Bianca Freire-Medeiros é professora do departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Minha vida é de pouca rotina, mas gosto de acordar cedo. Na verdade, mais que tudo, eu detesto ter que sair correndo de manhã, então procuro levantar a tempo de tomar uma xícara de café com leite, falar com quem estiver por perto, responder e-mails.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Viajo muito, atualmente me divido entre duas casas, então acabei me desapegando dos rituais. Escrevo em qualquer lugar, com ou sem gente falando em volta, equilibrando o laptop e os livros em mesinha de avião – realmente não importa. De duas coisas, porém, eu não abro mão: uma garrafa de água e fones de ouvido. As últimas coisas que escrevi foram ao som de Piazzolla, que eu adoro, mas o importante mesmo é que seja música instrumental, senão eu disperso.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Sei que a regra de ouro da escrita é “uma página por dia”. Repito esse mantra em sala de aula e insisto nisso com meus orientandos. Mas o fato é que nunca funcionei assim. Esta minha vida móvel, de muitas mudanças e passagens, realmente não comporta um “todo dia é assim”. Há dias seguidos em que não é possível sentar e escrever – paciência. E não estou falando aqui de “falta de inspiração”, mas de constrangimentos externos mesmo. Em compensação, quando estou absorvida por um texto e as condições de trabalho são favoráveis (vide acima que minhas exigências nesse sentido são bem básicas), sou capaz de escrever durante oito horas ou mais sem parar.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Gosto de separar uma cena etnográfica, um trecho de entrevista, uma fotografia – algum dado do campo que me inspire – e começo ali. Faço listas de títulos possíveis, gosto de experimentar com as palavras. Escrevo pensando o tempo todo em quem vai ler o que está sendo posto na tela e me esforço muito, muito mesmo para que o meu texto seja generoso com esse leitor imaginado que me acompanha. Admiro demais quem consegue transmitir ideias complexas em uma redação acessível. É um desafio gigantesco! Dos livros que escrevi e organizei, guardo um orgulho especial dos que foram por esse caminho e chegaram a um público mais amplo. Nunca vou esquecer da alegria que foi ver um trecho do Gringo na Laje (Ed. FGV, 2009), um livrinho de bolso totalmente despretensioso, ser usado na prova de português do vestibular da Unicamp! Tenho muitos vícios de escrita, mas definitivamente não sofro de Complexo de Bourdieu!
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Durante o doutorado, engravidei, pari e mudei de residência cinco vezes. Passei meses sem encarar a tese. E olha que eu sempre contei com um marido supercompanheiro e com um orientador que, pai de quatro meninas, tinha um nível de empatia acima da régua. Quando consegui concluir, em vez de celebrar ter escrito uma tese inteira em outra língua e sob aquelas condições, fiquei anos me punindo por ter demorado tanto e não ter feito a tese perfeita. Aqui mesmo, no comoeuescrevo.com, li relatos de mulheres que ecoam essa mesma frustração. Somos obrigadas a lidar, no processo de pesquisa e escrita, com a realidade da rotina constantemente suspensa por demandas familiares e com os privilégios de gênero institucionalizados na academia. Muitas vezes o que se nomeia como “falta de inspiração” é puro cansaço e adoecimento gerados pela cobrança em tantas frentes.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reza a lenda que Nelson Rodrigues jamais lia as próprias crônicas. Não que ele se recusasse a ler o texto publicado — ele não lia enquanto escrevia, não dava sequer aquela revisada básica antes de entregar! Eu sou a anti-Nelson Rodrigues: leio, imprimo, releio em voz alta, fico buscando a mais precisa (e inalcançável) equivalência entre a ideia que me ocupa e o registro escrito. Faço isso com o meu próprio texto e com o texto dos outros, como bem sabem meus orientandos. Acredito na eficácia do que os ingleses chamam de “read it with fresh eyes”: retomar o texto depois de colocá-lo no varal por um par de dias. Se não fosse pesquisadora e professora, seria muito feliz trabalhando com edição de textos. E adoro, de verdade, escrever em parceria. Aprecio ver o bastidor da escrita do outro, enquanto vamos transformando em texto as ideias que trocamos. Quando escrevo em inglês, recorro muito a meu marido, que tem um vocabulário absurdo e, não sendo acadêmico, rejeita tudo que não estiver realmente compreensível.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
A-M-O escrever no computador! Escrever à mão só durante o trabalho de campo e olhe lá.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Dificilmente encontraremos um cientista social que não seja leitor assíduo de literatura. Ainda bem, porque imagina se a vida da gente fosse só texto com nota de rodapé e referência bibliográfica! Acho até que não seria injusto dizer que muitos de nós somos literatos frustrados. Eu sou dessas, morro de inveja de quem tem imaginação ficcional e assumo sem drama (ou melhor: só choro por causa disso na terapia). De uns anos para cá, passei a consumir loucamente audiolivros e podcasts sobre assuntos os mais variados. Sei que há muita coisa bacana sendo feita no Brasil, porém os meus prediletos, que me inspiram na escrita, são: Thinking Allowed e Philosophy Bites (entrevistas com acadêmicos), Selected Shorts e New Yorker: Writer’s Voice (literatura).
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Dois acontecimentos tiveram um impacto determinante no meu texto. O primeiro foi o doutorado nos Estados Unidos: o treino na academia americana alterou minha maneira de escrever em português, que passou a seguir a lógica mais econômica e direta do inglês. Economizo nos advérbios e evito, como a praga, os parágrafos de uma frase só, que vão embolando sujeitos e regências. Outra experiência fundamental foi o trabalho, como assistente de pesquisa da Gloria Perez, em três produtos de teledramaturgia (duas novelas e uma minissérie). A natureza coletiva do produto televisivo contrasta fortemente com o isolamento típico do fazer acadêmico. A partir daquela experiência, desmitifiquei por completo a relação entre escrita e inspiração, passei a lidar de maneira mais objetiva com os prazos e a ter um texto mais ágil.
E o que eu diria a mim mesma? Diria aquilo que ouvi do meu orientador e que passo adiante aos meus orientandos: não se esqueça de que é apenas o seu primeiro livro. Independe se a dissertação/tese será ou não publicada, não é disso que se trata. O que importa é dar à tese o tamanho que ela tem, aceitar que a vida não começa nem acaba ali.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Não foi escrito, no Brasil, um livro de “sociologia do turismo” como eu gostaria de ler. Então, se houver um alinhamento favorável entre a vontade e as condições objetivas, meu próximo livro será sobre mobilidades turísticas e teoria social. Há também um projeto que comecei quando minha filha era pequena, mas não levei adiante, e que adoraria retomar: um livro infantil protagonizado por duas cientistas sociais, as bruxas Zalba e Zelma. Quem sabe, se o vampiro temeroso permitir que eu me aposente, esse será meu projeto pós-academia.