Breno Fernandes é escritor, autor de O mistério da casa da colina (2002), Mil – a primeira missão (2006), Mendax, o ladrão de histórias (2017) e Os fanzineiros (2018).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
É permanente o desejo de ter uma rotina fixa, mas a verdade é que só a hora das refeições é uma constante na minha vida. Entretanto, sempre que posso, gosto de acordar o mais cedo que conseguir e de, já cafeinado, usar a manhã para escrever pelo menos mil palavras de quaisquer ficções que eu esteja fazendo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Com vinte e poucos anos, eu era notívago. Me sentia bastante produtivo de madrugada, o que tinha um pouco de romantismo, desconfio: aquela coisa de só poder ouvir a si mesmo quando o mundo faz silêncio. Atualmente, com trinta e poucos anos, tenho apreço pela ideia de novo início, outro romantismo, ligado à manhã, o período do dia em que sou mais produtivo. Por vezes, quando escrevo em outro turno e começo a me sentir disperso ou preguiçoso, tiro um cochilo de vinte minutos, tanto pelos efeitos benéficos quanto pelo ritual de acordar, tomar café e sentar-me à frente do computador. Houve um tempo em que, antes de escrever, eu ouvia Vai trabalhar, vagabundo, de Chico. Era a vinheta do trabalho! Acho que devia retomar esse hábito.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Desde que li Sobre a escrita, de Stephen King, o mínimo de mil palavras diárias passou a ser minha meta. King, na verdade, afirma que sua meta diária é de duas mil palavras, espero adotá-lo quando, como ele, conseguir viver só de literatura. Mil palavras, descobri, é mais ou menos o padrão que João Ubaldo Ribeiro adotava como meta diária: três laudas. Mas é claro que, embora eu use esse parâmetro como bússola diária, não deixo que ele se transforme em TOC. Já passei manhãs lapidando dois ou três parágrafos que ocupavam meia página, sem desespero. Li não faz muito tempo Festa no covil, de Juan Pablo Villalobos, e adoraria fazer algo parecido: um romance curto, deliciosamente fluido e incrivelmente cômico, que dá a impressão de que foi escrito em uma sentada, quando, com efeito, é o resultado de muito polimento textual. Escrever devagar às vezes é um bom método de obter esse acabamento.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Começar é fácil. Eu tenho um monte de primeiros capítulos feitos. Conhecer os personagens e o universo em que eles vivem é um barato, e isso acontece geralmente nas primeiras páginas. Difícil é manter o foco à medida que se avança, pois o trabalho se torna mais esquemático. Você tem que conectar ações e reações de diversos personagens, fazendo com que elas movam a trama para a direção que você deseja, muitas vezes sem ter um final ou o próximo ponto de virada claramente desenhado no horizonte. Nessa hora crítica, é frequente que eu me sabote: começo a ler as páginas já escritas, acho tudo ruim, sem salvação, e me deixo seduzir por outra ideia, uma que ainda não ganhou nenhum corpo narrativo. Assim surgem mais primeiros capítulos na minha coleção de histórias inacabadas.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Se estou focado, eu lido bem com os nós, que é como Jorge Amado chamava aqueles momentos da narrativa em que ele não sabia como continuar. Solucionar nos é estimulante, embora a empolgação do desafio não apague de todo a angústia. Mas repare em como comecei a responder isso: dizendo “se estou focado”. Quando o foco começa a desaparecer, seja por causa da ansiedade, seja por causa dos boletos, seja por causa de demandas de trabalho ou de família, é facílimo entrar em parafuso, sofrer devaneios com a miséria, maldizer-se por não ter seguido o conselho dos pais e ter se tornado médico ou bancário, odiar-se por não gostar de outra coisa, por não ver muito sentido na vida sem a prática dessa vaidade que é inventar histórias que ninguém lhe pediu para criar, quando já existem no mundo mais livros do que uma vida é capaz de dar conta. Nessas horas, é preciso ir atrás de qualquer evento no qual você possa falar ou, se isso não for possível, é hora de dar o melhor de si nas redes sociais, de modo que o interesse das pessoas por seu texto reinstale sua segurança, alimente seu ego, faça você tornar a acreditar que seu talento não é de todo inútil e que, se você fez uma pequena audiência interessada em trabalhos passados ou em amostras dele, com seu melhor projeto em andamento talvez você consiga encantar ainda mais gente. Então assopre essa chamazinha de esperança até ela produzir o mínimo de luz que lhe permita escrever e tente não pensar que, tão logo você perca o foco, o ciclo do desespero vai recomeçar.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu concordo com a máxima que afirma que livro não se acaba, se abandona. E foi Jonathan Safran Foer quem, com outro brocardo, me fez ver qual é a hora de abandonar o texto: eu não preciso me orgulhar do que escrevi, disse o escritor americano, só não quero é passar vergonha. Quando sinto que o texto adquiriu o mínimo de qualidade para me salvar da vergonha, começo a entulhar a caixa de e-mails de amigos, pedindo-lhes uma migalha de opinião. Quer dizer, essa perturbação era maior antes, mas com o tempo o número de respostas diminuiu drasticamente. Da última vez, selecionei vinte amigos, apenas dois deram retorno. Então comecei a me sentir inconveniente e hoje tento me acostumar à ideia de enviar os livros novos para as editoras sem terem passado por esse teste. Entretanto, quando bate a insegurança, não raramente recorro às redes sociais, mendigando o tempo de alguém para me ler algumas páginas, partindo do pressuposto de que não estarei sendo inconveniente junto àquele que responder ao post, oferecendo ajuda.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Só consigo compor universos ficcionais, montar personagens e esquematizar cenas com papel e caneta à mão. Gostaria de poder usar a insônia, as intermitentes horas reservadas à atividade física, o tempo preso no engarrafamento para criar apenas com a mente. Mas com cedo preciso pôr as coisas que imagino no papel, do contrário não consigo avançar. É uma espécie de circuito input/output: ler o que acabei de anotar me leva a inventar algo em cima desse dado de entrada, então anoto essa nova ideia para lê-la e inventar algo em cima desse dado de entrada, e por aí vai. O aplicativo de notas do celular quebra o galho de vez em quando, mas não é prático: nele não dá para desenhar nem riscar, elementos importantes da arte de fazer rascunhos. Então, quando chega a hora de narrar mesmo, vou para a frente do computador. Word, fonte Georgia, espaçamento 1,5. Com papel e caneta ao lado, claro, para o caso de precisar fazer uma pausa na narrativa para compor mais detalhes da história.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Acredito que toda narrativa é filha de um relacionamento polígamo de outras narrativas, por isso nunca paro de travar contato com histórias, quer seja pela ficção, pelo estudo da historiografia, pelo jornalismo ou pela boca das pessoas. Desse balaio apinhado e bagunçado vou puxando fios para tecer uma peça. Escolho os primeiros fios buscando entrever um entrelaçamento que me pareça inusitado, que pode ser uma situação inédita para mim ou uma situação bastante conhecida, mas com personagens ou cenários peculiares. Exemplifico: tenho um conto chamado A sereia do dique, que surgiu do desejo de criar uma nova lenda urbana para Salvador, onde nasci e vivo. Pensando nisso, veio o estalo: e se eu colocar uma sereia no Dique do Tororó? Um ser que existe há milênios nas narrativas de fantasia, inserido num lugar enfeitado com estátuas de orixás… Provavelmente eu tive essa ideia no banho. Banho quente é um excelente catalisador de estalos para mim.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu teria para minha versão mais jovem dois conselhos básicos. Ambos são bastante populares, pode-se ouvi-los em qualquer oficina literária a que se vá. Primeiro: corte tudo o que não for imprescindível, em especial adjetivos e advérbios. Segundo: atenha-se à história. Creio que o meu principal problema como jovem ficcionista era a obsessão por criar alegorias e parábolas, pois eu as via como a manifestação da alta literatura: uma literatura profunda, filosófica, como se o uso pedagógico associado ao mito da caverna ou à parábola do filho pródigo fosse o objetivo final e enobrecedor de todas as histórias que valessem a pena ser contadas. Mas, no fim das contas, isso quase sempre me fazia descambar para a pompa do kitsch ou para o panfletário, de modo que esses conselhos teriam me ajudado a não cair repetidamente nessa armadilha. Para o resto, estratégias narrativas e malabarismos sintáticos, é preciso treinar. Só que eu não diria isso ao jovem Breno, porque, se bem o conheço, sei que ele odiaria esse papo de a vida vai ensiná-lo…
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu gostaria de escrever algo que pudesse ser chamado de “o Harry Potter brasileiro”, não pela temática nem pelo estilo, mas pela capacidade de encantar e de se fixar no imaginário de uma geração. Quanto ao que eu gostaria de ler, não sei… Há tanta coisa publicada há tempos, e que eu ainda não li. Toda a Comédia Humana, de Balzac, por exemplo. Ou mesmo a obra completa de Kafka ou de Lima Barreto, que são bem menos volumosas. A verdade é que escrever rouba muito tempo de leitura. É que, às vezes, depois de passar o dia inteiro lidando com um texto, tudo o que eu desejo antes de dormir é ver um filme ou uma série. Eis outro conselho que eu daria a meu eu jovem, que tinha mais tempo livre e não escrevia diariamente: leia muito mais.