Brisa Paim é investigadora e professora da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e autora de a morte de paula d.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
A minha rotina matinal é a mais banal possível: normalmente acordo cedo, vou preparando o que interessa (o café) e passando os olhos sobre as mensagens pendentes, os e-mails, as notícias. Confirmo se os gatos ainda têm comida nos pratos, água nas várias tigelas espalhadas pela casa. Depois, enquanto tomo o café, sento-me à mesa da cozinha e começo finalmente a existir. Respondo a um ou outro email ou mensagem e me concentro no que terei de fazer durante o dia: seja pensando nas coisas mais imediatas, lugares para ir, pessoas com quem falar, compromissos, prazos… ou, se for (apenas?) dia de escrita, no que irei escrever (é mais um continuar escrevendo) logo a seguir. Em qualquer dos casos, penso também, quase sempre, naquilo que, em nome de outras urgências, não vou poder escrever ou continuar escrevendo, para cada linha que fica ou ficará são dez que já se vão ou não virão. Entre umas coisas e outras, tento dar atenção ao Nicolau, um dos meus gatos, que provavelmente estará já deitado no chão, de barriga para cima, exigindo carinho e a olhar para mim com um ar muito indignado.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Para escrever, gosto das manhãs e das noites, o que é, fisiologicamente, uma combinação não muito feliz. Não gosto tanto das tardes, sobretudo do fim da tarde. Prefiro o isolamento ao barulho.
O meu ritual de preparação não é bem um ritual, é uma espécie de concentração que me prepara para a escrita. Passo algum tempo, sem ter muita consciência disso, compondo, na minha cabeça, o fantasma do texto, o prototexto, deixando-o crescer à volta de um tema, um impulso, uma ideia, um estímulo. Vou tecendo e fiando esse estímulo, aceitando a sua provocação e deixando que ela se solidifique em torno de uma linguagem imaginária, de modo que aí já seja de algum modo possível escrevê-lo. Esse texto do texto, é sempre, no entanto, um texto impossível, é justamente aquele que me vai escapar quando eu finalmente começar a dar vida ao texto-texto. É um processo de alimentação de fantasmas, mas fundamental para que eu sinta que há algo a poder ser escrito, preciso de deixar primeiro maturar. É um ritual que também inclui a alimentação por outras leituras, a procura pelo estímulo-texto noutros tantos textos e linguagens, tipicamente literários ou não. Neste sentido, a minha preparação para qualquer tipo de escrita envolverá sempre um trabalho de reflexão sobre o alheio e de participação em uma teia de outros textos já lidos ou por ler, determinados ou por determinar, existentes ou não existentes, e escrever será sempre uma forma de reescrita, é como intervir em uma grande conversa sem começo, meio ou fim.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Tenho outras atividades acadêmicas e de lecionação, por isso, por regra, não consigo escrever continuamente, tenho de me agarrar às frestas e aproveitá-las. Quando aparece a chance de trabalhar mais ou menos sequencialmente na produção de um texto, seja literário ou acadêmico, e sinto que agarrei a sua voz (ou que ela agarrou a mim), trabalho de modo extremamente concentrado e, se o tempo for mesmo meu amigo, só paro quando o calendário apita ou o texto resolve se calar. O que significa que eu vou viver em função daquilo até estar finalizado (ou seja, em condições de ser abandonado), e, ainda que eu permaneça em contato com o mundo exterior, e que até consiga responder a esse mundo quando necessário, deixo de absorver outros ruídos e ingresso num tipo específico de solidão, um isolamento mental. Nestes períodos intensivos, mesmo que eu pare de escrever por momentos, o texto, na verdade, na minha cabeça, não para de ser escrito, segue falando comigo e impondo a sua presença; quando finalmente volto a escrevê-lo, escrevo também aquilo que já tinha sido escrito.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu não escrevo a partir de notas muito extensas, no máximo vou rascunhando títulos, temas, ideias nucleares. Frases soltas em momentos aleatórios. Se for um texto acadêmico, vou também dando prosseguimento a comentários marginais em/sobre outros textos, rascunhando questionamentos, problemas-perguntas que me vão ocorrendo, enquadramentos e cruzamentos dogmáticos necessários, referências bibliográficas possíveis ou imaginadas e, finalmente, vou estruturando e escrevendo os pontos a explorar em sumários, que podem ser mais ou menos desenvolvidos conforme o tipo de texto por vir. De todo modo, não só na literatura, mas também na escrita acadêmica, escrever, para mim, será sempre vivido como um ato estético, e, como tal, demandará um trabalho de linguagem próprio que exigirá sempre um durante, não existe fora dele. Sendo assim, o seu resultado final permanece inantecipável.
O gesto de começar não é propriamente fácil, porque, como falei acima, eu preciso primeiro de sentir que o texto é já um texto possível, o que requer alguma maturação. Pararecomeçar a escrever, costumo reler, até certo ponto, o que fiz antes, quer para não desperdiçar possíveis migalhas lançadas lá atrás, quer para retomar o fio do pensamento, o ritmo e a voz. Neste percurso, é possível que eu sinta que ainda falta ali qualquer coisa, ou que eu deveria dizer mais ou dizer de outra forma, e então o texto se abre novamente a outras interpelações, continuando a crescer em áreas que antes pareciam resolvidas. É um processo, de certo modo, inflacionário. Dificilmente sinto a necessidade de excluir aquilo que já escrevi, e as frases realmente importantes vão vindo já redondas. Já aconteceu de eu compor o texto inteiro à volta de uma só frase ou trecho, no fundo, era só aquilo que eu queria realmente dizer, mas ainda assim era necessário retornar e criar até ali o caminho para que pudesse fazer sentido. Posso ir desdobrando trechos de trechos, parágrafos de parágrafos, uma colcha de retalhos. Mas, no fim, é como se a unidade existisse desde o princípio. O que importa é que não se vejam as costuras.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Tentando não me violentar e me concentrando no presente.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Revisar é uma parte essencial do processo de escrita, ainda mais de uma escrita que se costura por dentro e por acréscimos, como a minha. Reviso os textos até que estes estejam em condições de ser abandonados (um texto nunca fica propriamente encerrado).
Quando finalizo uma versão, um capítulo ou trecho de que goste, posso mostrar para algumas poucas pessoas muito próximas e de confiança, com quem costumo trocar experiências e opiniões. Pessoas que eu sei que me vão dizer a verdade. Gosto também de ler alguns pedaços em voz alta para ver como soam – isso é fundamental para a literatura que desenvolvo, que é uma exploração também sonora (nestes momentos, a minha cobaia costuma ser o meu marido, ou um pequeno grupo de amigos, desde que haja vinho).
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo no computador; à mão, normalmente, apenas algumas notas, frases soltas, ou ideias que surjam em momentos dispersos. Também escrevo à mão quando estou muito cansada ou, por alguma razão, bloqueada, ou se me acontecem trechos inteiros quando estou longe do computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
É difícil responder a isso em termos categóricos. Mas acho que as minhas ideias vêm do olho, do silêncio e da ignorância, daquilo que vi e que não tem nome, pois é algo que não conheço, extraído do presente ou da memória. Só consigo escrever a partir de imagens do que não sei, da perplexidade dessa ignorância. Escrever é uma forma de continuar vendo e de tentar saber.
Quanto ao hábito, o único é a leitura.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Muito mudou na minha relação com a linguagem, talvez hoje eu tenha menos medo dela e mais controle do que podemos fazer uma à outra, e de como posso explorar certas características do meu estilo, como a musicalidade, a respiração e a carga poética dos textos em prosa, e utilizá-las em benefício da qualidade do texto. Talvez hoje também explore melhor o silêncio, que é tão fundamental à escrita literária, o saber quando e o quanto calar e o que deixar em suspenso, para que o texto se multiplique e cresça em outros possíveis. Ao mesmo tempo, acho que fui ganhando condições de perceber melhor onde estão alguns dos meus vícios, que então se tornaram mais fáceis de racionalizar e de manobrar. Mas, no fim das contas, muito também permaneceu igual. Já há bastante tempo entendi e aceitei o fato de que a minha viagem particular, na literatura, é contracorrente, e prefiro permanecer assim, nadando contra, experimentando em torno daquilo que não sei, costurando para dentro, em vez de querer ceder a outros tipos de racionalidade e a outros propósitos, pegar o leitor pela mão e escrever coisas fofas, bobas e sem interesse.
Se eu pudesse voltar à escrita dos meus primeiros textos, provavelmente não diria nada a mim mesma. Ou diria apenas: siga. Continue errando.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Na literatura, como não escrevo a partir de planos e de projetos, nenhum. No mais, gostaria de conseguir dar conta dos livros que quero ler e que já existem. Não são poucos.