obra. No começo há a empolgação genuína capaz de mover bibliotecas. Inclusive, no caso dos meus romances históricos, há uma busca muito grande de informações em livros e detalhes que, muitas vezes, apenas um especialista consegue esclarecer. Digo que dá trabalho, no entanto é maravilhoso. O meu livro vem desse processo… Quanto mais bem feito ele for, mais amarrada eu consigo deixar a história. Geralmente tenho a ideia primeiro, uma cena que não sai da minha cabeça e não importa se ela vai estar no começo, meio ou final do livro, tenho que colocar no papel. A partir disso começo a pensar no que preciso pesquisar. Uso um método chamado snowflake para estruturar minha história: começo pensando no que espero do começo, meio e final, depois em quais personagens vou ter e suas características. Enfim, o enredo vai se construindo e chego ao ponto de saber as principais cenas do livro, uma após a outra (obviamente mudo muito conforme escrevo). Como sempre faço livros grandes, o método evita que eu chegue no final e perceba que há uma incoerência no começo e que, portanto, isso me faria mudar cinco capítulos (escrevi sobre o método no meu site, para quem quiser dar uma olhada). Nos contos e poemas a pesquisa é mais interior, acho que há um descompromisso também, já que faço eles mais para satisfazer a vontade de querer jogar para fora. O romance não age dessa forma, há dias que não tem o que jogar ou não quer jogar e precisa escrever mesmo assim. O que me motiva nesses momentos é justamente a pesquisa. O livro em que estou trabalhando agora, por exemplo, se chama O Último Tiro de Guanabara e conta sobre um golpe de estado que tentaram dar em Juscelino Kubitschek antes de ele assumir a presidência. Isso foi em novembro de 1955 e pouca gente sabe do episódio, ocorreu até diversos tiros de canhão em frente à praia de Copacabana e a população colocou lençóis brancos nas janelas sem entender o que estava ocorrendo. Nesse período tivemos o presidente Carlos Luz, que foi o que ficou menos dias no poder: apenas quatro. Gosto de trabalhar com esse passado; coisas de que ninguém lembra, episódios que não fazem sentido, que nunca foram explicados e parecem irreais. É por esses “buracos” que me guio, jogo terra ou qualquer outra coisa para preencher e nesses preenchimentos minha história fictícia acontece. Quantas vezes estava num impasse e a história real do Brasil me ajudou a sair dele ou a usei para ter mais ideias sobre o que escrever naquela cena? Nesse sentido, a pesquisa obriga a fazer pausas e igualmente me move para frente.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu não lido, quer dizer, o abismo está lá e existe, nem por isso você vai sair correndo em direção a ele. Agora, é o medo de não corresponder às expectativas de quem, exatamente? Acho que grande parte das pessoas têm uma idealização interna muito grande do que um trabalho de escrita próprio vai vir a tornar-se. Tento tomar cuidado para sonhar e encarar as desilusões depois do sonho. Uma forma de fazer isso é entender como o processo todo funciona, assim a desilusão é menor e menos problemas chegam de surpresa. Controlar a ansiedade de publicar é importante, caso contrário quem está começando cai em umas camas de gato e, convenhamos, para vender você tem que entender o mercado primeiro. Não dá para ganhar dinheiro com abajur se você sequer sabe para quem vender ou como ele é produzido. Um livro não é diferente. Não vou mentir, há momentos em que dá vontade de largar tudo, esquecer os sonhos e fingir que nada do que escreveu presta. Se você é artista, não vai ter um caminho “certo” e, muito provavelmente, terá de fazer outras coisas até se estruturar. A estabilidade faz falta, porém, na corda bamba dos dias, a gente anda num passo de malabarista. Quero dizer, se tentarmos ficar quietos, caímos. O lado bom é que tirando o meu namorado, meus pais, família e amigos, ninguém espera muita coisa de mim, até porque eu sou jovem, então, de certa forma, as chances de surpreender são maiores. Outra trava que tento deixar bem longe é não me importar caso as pessoas associem o que escrevo a minha personalidade. Antes tinha mais medo, pensava que se fizesse um texto com um personagem louco, suicida, enfim… Que isso teria um reflexo no modo como as pessoas me percebem. Pensava que poderia causar problemas, porque muita gente não sabe distinguir o que é ficção e o que é realidade. Pode parecer besteira, mas há quem odeie um autor por ele fazer um personagem machista ou homofóbico. Não é assim que funciona a literatura. Depois que nos livramos desses pensamentos, até as ideias são novas, pois inconscientemente havia um bloqueio. Outra questão é a procrastinação. Ela é difícil, talvez uma boa maneira de lidar seja estabelecer metas, ter prazos. Por causa do edital do O Último Tiro de Guanabara, toda vez que ia procrastinar pensava no tempo que estava perdendo. Muitas vezes isso ajudou e penso que nos próximos livros tenho que agir um pouco desse modo. Claro, existe o respeito, há dias em que o cérebro não funciona bem. Só não pode virar rotina, a rotina é a escrita e ponto.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu só paro de revisar quando quero jogar aquele texto dentro do Kilauea – ao que parece é o vulcão mais ativo do mundo – no Havaí. Isso aconteceu com O Céu de Clarice, porém para esse desejo despertar leva anos. Geralmente, paro de revisar quando acaba meu prazo para entregar ou fica vergonhoso tentar prorrogar. Gosto de deixar o que escrevo adormecendo na gaveta. Se é um texto mais curto, sinto que ele precisa de uma ou duas semanas sozinho, se é um romance pode ser alguns meses. Tento mostrar os manuscritos para pessoas de minha confiança antes de publicar, via de regra minha mãe e meu namorado são sempre pessoas que leem meus escritos. Apesar de serem suspeitos, eles não aliviam e é comum sugerirem cortar um personagem ou um capítulo inteiro. Minha mãe foca mais no português e no enredo geral, meu namorado – o André Cáceres, que também é escritor e manda muito bem com ficção científica – repara mais nas frases, congruência dos personagens e estruturas dos capítulos. Fora eles, tento disponibilizar para alguns escritores de quem gostaria de saber a opinião. As pessoas que gostam de você e entendem a importância do que faz costumam ser sinceras.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Prefiro escrever no computador. Adoro o fato de que a tecnologia possibilita poder editar e reescrever o quanto quiser, além de já deixar pronto para publicar em algum lugar. Uso um programa de “escrita” chamado Scrivener. Para mim é melhor que o Word, pois ele nunca perde os arquivos, além de tornar a navegação de um capítulo para o outro e de uma pesquisa ou anotação para o enredo em algo fácil. Uso o Evernote e Google Keep para guardar as minhas ideias ou frases, além de colocar meus textos prontos no Google Drive e em meu site. Tento fazer com que a tecnologia cumpra o seu dever principal, que é me ajudar e não distrair, por isso mantenho distância do celular e redes sociais nos momentos de criação.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
As pessoas dizem que não existe isso de inspiração, mas eu acho que sim. Já cheguei a parar tudo o que estava fazendo para anotar uma boa frase. Aprendi que nem sempre dá para confiar na memória e que pode acontecer de ter uma ideia agora e colocá-la em prática apenas dois anos depois. Quando quero escrever e não sei exatamente sobre o quê, vou nesses lugares onde depositei essas pérolas, pego alguma que me agrade e começo a trabalhar nela. Obviamente, quando os momentos inspirados vêm sinto que se puder parar tudo o que estiver fazendo é melhor. Só penso que o escritor não deve se guiar apenas nesses períodos para produzir alguma coisa, até porque, muitas vezes, a danada da inspiração aparece quando você já está no meio de outra tarefa. Aliás, comumente ela surge durante o banho. Na verdade, eu acho que as ideias gostam de água, o que é terrível pois anotar coisas no box do banheiro não é muito eficaz. De qualquer forma, percebo outros momentos em que estão mais propensas a surgir. Nessas horas eu geralmente estou: descansada, viajando em uma maionese qualquer, em uma conversa com amigos ou ouvindo a conversa de pessoas estranhas, ou em cursos de escrita e eventos artísticos. Quando fico muito tempo sem criar coisas novas frequento esses cursos, pois ter contato com gente é algo que me inspira, especialmente com escritores. O trabalho da escrita é algo muito solitário e, nessas ocasiões, é um momento do dia em que me permito fazer uma pausa e apenas pensar sobre o que posso escrever. Às vezes é isso, a ideia não vem porque a gente não separa sequer um minuto do dia para poder criar sem compromisso. Além do mais, as discussões e as aulas me estimulam a pensar sobre outros pontos de vista e experimentar. Acho curioso o fato de que o ritual de escrita envolve muito mais persistência e análise. Tem gente que desiste quando percebe que a maior parte do tempo é ficar olhando para o papel em branco, a frase mal formulada e a solução errada. Para mim, a escrita é o momento em que você resolve, é nesses instantes que a gente se vicia porque é muito prazeroso descobrir o que estava errado e observar como, de repente, conseguiu achar o que precisava. Isso deve ter algum efeito no corpo, pois vicia (o que explica o fato de tanta gente ter começado a escrever nos últimos tempos).
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Certamente eu fiquei mais organizada no meu dia a dia, consegui trabalhar meus horários melhor e me disciplinar mais. Também estou tentando escrever menos quantidade de páginas, pois me empolgava demais nos meus livros e contos. Além disso, aplico esses métodos de estruturação de histórias, que ajudou muito. Sinto que minha escrita está sempre mudando e que ainda há certa busca por uma voz. Talvez eu diria para o meu eu do passado não se importar com o que os outros poderiam pensar ao ler algo. Creio que isso teria feito uma diferença importante no processo da minha formação.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Em geral meus projetos estão na fila de espera com senha na mão, sei que uma hora vou chamá-los. Há vários livros que penso em fazer, mas preciso ir em um de cada vez. Pretendo criar uma ilha perdida no nordeste, a filha doente de um militar em plena ditadura, pegar uma personagem feminina histórica bem forte e esquecida para colocar a luz do palco nela. No campo da não ficção, pretendo ir para a menor cidade do Brasil e contar sobre as pessoas que vivem lá, também desejo entrevistar autoras e autores brasileiros, publicando em forma de perfis jornalísticos. Sobre o livro, com tanta obra e escritores perdidos pelo mundo acho muito difícil existir algo que gostaria de ler e que ainda não foi escrito. No entanto, seria maravilhoso caso chegasse em minhas mãos algum Os Miseráveis contemporâneo. Foi um livro que me marcou profundamente e estou no aguardo de outro capaz de fazer o mesmo.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
As pessoas falam que existem três maneiras de escrever: você pode ser “jardineiro” e ir escrevendo sua história conforme a vontade e as ideias que surgem na sua cabeça no dia a dia do trabalho; pode ser “arquiteto” e planejar todo o roteiro, do começo ao fim, antes de começar a escrever o livro; por fim, pode ser um pouco dos dois ao planejar algumas partes e permitir que outras sejam mais livres. Eu escolho uma dessas opções de acordo com a proposta do projeto, do quão interligada a história e os personagens vão ser.
No caso dos meus romances históricos, descobri que não posso simplesmente deixar a história fluir e brincar de “jardineira” o tempo inteiro, caso contrário vou encontrar muitos problemas no futuro. Tentei fazer isso no meu primeiro livro, O céu de Clarice. Como era um projeto longo e eu tive que pará-lo diversas vezes, ficava sempre difícil retomá-lo e lembrar onde eu estava na trama ou qual plano tinha traçado para algum acontecimento menor da história. Então, sempre relia o que estava escrito. Além disso, depois de escrever ele todo, percebi diversas incongruências no final e, por causa delas, mudei coisas que estavam no começo ou no meio.
Lembro que tudo nesse livro deu muito trabalho e que demorei muito para finalizá-lo. Muitas vezes não achava incongruências, mas mudava de ideia sobre um ou outro personagem e caminhava para trocar trechos de novo. Outras vezes, ficava com tanta preguiça de mudar os detalhes que resolvia deixar quieto. Hoje eu sei que todos esses problemas, ou a maior parte deles, seriam prevenidos com um simples planejamento. O mais triste é que, apesar dos vários anos que passei escrevendo e reescrevendo a história, ainda não acho que ela esteja pronta. É um livro que precisa de uma edição feita com planejamento, de preferência.
Felizmente, não cometi o mesmo erro com O último tiro da Guanabara (Reformatório, 2019). Fiz toda a pesquisa histórica e montei a trama antes de escrevê-lo. Mesmo assim, ainda fui “jardineira” em alguns capítulos. No fim, creio ter encontrado um bom equilíbrio. Nessas obras maiores, mais complexas, de histórias interligadas e várias relações entre os personagens, eu prefiro usar algo que se chama “método snowflake”. Já fiz vídeos sobre esse processo e publiquei no YouTube, caso alguém queira ver. É um método que pode ser alterado sempre e que me ajudou demais. Usei ele em O último tiro da Guanabara e estou usando para o meu próximo romance histórico também.
Depois desse método, achei que nunca mais voltaria a ser apenas “jardineira”, porém agora tenho um projeto de um livro de contos e de uma peça de teatro em que estou simplesmente “deixando fluir”. Nesses casos, as histórias e detalhes da trama vão simplesmente pipocando na minha cabeça e um fio narrativo vai puxando o outro, então estou seguindo assim porque é como está dando certo. Se eu fosse tentar planejar essas histórias, acho que não conseguiria. Ou melhor, conseguiria, mas também é gostoso escrever sem tantas amarras assim como é bom escrever com amarras, porque faz você refletir mais sobre o que está fazendo. Coisas boas podem sair das duas maneiras.
Eu sempre falo que é uma delícia começar um livro e é uma delícia terminá-lo. Difícil mesmo é o meio, quando você está cansado, não sabe muito bem que rumo vai tomar a seguir e começa a achar que tudo ali está ruim, apesar de todos os planejamentos. Eu acho que a parte do meio é a mais cansativa da escrita e é onde as histórias costumam perder os leitores. A gente tem que tomar muito cuidado com o meio. Por outro lado, não é mesmo fácil pensar no começo e no final. Acho que os dois dão o mesmo trabalho porque você sabe que tem que ser muito mais potente e impactante nesses lugares. O leitor precisa querer segurar sua mão e se sentir puxado por ela, como se você o estivesse ajudando a se levantar para algo. Depois, no fim, ele precisa sentir dor ao ir embora, como também precisa sentir que essa dor é cheia de prazer e nostalgia da narrativa. É difícil. Geralmente os meus finais são escritos muito rapidamente, mas são os trechos mais reescritos do livro, então é um trabalho muito braçal e intelectual. Por outro lado, o meio não é exatamente difícil… Ele é mais doloroso mesmo, porque não é comum que seja reescrito tantas vezes, mas é ali que você encara os seus próprios demônios, tal como os personagens.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Eu tento escrever um pouco por dia. Numa semana normal, isso quase nunca é possível porque eu sou freela e meus horários nunca são iguais ao da semana anterior. É por esse motivo que sou contra àquilo de: “é só arranjar uma horinha por dia para escrever”. Todo mundo fala isso em todos os setores: “É só arranjar uma horinha por dia para estudar espanhol”; “é só arranjar uma horinha por dia para fazer fisioterapia”; “é só arranjar meia horinha por dia para meditar”; “uma hora para exercícios”; “uma para escrita”; “uma para leitura”; “uma para ler as notícias”. E, no fim: “não se esqueça de achar tempo para fazer o que quiser”. Bom, só nisso já foram cinco horas e meia. E isso que estamos falando de uma pessoa privilegiada, que ainda consegue ter horas vagas no dia.
Enfim, diante disso eu tento não ser tão maldosa comigo. Vou fazendo “conforme dá” e acho que no fim das contas isso é o mais importante. Você precisa ter disciplina de fazer, é claro, mas é difícil cobrar disciplina se você trabalhou dez horas no dia. Enfim, organizo minha semana justamente a partir desses momentos de “horinhas que podem ser ocupadas com coisas que preciso e quero fazer”. Muitas vezes, passo semanas sem escrever. Então, surge uma semana que está muito tranquila e pego várias horas para cuidar de algum projeto. Enfim, minha semana é organizada na base do “agora dá” e “estou descansada para fazer isso”.
Na quarentena, por causa do Coronavírus, os trabalhos sumiram em grande parte e tive tempo de contabilizar certas coisas. Todo dia escrevendo, quase que exclusivamente dedicada a isso, me rendeu um conto de 8 páginas em sete dias. Nem sempre demora tanto assim, outro dia escrevi um conto de sete páginas em três dias. De qualquer forma, fico pensando que se fosse uma semana normal, talvez eu demoraria o dobro ou o triplo de dias para acabar os contos caso os trabalhos que me dão dinheiro estejam em um ritmo muito intenso.
Então, eu demoraria 21 dias úteis para escrever o conto de 8 páginas, o que daria praticamente um mês. No caso do conto de sete páginas, é provável que eu demorasse 9 dias úteis para terminá-lo, ou seja, umas duas semanas. Isso pode ser frustrante no dia a dia, porque você sente que nunca está avançando, que está muito lenta. Não é verdade. Vou tentar me lembrar desses pensamentos daqui em diante. No fim das contas, a arte tem um tempo de criação e a cobrança só atrapalha e desanima.
Sobre os projetos: acho que nunca aconteceu de estar em dois ao mesmo tempo, mas também não gosto de começar um e seguir nele, sem escrever mais nada, até o final. Geralmente, no meio do projeto do romance, acabo tendo uma ideia de conto ou poema e dou uma paradinha para escrevê-los. Isso realmente me ajuda porque sinto que dou uma respirada e volto com a cabeça mais arejada para o projeto maior. Às vezes, volto até com novas ideias ou consigo sair de uma parte em que estava engasgada. Estou fazendo o mesmo no meio do meu projeto de livro de contos, já parei ele algumas vezes para escrever outros contos e poemas que em nada tem a ver com o livro e que certamente não entrarão nele. Fora isso, não sei se conseguiria tocar dois projetos grandes ao mesmo tempo, cada um deles exige muito de quem escreve.
O que motiva você como escritora? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Teve um momento em que percebi que tinha que me dedicar à escrita e não só a ela, mas a entender todo o mercado, a conhecer os escritores contemporâneos e os processos de publicação. Foi quando decidi que queria mesmo ser escritora, com todos os ônus e louvores dessa profissão. Percebi que se continuasse escrevendo a esmo, sem me dedicar a isso, que nunca finalizaria nada ou que tanto trabalho iria acabar morrendo na praia, sem ser publicado ou lido. Mas só notei isso depois de ter passado alguns anos fazendo justamente o contrário: escrevendo de vez em nunca, sem mostrar a ninguém, sem refletir sobre minha própria obra e sem interagir com as pessoas do meu meio. As ideias mudaram quando entrei no Curso Livre de Preparação para o Escritor, o Clipe, da Casa das Rosas.
Estudar a literatura, fazer diversos textos, conhecer e estabelecer contatos com as pessoas do meio literário foi tão enriquecedor que percebi que precisava disso caso quisesse levar a escrita a sério. E, se eu não fosse levá-la a sério, o que mais levaria? Desde que me conheço por gente, quis ser escritora. Pensei: ok, então serei uma escritora e vou entender mais sobre essa atividade, como eu faria com qualquer outra profissão que quisesse seguir.
Tem muita gente que só quer escrever ou publicar um livro e está bom, tudo bem. É uma escolha, porque fazer disso uma profissão é realmente algo que exige tempo e dedicação. Você vai ter muitos resultados positivos no caminho, mas vai se frustrar muito também. No meio de tudo isso, o que me motiva a escrever é a simples vontade e satisfação. Existe um desejo por contar histórias e uma satisfação ao conseguir fazer isso, ao terminar um projeto, publicá-lo e fazê-lo ser minimamente conhecido, para depois largá-lo como quem larga um filho criado para o mundo.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
Eu ainda não sei qual é o meu estilo, o que é triste porque todos parecem saber e agir como se eu devesse saber também. Talvez eu ainda esteja tentando descobrir e talvez nunca descubra. Porém, acho que tudo que leio acaba me influenciando de alguma forma. Já peguei tanto detalhe interessante em uns livros que simplesmente odiei e a partir daí amei odiá-los. Se você se fixa apenas na leitura de uma única autora ou autor, acho que ele acaba te influenciando mais do que outros, mas nunca fui muito disso. Gosto de ler autores diversos, de lugares e tempos diversos. Tem muita gente que amei ter lido, mas nunca voltei a ler mais nada. Realmente gosto de variar bastante. No entanto, pense comigo, se eu pegar uma horinha por dia para tentar ler os livros de algum autor que já li… Brincadeira.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
O primeiro que gostaria de recomendar é justamente um que vai me ajudar a escrever o meu próximo livro. Trata-se de Eu, robô, de Isaac Asimov. O que mais gosto nele é justamente a escrita leve, irônica e inteligente de Asimov. Os contos podem ser lidos separados, porém são todos interligados, o que eu gosto muito e sei que é bem difícil de fazer. Além disso, as questões retratadas ali fazem o leitor pensar junto com os protagonistas, procurando possíveis soluções aos problemas e fazendo a gente se sentir quase um detetive na narrativa. Enfim, muitas vezes a ficção científica é retratada como um gênero menor, assim como as histórias cômicas. No entanto, muita ficção científica, e essa inclusa, me fez pensar mais sobre a humanidade do que alguns livros com personagens comuns em seu mundo comum. Além disso, creio que pode ser mais difícil fazer uma narrativa cômica do que uma dramática. Aos escritores que conseguem, eu tiro o meu chapéu. Fora que esse tipo de livro é uma delícia de ler, ele escorrega por entre os dedos. Em épocas densas, obras como essa são certamente boas escolhas.
O segundo livro que gostaria de recomendar é Torto Arado, de Itamar Vieira Junior. Adoro a maneira do autor contar a história, é muito saborosa, embora seja muitas vezes o contrário do livro anterior citado aqui, porque caminha por lugares mais densos. Isso não é, de modo algum, um defeito. Além disso, Itamar tem um dos melhores começos de livro que já li, o que também me deixa surpresa porque é um começo extremamente simples: duas crianças brincam com uma faca e, sem querer, uma delas corta a própria língua. No entanto, a forma como ele constrói esse começo determina e repercute em todo o resto do livro. Acho louvável porque é um processo muito difícil de ser pensado e, principalmente, executado. Junte tudo isso aos relatos retratados sobre a família das crianças, que ainda vive em um sistema escravagista na década de 1960, e o crescimento das duas irmãs ao longo da narrativa e você terá uma profunda reflexão sobre o Brasil de hoje. Enfim, não é à toa que a obra foi tão aplaudida e eu realmente considero que mais aplausos merecidos estão por vir.
Por último, no nível de Torto Arado, está o romance Por cima do mar, de Deborah Dornellas. Eu gosto muito dele porque tudo ali é tão real que parece que você se esquece de que está lendo uma ficção. A narrativa é bem contada e flui de uma forma muito intensa, saborosa. O livro também é cheio de elementos históricos, o que eu adoro. Além disso, é contado da perspectiva de uma personagem que vive na periferia. Por Dornellas não ser de lá, ela corre o risco de escorregar nos relatos, mas não o faz. Dornellas é muito boa em escancarar realidades do Brasil e em demonstrar o racismo presente em nossa sociedade, mas é ainda melhor em fazer a gente querer seguir com suas personagens até o final da obra. Outra coisa de que gosto, são os poemas e imagens presentes no livro, todos feitos pela autora, o que mostra que Dornellas é uma artista múltipla e, por isso, merece toda a atenção neste e em seus próximos trabalhos.