Bruna Frascolla é escritora.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Levanto de manhã, como um pão, tomo uma xícara de leite, escovo os dentes, e dentro de um tempo inferior a uma hora faço café numa cafeteira italiana. Levo cerca de 40 min bebendo-o, e é quase certo que eu faça isto lendo algum livro. Se não for o caso, faço-o lendo jornal, ou então escrevendo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu tenho uma pior hora do dia, que é o entorno do almoço. Fico invariavelmente dispersa. Se os dias estiverem quentes e abafados, fico sem concentração para escrever a sério ou ler algo complexo até umas 15h.
Não tenho ritual de preparação para a escrita. Tenho apenas o hábito de escrever na mesa do meu quarto. Mas se eu estiver na casa do meu pai ou da tia Paola, no Rio, tenho uma mesa eleita para a escrita e uma xícara de estimação. Se eu ficar em mais algum lugar escrevendo, elejo uma mesa. Se eu fosse ficar numa taba, provavelmente me haveria com uma cuia de estimação.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Nunca tive meta de escrita diária. Eu tenho mais meta de leitura. É assim: eu tenho uma hipótese acerca de algo, e penso em leituras que me dariam mais informação acerca desse algo. Anoto ideias, esboço em itens uma estrutura de texto, e deixo na gaveta. Fico com um senso de urgência; não quero só ler livros sobre o assunto, quero já tê-los lido. O risco que corro é adiar demais a escrita, pensando que só posso escrever sobre tal assunto após ler uma lista eternamente crescente de livros. O remédio para isto é se policiar para não se contentar só com uma compreensão universal e absoluta do assunto (que é impossível), e pôr logo em texto o que já tenho em mente.
Não digo que escrevo em períodos concentrados, porque há dias em que não escrevo e só leio, dias em que escrevo muito e quase não leio, e dias que são meio a meio.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu gosto de mistério e suspense, e comecei a ler graças a livros de mistério e suspense. Minha mãe até tentou me fazer gostar de ler com poesias meigas; mas foi só quando caiu a estante, e um livro de mistério com uma capa sinistra ficou à minha vista, que comecei a ler. Foi com isso, e devorando O gênio do crime, que a escola passou para ler.
Resulta que penso em termos de “quem matou?” A escrita começa com uma dúvida. Uma dúvida que eu tenha é como um cadáver na sala requerendo explicações; o raciocínio é um encadeamento que deve culminar com uma resposta para esse cadáver estar na sala. Alguém envolvido com um cadáver terá suas suspeitas iniciais; eu, de minha parte, tenho as minhas. Anoto-as e vou recolhendo evidências. Digamos que foi o Coronel Mostarda com um candelabro: eu anoto pontos que me fazem crer que foi o Cel. Mostarda, pontos que me fazem crer que foi com o candelabro etc. Naturalmente, há momentos em que me foco mais no Cel. Mostarda do que no candelabro; então, após achar que tenho evidências substantivas, começo a escrever sobre a culpabilidade do Cel. Mostarda. Enquanto isso, vou lendo sobre a arma do crime. Como é algo gradual, não acontece de eu ficar só escrevendo ou só lendo; exceto no comecinho, quando só leio, e no fim, quando só escrevo.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu acho que eu não tenho trava de escrita; exceto a dispersão, que é passageira. Procrastinação na escrita é como nas demais coisas da vida: existem as coisas que procrastinamos porque não estamos suficientemente convencidos de que devemos que fazê-las (como ir ao dentista). Uma vez que estejamos convencidos, é fazer, e pronto. Ou fazemos, ou arcamos com as consequências de não fazer (e imaginar-se banguela ou torturado com instrumentos estridentes ajuda a vencer a procrastinação da ida ao dentista).
Quanto às expectativas, tenho duas coisas a meu favor. Uma eu ganhei com a experiência, e a outra seria coisa pra psicólogo. A que eu ganhei é a plena convicção de que não posso ficar aquém de expectativas pelo simples motivo de que elas andam baixas demais. Eu só temeria não alcançá-las se não tivesse amor próprio. Afinal, hoje acadêmico não sabe mais português; e pode ser completamente ignorante, desde que escreva papers que ninguém lê sobre coisas ultraespecializadas que não precisam fazer sentido. Artista chique pode fazer qualquer coisa, desde que arranje acadêmicos para dizerem que ele é um gênio. E acadêmicos e artistas, se quiserem subir de vida ou só se sentir soçaite, podem repetir com muito estardalhaçoslogansem defesa de alguns políticos. Criou-se uma câmara de eco; com isso, e com a péssima educação básica, o nível baixou muito. Como eu me julgo letrada e intelectualmente honesta, não tenho medo de ficar aquém de expectativas. Se eu vivesse em Atenas no séc. V a. C., morreria de medo!
A outra coisa, que melhorou um tanto, que e seria para psicólogo, é o pressuposto de que vai dar tudo errado. Eu escrevia convicta de que ninguém ia ler; e que, se as pessoas lessem, seria um apocalipse, porque iam achar horrível. Mas eu sou teimosa, e escrevia mesmo assim, já preparada para uma catástrofe. Quando você espera catástrofes e elas não vêm, toda surpresa é positiva.
Não tenho ansiedade em trabalhar em projetos longos, nem curtos. O que dá ansiedade é ficar sem trabalhar.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
O importante é revisar com olhos frescos, não o número de revisões. Não adianta reler cem vezes seguidas, sem descansar a vista, porque não enxergamos nossos próprios erros com a mesma facilidade com que enxergamos os alheios. Se for um texto com prazo curto, termino de escrevê-lo com dois dias de antecedência, e reviso-o logo antes de entregar.
Se eu considerar o trabalho ousado, mostro a alguém que eu respeito antes de publicar. Trabalhos ousados representam riscos maiores.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo no computador, a menos que esteja com uma especial vontade de exercitar a caligrafia, ou cansada de olhar para uma tela. Mas é muito chato transcrever depois.
A tecnologia pode atrapalhar com duas coisas: notificações apitando e censura diabólica. No meu quarto não pega internet. A censura diabólica é a das empresas de tecnologia que resolvem se meter com política. O Google já apagou blogues literários por reprovar o conteúdo. Eu não quero me preocupar com os juízos do Google. Escrevo offline faz tempo, e não mudaria para uma nuvem nunca. Faço o que acho mais prudente, que é usar o Dropbox, pois salva os textos em HD e nuvem ao mesmo tempo. Assim fico protegida contra o arbítrio do dono da nuvem e contra problemas físicos do computador, e posso trabalhar durante quedas de internet e até de energia, enquanto durar a bateria do laptop.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias vêm das coisas que observou ou leio.
Não é nada de deliberado, mas cultivo o hábito de prestar atenção às coisas que se passam à minha volta. Se estou num local público, não vou ser nunca aquela figura que fica de fone de ouvido olhando para o celular. Se toca muito uma música nas ruas, procuro até se tem clipe no YouTube, para ver direito no que as pessoas estão tão interessadas. Se vou a um lugar diferente e tem uma comida que nunca vi, provo etc.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu nunca tive problema para escrever. Por ser rápida, às vezes ficava com medo, na pós-graduação, de escrever tudo e ficar sem ter nada pra fazer, ou de passar por desleixada. O que eu poderia dizer a mim mesma é que fosse tão rápida quanto quisesse, e estudasse o que desse na telha no meu tempo livre. Diria assim: “Quer estudar história, economia, sociologia, linguística, psicologia? Vai fundo, e não tenha medo de escrever sobre! Releia antes a Apologia de Sócrates, e veja que ninguém sabe de nada. Não tenha medo de invadir área de especialista. Você não acha ridículo quando gente de filosofia dá carteirada e não deixa ninguém de outra área tocar no assunto? Pois é igual com as outras áreas: são ridículos os que se acham donos delas. Assim como você ajuda quem queira saber de filosofia a falar sobre filosofia, procure em outras áreas gente igual a você”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Acabei de começar algo. Quero falar da relação entre ideias e terrorismo no Brasil.
Há um monte de livros que eu gostaria de ter lido, mas que não existem. Um deles, que eu não tenho a menor intenção de fazer, é um trabalho análogo sobre o português do Nordeste análogo ao que a FAPESP fez com o caipira, mas com o do nordeste. Por que o paranaense, o goiano e o paulista falam póita e não porta? Por causa dos bandeirantes, que escravizavam jês, os quais só acertavam falar esse R esquisito. Mas por que o piauiense e o cearense falam mais parecido com o baiano do que com o pernambucano? Que tipo de movimentação populacional houve para que numas áreas do Nordeste se pronunciem o D e o T sempre do mesmo jeito, quer venham antes do A ou do E, e em outras não? Será que não se pode contar uma história da expansão pecuária no Nordeste a partir da variedade de sotaques? Ou quem sabe uma história das migrações portuguesas para a América? E que belos romances históricos não poderiam surgir com esses estudos?
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Deixo fluir. Escrever a primeira e a última frase é igualmente fácil. Difícil é ter certeza de que o que está claro para mim está para os outros; por isso, devo muito aos meus leitores de manuscritos.
Um risco do não-planejamento é largar de mão. Quando comecei As ideias e o terror,fiquei com medo de isso acontecer. Então, como eu ia dar uma brevíssima entrevista ao jornal daqui, fiz o seguinte: avisei logo que estava escrevendo um livro com esse título. Eu tinha acabado de começar. Tenho meus brios, e não gosto de passar por enrolona ou pessoa que diz que vai fazer as coisas e não faz. Por isso botei logo no jornal e espalhei aos sete ventos. Aí eu não teria a mínima condição de não terminar esse negócio.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Eu faço uma lista de afazeres, que inclui desde a resolução de pepinos prosaicos à escrita de um texto. Existem textos que são mais prioritários do que outros, e textos que, em absoluto, não são prioridade alguma. Então faço primeiro os trabalhos que são prioritários e rápidos de fazer, e depois os que são prioritários porém demorados. Para estes últimos, eu me comprometo a nunca ficar sem fazer nada por mais de 2 dias. E há aqueles que eu faço quando quero, se quero. Há dois anos é a tradução de Poggio Bracciolini, um humanista que escreveu em latim um livro com 273 piadas e causos passados na Europa medieval. Quando estou com folga e a fim, me distraio com isso. Acho que isso responde se gosto de ter vários projetos ao mesmo tempo: inventei esse de Poggio para não ficar nunca com uma coisa só, pois entedia e cansa.
O que motiva você como escritora? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Acho que a vida literária é uma opção para todo mundo que não descende de imigrante e é das classes médias urbanas. Eu tenho esse sobrenome esquisito de imigrante, mas minha criação foi em família baiana com esse perfil típico de Brasil antigo. Se eu não ia ser médica nem engenheira, o natural era procurar o anel de dotô no mundo das letras. Posso, porém, apontar algo de especial para me fazer tomar gosto pela escrita: o jornal. Em especial, as crônicas semanais de João Ubaldo Ribeiro. É uma escrita inteligente e comezinha ao mesmo tempo. No ponto. Quando se tem o fantasma empolado do bacharelismo rondando, um cronista como João Ubaldo mostra a escrita como uma coisa reflexiva, viva, arguta, útil para digerir e organizar o quotidiano.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
Não sei por que o feminino na pergunta. É porque eu sou mulher? Mulher lê as mesmas coisas que homem lê, quando ambos têm o mesmo interesse. O neutro em português é o masculino: diz-se “É bom ir à praia”, embora a praia seja feminina. Nenhuma autora me influenciou mais do que outras pelo simples motivo de que leio pouca mulher, mesmo, e jamais irei me impôr uma cota. Eu poderia citar algumas mulheres, mas não vou fazer isso. Eu não gostaria de ser citada enquanto mulher, então não vou puni-las com o que não quero para mim mesma. Citar mulheres que escrevem assim, pinçando-as pelo “gênero”, faz parecer que é um grande feito uma mulher escrever. É como se apontassem um urso andando de bicicleta, uma coisa exótica. Se as feministas não tiverem açambarcado o direito de se sentir ofendida, digo que eu me sinto ofendida.
À resposta, ignorando o feminino: quando traduzo, a tradução tende a influir no que escrevo. Pode ser coisa que acho boa, e aí deixo, e pode ser coisa que eu tente refrear inclusive na tradução, como anglicismos. Na minha última tradução, para a qual não achei editora ainda, acabei me deixando influenciar um pouco pelo português de Vieira. O autor traduzido era Malebranche, um padre do século XVII. Para pegar um pouco do português da época, li Vieira e reproduzi as construções mais habituais no texto de Malebranche.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Os andarilhos do bem, de Carlo Ginzburg. Como agora as pessoas deram pra achar que a Europa sempre foi racional, é bom ler Ginzburg para ver macumba de Europeu e reconhecê-las no Brasil atual. E eu acho bonito como os rituais e crenças mágicas ainda sobrevivem aqui. O lobisomem europeu com o curupira americano, na terra em que o ritual do solstício de verão (de pular a fogueira) é feito no inverno.
Duas viagens ao Brasil, de Hans Staden. Não sei por que os vizinhos hispânicos têm mania de inventar realismo fantástico quando a realidade é mais fantástica ainda. Um alemão que servira de artilheiro para os portugueses acaba prisioneiro de tupinambás em São Paulo no começo do século XVI. Tendo conseguido se safar dos canibais e voltado à Alemanha a salvo, paga a promessa mandando imprimir um livro sobre os antípodas. Assim como hoje a gente se pergunta se existem extraterrestres, na antiguidade a questão dos antípodas era levantada. Se a terra é um globo (como já se sabia), quer dizer que existem pontos nos quais os homens estão de cabeça para baixo em relação a mim, e esses – se existissem – eram os antípodas. Hans Staden jura por tudo o que é mais sagrado que os antípodas (nós) existem.
O mundo de Parmênides, de Karl Popper. Para mim, é o único que conseguiu explicar o início da filosofia de um jeito que faz sentido. O fio da meada é a livre tentativa de explicar o mundo sem se embasar em nenhuma espécie de autoridade. Filosofia e ciência nascem como uma coisa só, e suas opositoras são o dogmatismo, seja este religioso ou laico.