Braulio Tavares é poeta, escritor e tradutor.

Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Sou meio caótico neste aspecto, porque tenho sempre, sim, vários trabalhos ao mesmo tempo. Uma tática que geralmente emprego com bons resultados é a de alternar trabalhos. Digamos que estou traduzindo um livro, organizando um curso/oficina e escrevendo um prefácio longo que requer pesquisa. Estes três trabalhos podem se alternar durante o dia, porque depois de trabalhar uma ou duas horas num deles fica meio repousante fechar aquele arquivo, provisoriamente, e trabalhar durante meia hora em outra coisa. Geralmente faço isso quando chego num momento de impasse, de dúvida por onde seguir. Para não ficar parado olhando a tela, vou trabalhar noutra coisa que flua com mais facilidades, e enquanto isso o subconsciente vai examinando o primeiro assunto.
Isto não é uma regra fixa. Não sou adepto de regras fixas. Às vezes, quando uma tradução está fluindo bem, trabalho nela dias seguidos sem pegar em outro trabalho, a menos que seja algo urgente. E como tenho o meu blog Mundo Fantasmo, onde falo de qualquer assunto e publico de 3 em 3 dias (em média), em qualquer momento que estou “empancado” basta começar um assunto novo no blog, ou avançar num arquivo deixado pela metade, para que a cabeça esquente e a escrita flua.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Depende da natureza do trabalho, e se é um projeto pessoal meu (onde me sinto mais livre) ou um trabalho que necessariamente precisa agradar outras pessoas (o que me deixa mais inibido, ou mais cauteloso). Se é um ensaio, artigo, crônica, prefácio, etc., geralmente começo escrevendo qualquer bobagem, já com a certeza de que vou cortar mais tarde, mas com a intenção de “fazer o sangue correr mais rápido na veia” e fluir o pensamento. Muitas vezes a gente esquece o lado físico do ato de escrever. Para mim, fazer um mínimo de exercício é necessário para que o sangue circule e suba para a cabeça. Chico Buarque de Hollanda costuma dizer que faz suas letras correndo em volta da Lagoa, ou no calçadão da praia. Augusto dos Anjos compunha seus poemas de cabeça, andando pelo quarto sem parar. Muita gente que escreve para teatro ou cinema “escreve” em voz alta, para um gravador ou uma estenógrafa. Tudo é questão de estilo. Cada pessoa precisa descobrir a forma física de escrever que dá mais certo com sua cabeça, seu modo de pensar, de criar. Tem gente que não suporta caneta. Tem gente que não suporta computador. Tem gente que só escreve no meio do barulho, e gente que só escreve no silêncio.
Você segue uma rotina quando está escrevendo um livro? Você precisa de silêncio e um ambiente em particular para escrever?
Trabalho em casa, no meu escritório, no meu computador, cercado pelos meus livros. Mas grande parte do meu trabalho, principalmente de tradução de livros, é feito em quartos de hotel, num notebook conectado (dicionários on-line, etc.). Poesia eu praticamente só escrevo à mão (a primeira versão). Dificilmente um poema é escrito direto no teclado. Contos e ficção em geral só funciona no teclado, porque a prosa avança a uma velocidade de “78 rotações” e a poesia “em 33”. Escrever um conto, mesmo um conto vagaroso de compor, só dá certo no teclado.
Gosto do silêncio no sentido de que não gosto de que haja barulho em casa: campainha, telefone, interfone, pessoas conversando, gente entrando e saindo, etc. Por isso escrevo melhor na madrugada. Moro com um filho e uma filha, ambos adultos, que entendem minhas rotinas e não interferem. Quando termino uma parte difícil do trabalho, costumo dar uma parada de uma ou duas horas, vou conversar na sala, vou lavar pratos, vou fazer um café, vou ler. Como tenho problemas de coluna, não aguento mais fazer o que fazia há trinta anos, passar oito ou dez horas seguidas no teclado.
Você desenvolveu técnicas para lidar com a procrastinação? O que você faz quando se sente travado?
Procrastino muito por causa das redes sociais, mas tenho a desculpa de que agora durante a quarentena são meu único contato com os amigos. Preciso conversar de vez em quando.
Minha procrastinação favorita sempre foi a de ler jornais online. Com a Internet, tive pela primeira vez na vida a chance de, em momentos históricos interessantes (guerras, catástrofes, crises, etc.) tomar o café da manhã e depois consultar a primeira página da CNN, do New York Times, do Guardian, do Washington Post, do Le Monde, além da imprensa brasileira. Isso em geral me consumia algumas horas de leitura. Não me arrependo.
A procrastinação é apenas a preguiça de iniciar um esforço considerável, o da concentração mental necessária para escrever. Escrever requer um esforço mental que eu comparo com fazer contas de somar. Coloque 20 ou 30 números de 10 ou 15 algariamos uns sobre os outros, e some, de lápis na mão. A cada segundo é preciso fazer um pequeno cálculo, memorizar um pequeno resultado, incorporá-lo ao acúmulo de pequenos resultados obtido até então, e recomeçar. Se alguém me interrompe, desmorona tudo.
Quando estou travado (o “writer’s block”), simplesmente pego um trabalho diferente. Como tenho o blog, abro um arquivo em branco, boto um título qualquer e começo a escrever algo que me diverte. Isso ajuda a esquentar o motor, e meia hora depois consigo trabalhar de verdade.
Qual dos seus textos deu mais trabalho para ser escrito? E qual você mais se orgulha de ter feito?
Procuro nunca usar esses critérios de “o mais”, “o melhor”, “o mais difícil”, etc. Todo texto é trabalhoso. E de certo modo tudo que publiquei é motivo de orgulho, senão não teria tido coragem de publicar.
Como você escolhe os temas para seus livros? Você mantém um leitor ideal em mente enquanto escreve?
Tenho diferentes tipos de leitor ideal, até porque circulo em ambientes variados. Se estou escrevendo um cordel com a peleja entre dois repentistas nordestinos, o leitor ideal é um tipo. Se escrevo um conto de ficção científica, tenho que levar em conta outras expectativas de tema, de estilo, de referências. Me esforço para tirar da mente o leitor-pentelho, o leitor-chato, o leitor cujo prazer é apontar defeitos, ou questionar detalhes, ou simplesmente dizer “não entendi”. Procuro escrever para um leitor que tenha inteligência, curiosidade e disposição para entrar no jogo – pois é assim que eu leio. Não gosto nem desgosto “a priori” de nenhum livro e nenhum autor. E quando escrevo, procuro um leitor capaz de sentar na poltrona abrir o livro e dizer, com simpatia, com interesse: “Vamos lá. Qual é a história?…”, aí eu vou e conto.
Em que ponto você se sente à vontade para mostrar seus rascunhos para outras pessoas? Quem são as primeiras pessoas a ler seus manuscritos antes de eles seguirem para publicação?
Raramente mostro. Já convivi em grupos de poetas onde havia o hábito de, em todos os nossos encontros para conversar, tomar cerveja, etc., todo mundo levar algum poema novo para ser ouvido e comentado. Depois veio a época dos fanzines, e eu mandava um primeiro esboço do conto para o fanzine; depois das críticas e dos comentários, eu ampliava e melhorava o conto, substancialmente. Hoje tem as redes sociais onde publico poemas curtos, sextilhas, hai-kais, coisa que se lê em 10 segundos. Mas em geral quem primeiro lê um conto meu é o editor que vai avaliar os originais para publicação.
Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita? O que você gostaria de ter ouvido quando começou e ninguém te contou?
Sou de uma família ligada à literatura. Meu avô era jornalista e poeta, meu pai também, meus tios paternos. Desde os dez anos de idade eu dizia que queria ser escritor e era muito incentivado. Sou um privilegiado, neste sentido. O que nunca me faltou foi incentivo.
Isso foi importante porque na vida adulta a gente percebe que vai ter que concorrer com pessoas igualmente talentosas, e descobre que não existe um lugar à nossa espera no Monte Olimpo, vai ser preciso conquistar esse lugar com unhas e dentes. Isso é ótimo, porque desenvolve o outro lado, o lado batalhador.
Não tenho nada específico que gostaria de ter ouvido. Sempre tive boas reações diante do que escrevo. Considero-me um cara de sorte inclusive porque quando jovem era muito tímido. Se qualquer trabalho meu, aos vinte e poucos anos, tivesse sido recebido com uma crítica negativa, arrasadora, eu provavelmente deixaria de escrever para sempre. Por isso tenho cuidado quando critico os trabalhos dos jovens. Ninguém já começa sendo genial. Mesmo os grandes nomes da literatura produzem algumas obras fraquinhas no início, obras que depois só são reavaliadas à luz das obras de maior peso que vieram depois. Hoje em dia ninguém leria “Ressurreição” de Machado de Assis se ele tivesse parado de escrever em seguida.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
Nunca me preocupei em ter estilo próprio. O estilo, seja lá como ele se manifeste, é um conjunto de recursos e de limitações. Tem coisas que a gente aprendeu a fazer, e coisas que não aprendeu. Quando sou pressionado pelas imposições criativas (tenho que escrever um artigo, um poema, uma tradução, um romance, etc.) sou forçado a usar meus recursos para compensar minhas limitações. O estilo é o resultado disso.
Há grandes romancistas que não sabem escrever diálogos, há grandes desenhistas que não sabem fazer um sombreado, há pintores incapazes de reproduzir uma imagem banal, há músicos que não harmonizam bem… mas muitas vezes um desses caras produz obras de gênio, onde esses elementos que eles são incapazes de reproduzir têm menos peso.
Por outro lado, sempre me apliquei em desenvolver técnicas diferentes. Escrevo em verso e em prosa com a mesma facilidade, e nem todo mundo é capaz disso. Para mim, ser versátil em várias coisas é mais importante do que ser genial numa só. Posso imitar o estilo de numerosos prosadores ou poetas. Acho isso uma maneira diferente de lidar com as “influências”, porque a palavra “influência” sugere que somos impotentes diante do talento de alguém famoso. Lemos as obras dele e ficamos tão dependentes delas que não conseguimos desenvolver uma voz própria, que imitamos aquele autor famoso, queiramos ou não. “Ser influenciado por Dostoiévski” significa escrever uma imitação de Dostoiévski e ser incapaz de escrever de outro modo. Eu me recuso a isso e trabalhei a vida inteira contra isso.
Que livro você mais tem recomendado para as outras pessoas?
Não tenho costume de recomendar livros, aprendi muito cedo que não sei adivinhar o gosto alheio. A frase que mais ouvi na vida foi “olha, bacana esse livro que você me recomendou, interessante, mas não me liguei muito, parei na metade”. Quando escrevo no meu blog, evito o máximo possível expressões tipo “vocês devem ler isto”. Me limito a descrever o livro, sobre o quê ele trata, como é a história, a linguagem, os personagens, e dizer que gostei. Se alguém se interessar, que leia.