Braulio Tavares é poeta, escritor e tradutor.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Gosto de trabalhar à noite. Meu horário de dormir é aproximamente das quatro às onze da manhã, caso não tenha outros compromissos e esteja em casa. Em viagem, escrevo quando dá, onde dá.
Em casa, acordo perto do meio-dia, tomo café e leio jornal. Demoro muito para esquentar o motor. Sinto-me como se acordasse com noventa anos de idade e duzentos quilos de peso. Durante as atividades do dia, vou ficando mais moço e mais leve. Às nove da noite estou com trinta anos e sessenta e cinco quilos. (Só para registrar: minha idade atual é sessenta e sete e meu peso setenta e cinco).
Durante a tarde, escrevo, mas me dedico mais a ler jornais e revistas online, trocar mensagens, preparar documentos, atender pedidos, trocar ideias com as pessoas com quem estou trabalhando (eu escrevo roteiros de TV e de cinema, e peças de teatro; tudo isto requer trocas de ideias constantes).
Tenho há anos um blog, o Mundo Fantasmo, onde escrevo sobre literatura, música, cinema, etc. Como é um espaço totalmente informal, geralmente eu começo o dia trabalhando nesses artigos, que são um tanto longos, até concluir algum. É uma escrita muito pessoal, relaxada, descontraída, e ajuda a “esquentar o motor”.
Posto dois ou três artigos novos por semana e os compartilho no Facebook. Meu blog já conta, em cerca de dez anos, com mais de um milhão e duzentos mil acessos, com uma média atual de dezoito ou vinte mil por mês.
Em geral trabalho “para os outros” durante o dia. Depois da meia noite, se o dia tiver sido produtivo, me dedico à escrita literária (contos, poesias, ensaios), aos meus projetos pessoais.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Trabalho melhor à noite, pelo silêncio, pela ausência de interrupções. O escritor Frederik Pohl dizia que durante a madrugada era possível “desenvolver pensamentos longos e consecutivos”, ideias que precisam às vezes de horas para serem concebidas, articuladas, corrigidas, etc. O dia é bom para os trabalhos que envolvem outras pessoas, requerem decisões rápidas, diálogos pingue pongue, sem muita elucubração.
Não tenho rituais. Abro um arquivo novo do Word, dou um título qualquer, salvo e começo a escrever. Minha irmã Clotilde Tavares, também escritora, aconselha: vá escrevendo qualquer besteira, porque daí a pouco surge uma ideia interessante, você desenvolve, e depois é só voltar ao começo e cortar a parte besta.
Gosto de tomar bastante café durante o dia, e quando estou escrevendo para mim mesmo gosto de tomar cerveja no verão ou vinho no inverno, o suficiente para deixar a cabeça ligada, mas não em excesso.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Se posso, escrevo todo dia. O blog me ajuda muito, porque não faço postagens tipo “meu diário” ou relatos de viagem, nada pessoal. O blog surgiu de uma coluna que eu tinha no Jornal da Paraíba de João Pessoa, então todas as postagens têm esse formato de um artigo com tema específico. Tenho sempre uma pasta com centenas de artigos começados. Para começar eu abro essa pasta, olho os títulos, e basta abrir um que me interessa no momento e retomar a escrita do ponto onde estava.
Só escrevo sobre o que me interessa, sobre o que me dá tesão para escrever.
Acho importante escrever todos os dias, mesmo que não seja para publicação. Minha teoria é que a gente só deve publicar 20% do que escreve. Se vou fazer um livro com trinta poemas, devo considerar de início um conjunto de oitenta ou cem poemas já escritos, e selecionar os que me parecem os melhores para aquele livro específico.
Não tenho uma meta de quantidade para escrever, mas para traduzir (traduzo literatura, do inglês para o português). Estou no momento concluindo a tradução da obra completa de Raymond Chandler para a Alfaguara. Procuro manter uma média de duas mil palavras por dia de trabalho (não traduzo todos os dias, só quando dá). Em dias mais tranquilos (sem outros trabalhos urgentes, sem ter que sair de casa) já cheguei a cinco ou seis mil palavras num dia.
Esse cálculo se refere a tradução bruta, sem correção, com palavras desconhecidas ou trechos duvidosos deixados assim [entre colchetes] para revisão futura. Mas essa primeira versão suja é importante para pegar o ritmo, o fluxo da narrativa, que em romance é algo muito importante. Depois, volto ao início e passo um mês só ajustando detalhes.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Pesquisar é mais confortável do que escrever; exige menos esforço mental e nos dá a sensação agradável de que estamos fazendo o dever de casa. Um ex-professor meu, o escritor Tim Powers, dizia que o grande perigo para o romancista é esse: passar dois anos lendo um monte de livros interessantíssimos, a título de pesquisa, e dizendo: “Ainda não estou pronto”. Chega um momento em que é preciso tomar a grave decisão moral de parar com essa enrolação e começar a escrever de fato.
Outra coisa que aprendi foi ter sempre uma pré-pesquisa feita, para não perder tempo. Por exemplo: lista de nomes e sobrenomes dos personagens. É terrível quando a gente começa a escrever um conto com uma ótima ideia e de repente tem que parar uma tarde inteira porque não acha o nome ideal para o personagem. A ideia se esvai porque a gente se deixou bloquear por um detalhe. Muitos escritores têm listas. Chandler fazia listas de descrições de homens e de mulheres (rosto, porte, roupas, etc.), mantinha isso arquivado e anos depois transpunha para um romance que estava escrevendo.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Todo mundo procrastina, é um vício a ser combatido. Muitas vezes peguei um trabalho com prazo para trinta dias e só comecei a trabalhar pra valer no 28º. Existe o medo de não corresponder, que é tão infundado e tão compreensível quanto o medo de subir no palco (há artistas com quarenta anos de carreira que têm esse medo toda noite).
Procuro sempre começar a escrita pela parte mais fácil, porque isso dá um certo encorajamento à medida que a gente vê a coisa se organizando na página.
Tenho sempre um lema: “Simplifique”. Não queira dizer tudo de uma vez só. Não queira colocar em cada parágrafo o somatório total dos seus conhecimentos sobre o assunto. Não queira fazer de cada frase uma obra-prima inquestionável. Vá simplificando. Ter uma primeira versão do que você quer dizer é muito importante. Depois que ela está feita, é mais fácil ir melhorando detalhe por detalhe.
Projetos longos requerem convivência profunda, exigem que você vivencie aquilo durante meses ou anos. Só convém entrar se você estiver disposto, gostar mesmo daquilo. (Ou então se o pagamento for muito bom, mas isso é outra questão.)
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso bastante. Alguns textos, milagrosamente, já brotam quase prontos, cinco ou seis laudas onde você precisa trocar somente uma coisinha aqui ou ali. Mas isso é raro. Em geral é preciso retrabalhar muito.
Em trabalhos coletivos (cinema, teatro, TV) a gente em geral revisa para atender os pedidos ou as sugestões das outras pessoas. Nessas horas é preciso abrir mão do ego. Eu penso: “Estamos todos querendo fazer o melhor texto possível. Qualquer contribuição é bem vinda, se fizer o texto ficar melhor.”
Saiba defender suas escolhas, mas não queira ter sempre a última palavra.
Já experimentei mostrar textos aos outros antes de publicar, mas sempre ouvi opiniões muito desencontradas, que acabaram me deixando mais confuso do que antes. Agora, mando meus livros para a editora sem mostrar a ninguém. Às vezes escapa um erro factual (nomes, datas) aqui ou ali. Mas acho melhor assim. Me concentro melhor. Em literatura (prosa de ficção, poesia) as decisões estéticas são pessoais e intransferíveis.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sempre gostei de escrever à mão e estar cercado de cadernos e canetas. O ritmo de pensamento é mais pedestre, mais cuidadoso. Só inicio um texto no computador se já souber o que vou dizer, e como. Aí é como pilotar um carro veloz.
Em geral, faço uma primeira versão à mão, e ao transcrevê-la para o computador vou fazendo melhoramentos. A versão manuscrita é sempre mais rudimentar, um mero rascunho, mas o processo mental de construí-la nos dá a segurança que proporciona a velocidade na fase seguinte.
As revoluções trazidas pelo computador foram: i. rapidez e facilidade de cortar, colar, substituir; ii. busca e pesquisa (por exemplo, para ver quantas vezes estamos repetindo desnecessariamente uma palavra ou expressão); iii. pesquisar na internet (“Qual a velocidade média de um transatlântico? Um papagaio se alimenta do quê? Em que século viveu Arquimedes? Qual a maior cidade do interior da Bahia?”).
Outra coisa: mudar o visual para quebrar a monotonia da página. Eu troco de fontes o tempo inteiro, aumento letra, diminuo letra, tenho dezenas de “imagens de fundo”, boto página amarela com letra azul, página preta com letra cinza. Isso sempre dá um tchan, um olhar novo sobre o texto.
São vantagens inestimáveis. Eu não gostaria de voltar atrás por nada neste mundo.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Ler muito e pensar o tempo todo. O mundo fervilha de assuntos, basta abrir os olhos e os ouvidos. E a mente. Fico pasmo quando vejo um escritor dizendo que a literatura se esgotou, que não há nada mais a dizer, que o mundo de hoje não fornece grandes temas. Um cara assim devia largar a literatura e virar redator de bulas de remédio. Rapidinho ele ia descobrir grandes temas.
Meu problema nunca foi falta de assunto ou de ideias. Meus projetos não concluídos só não avançaram porque eu não estou conseguindo encontrar, por exemplo, a voz narrativa ideal para aquele conto. É como quando estamos tentando cantar uma música no tom errado e não achamos o tom ideal para nossa voz.
Se alguém me pagasse o suficiente para cobrir minhas despesas com casa, família, etc., eu escreveria todo ano um romance, um livro de contos, um livro de crônicas, um livro de poemas e um roteiro de filme.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Daria, por exemplo, aquele conselho lá em cima: “Simplifique”. Não deixe a ambição estética virar um peso. Ela deve ser um motor, algo capaz de fazer você subir aos ares.
Não permita nenhum autor famoso, de Homero a Virginia Woolf, ficar olhando por cima do seu ombro enquanto você escreve.
Quando tiver uma ideia genial, pare tudo e escreva. A maioria dessas ideias evapora depressa se a gente não a prender numa folha de papel.
Não ligue para a opinião alheia: registre, mas não se entusiasme com os elogios nem se deixe abater pelas críticas. Valorize sempre a crítica factual, porque todos nós erramos um nome, uma data, uma citação, um relato que ouvimos e não nos demos o trabalho de checar. Essa é a crítica mais necessária.
Tenha sempre backup de tudo. Eu uso um pendrive, trabalho direto nele, e salvo regularmente no computador de mesa, em minha casa no Rio de Janeiro. Quando visito meus familiares na Paraíba, tenho lá um notebook antigo que ainda me serve, e descarrego nele o material recente do pendrive. Dessa forma, geralmente tenho duas ou três cópias de qualquer arquivo.
Salve tudo. Eu já perdi pendrive (com tudo que tinha dentro) porque bati nele de mau jeito enquanto estava plugado. Já botei pendrive no bolso e perdi na rua, porque o bolso estava furado. Salve tudo.
Quando estou escrevendo, cada vez que escrevo uma frase e boto um ponto, aperto Control + B e salvo. Acostume-se a fazer isso, o tempo todo, e não se arrependerá nunca. Se o Windows for em inglês, salve com Control + S. Não espere por salvamento automático. Salve-se a si mesmo. (Isso também vale para incêndios, naufrágios, crises espirituais.)
Evite o lugar comum, a encheção de linguiça, aquelas expressões do tipo “e como não poderia deixar de ser…” – que não dizem nada. Use palavras simples e fortes; ideias claras e impactantes.
Saber (em literatura) a necessidade que cada texto tem da sua própria forma. Uns precisam ser complexos, barrocos, delirantes. Outros precisam ser objetivos e claros. Uns pedem para ser longos, outros para ser curtos.
Cuide da gramática e da ortografia, mas não perca tempo demais com isso. Todo texto profissional passa por um revisor profissional. Peça à editora para ver as correções que fizeram ao seu texto. Aprenda com elas.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho muitos projetos inacabados em que gostaria de botar um ponto final antes de morrer. Uns dez ou doze romances, uns vinte contos… Sei que não vai dar, porque tenho trabalhado muito “para fora”, para fazer-caixa, e não posso me dedicar aos projetos pessoais. Mas já escrevi vários livros, produzi muita coisa. Pior seria nunca ter escrito nada por excesso de timidez ou de perfeccionismo.
Acho que a quantidade de livros já escritos é também muito grande. Deve haver um milhão de livros hoje no mundo que eu leria com imenso prazer e proveito. Sei que não vai dar. Mas pior seria se não existisse nada que valesse a pena ler.