Bianca Dias é crítica de arte, pesquisadora em arte e psicanálise, ensaísta, psicanalista e autora de “Névoa e assobio”.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Sempre me foi muito difícil acordar. Como criatura noturna que sou, costumo escrever até muito tarde e a escrita possibilita com que eu me relacione com o que não se deixa capturar. Preciso então formalizar um pouco as coisas. Despertar, abrir os olhos e ler a lista de atividades protocolares do dia é importante para que eu possa me fincar um pouco ao chão. Cultivo caderninhos e agendas escritas à mão. Cultivo também hábitos muito próprios como ler algo depois de comer uma fruta, sentir o fluxo da vida ir entrando. Como crítica de arte viajo muito a trabalho acompanhando artistas e ministrando cursos em vários lugares. Nas minhas atividades, há dias em que preciso acordar muito cedo e nunca é fácil. A minha alegria e a minha criatividade são noturnas, mas, quando preciso entrar num esquema fordista de produção, tomo um café duplo para evitar o baixo-astral e sigo para o mundo. Vou criando uma maneira singular de me adequar e sustentar minha natureza.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Gosto do silêncio, da calma e do contra-fluxo da noite. Tenho duas escritas distintas: de um lado, uma mais livre e descompromissada e, de outro, escritos em que preciso antes, por exemplo, adentrar o trabalho de um artista ou uma coleção de poemas, para escrever o prefácio de uma antologia ou de algum autor. Quando é um texto para algum artista, procuro reler as anotações que costumo fazer em visitas ao ateliê; se é prefácio de livro, texto ou ensaio para alguma revista ou exposição, costumo esboçar minhas ideias e ler algo que me estimule a pensar antes de começar a escrever. Há ainda momentos em que escrevo para pesquisas acadêmicas, e esta é uma escrita que exige outra concentração e, geralmente, é algo que começa tenso e, à medida que o trabalho avança, vai encontrando seu eixo e fluidez.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo todos os dias, mas tudo depende dos prazos e do tipo de escrita do momento. Já passei madrugadas em claro tentando encontrar o tom de um texto, sem sossegar enquanto alguma forma não se colocasse diante de meus olhos. Acho muito difícil estabelecer metas para algo que surge de um lugar tão enigmático. A escrita é algo que se impõe, uma urgência, e eu deixo essa força vibrátil encontrar sua modulação. Creio que escrever é, sobretudo, lembrar que quem habita a língua não tem domicílio fixo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
As notas vão se estabelecendo em todos os cantos: no computador, nos inúmeros caderninhos que carrego na bolsa, no celular. Depois de juntar essas notas vou desenvolvendo cada uma delas e tenho um texto para começar a trabalhar. Geralmente um texto imenso vai se reduzindo a cada intervenção, até chegar perto da metade do original. Nesse exercício de redução e de corte vou encontrando um tom mais enxuto e poético. Escrever é, para mim, antes de mais nada, cortar os excessos, deixar cair o decorativismo.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Geralmente a escrita é o que me permite sair da procrastinação e de uma certa letargia. A escrita é uma maneira de lidar com o que parece solto e causa perturbação. Foi a relação com a escrita que me permitiu uma outra forma de resposta à falta, um consentimento com algo singular e radical, uma convocação ao motim e à vida com tudo que ela porta de desordem. Quando preciso trabalhar em projetos longos deixo que a escrita organize a agitação interna sem denegar a dimensão de ruína, mas fazendo com ela. A escrita é minha maneira de viver e de adensar a catástrofe sem ser por ela destruída.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Como meu olhar fica muito acostumado, passo os textos para meu companheiro que é um revisor de mão cheia: rigoroso, muito inteligente e articulado. Ele faz um trabalho de aparar as arestas. Tenho uma formação heterodoxa e passeio por discursos e lugares heteróclitos: psicanálise, filosofia, teoria e crítica de arte, literatura, cinema. Dependendo do trabalho preciso de um olhar que me traga de volta à origem das ideias e me questione termos e conceitos fundamentais para que eu possa inserir, por exemplo, mais um parágrafo ou uma nota de rodapé, embora eu deteste notas de rodapé e sonhe em escrever como Octavio Paz: com beleza e concisão poética em ensaios que se resolvem sem penduricalhos explicativos.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Por incrível que pareça, sou antiga e adoro escrever à mão em caderninhos que coleciono mas, na hora de me organizar, preciso escrever no computador: essa noção do todo não consigo mais fora da tela. Então, digamos que sou uma “jovem idosa” que vai se adaptando às novas tecnologias na medida do possível. Mas gosto muito das mãos e da gestualidade que infelizmente fui perdendo. Gosto da letra, da força do traço no papel. O brilhante crítico Henri Focillon tem um belíssimo ensaio que se chama “Elogio da mão”, onde ele traz a dimensão artesã e feiticeira das mãos. Acho que a escrita, desde sua origem, passa muito por esse gesto, articulada à história da imagem desde a primeira impressão nas cavernas. A filósofa Marie-José Mondzain afirma que a imagem se inscreve na história da humanidade, tanto pela perspectiva antropológica quanto histórica. Quando o primeiro hominídeo desenhou a própria mão na parede da caverna, provando uma separação de si, uma distância entre seu corpo e sua imagem, instaurou aí um regime de separação e de uma subjetividade desatada. E esse caminho humano inaugura um regime de liberdade que não será aceito sem controle político: da imagem, da subjetividade e da própria humanidade. A escrita surge então como libertação, como abertura, como espaço que reacende um real inominável.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
O que me mantém ativa é acolher a fuga ao controle e ao indomesticável. A escrita é meu gesto de insubordinação, que faz laço e serve de conector. Uma possibilidade de lidar com um resto ejetado de sentido, desgarrado, mas que funda uma pátria na palavra. Um hábito que me acende é a leitura e sou uma leitora adicta de poesia. Foram os livros de poesia de Drummond e de Murilo Mendes que me iniciaram nessa vertigem e me transmitiram algo da relação que hoje tenho com a psicanálise, com a arte e com a própria existência. Com a poesia pude tocar a espessura da existência, alguma coisa que emerge na cena do mundo, mas que está além dele. Gosto de escutar o afeto que dispara o sinal da escrita. Nessa ativação do encontro com a página vazia a palavra vai surgindo como corte que introduz uma separação, como passagem arriscada, fazendo uso da tradição e dela se desgarrando, como um salto no vazio, um atravessamento que reconstrói um Outro, uma ultrapassagem que exige disposição.
Costumo brincar dizendo que tive sorte de me encontrar com a palavra de maneira muito singular: com seis anos de idade já lia e escrevia de maneira sistemática e apaixonada. Alguma coisa sempre perturbou minha atenção e agitou meu corpo. Aos seis anos tive que decidir junto com a pedagoga se pularia a primeira série, visto que já sabia ler e escrever. Decidi ficar junto com os colegas e acabei as lições da cartilha “letrinhas mágicas” em um mês. Passei o resto do ano escrevendo sobre o parque, sobre as férias, sobre minha casa: uma coleção de redações repletas de estranheza, de duplos e fantasmas. O curioso é que, na época, tudo era muito familiar, mas ler aquilo muitos anos depois me fez entender que é o familiar que dá o enquadre da angústia, no lugar do familiar é que aparece o estranho. Ainda bem que a palavra continua sendo tudo que tenho: minha maneira de estar e também de me exilar.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O que mudou minha escrita de maneira radical não foi um trabalho acadêmico, mas a escrita do livro Névoa e assobio. A partir do absurdo da morte de meu filho, escrever era algo da ordem do milagre: inexplicavelmente me levantava da cama e, todos os dias, escrevi algo sobre Caetano – um filho que fez sua inscrição em mim para me deixar cinco dias após ter nascido. Era algo que eu não sabia que se tornaria um livro. Havia, no meio daquela tristeza, um pressentimento de beleza eterna que poderia ser extraída da dor dilacerante. Desejei conservar na escrita a experiência mística que pude acessar. Precisei enfrentar o aspecto aterrador do acontecimento e sentia que, ao escrever sobre o horror inominável de perder um filho em condições absolutamente dramáticas, algo me conduzia, paradoxalmente, a uma espécie de extravio, um deslizamento para além da morte. Fala-se muito de um “esforço de poesia”, mas isto só pode verdadeiramente acontecer quando se sente no corpo que a própria vida é colocada em risco. Senti que compunha uma paisagem nessa travessia e escrevi todos os dias ao longo de um ano. Um dia, ouvi de amigos – Arthur Dapieve e Zuenir Ventura – que eu deveria publicar. Lembrei de um livro que tinha me marcado de maneira irremediável – O ano do pensamento mágico de Joan Didion – que começa assim: “A vida se transforma rapidamente. A vida muda num instante. Você se senta para jantar e a vida que você conhecia acaba de repente”. Conhecia seu trabalho com a escrita e achei bonito e potente que uma ensaísta brilhante se dedicasse a escrever sobre uma experiência radical que pode transmitir o essencial da vida. Ela havia perdido o marido, o grande amor com quem passara a vida, e enfrentava, em seguida, uma grave doença da filha. Havia ali uma dignidade que me deixou impressionada. Esse foi um ponto de virada na minha existência, imprimindo uma marca incontornável. Eu escrevia no auge de uma dor e de um mistério ainda cambaleante, me segurando nas palavras. Névoa e assobio, certamente, se configura como uma travessia, como um trabalho de luto e a escrita surge como um meio instável e precário de introduzir alguma ordem, uma maneira de me rodear de um silêncio necessário. Escrever e colher flores num campo minado, escrever para além da decifração e amando de maneira obstinada o não-sentido. Lembrava-me de Herberto Helder, poeta português que me acompanha sempre: “Já sei que a minha força está em saber manejar a minha fraqueza. Sou hoje uma espécie de campeão nesta estranha ginástica. Estou em ressureição lenta”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Há um livro ainda por escrever e, ao pensar nesta pergunta, lembrei que ainda menina, no final da faculdade, fiz um estágio num hospital psiquiátrico. Conheci um senhor que carregava no bolso um pequeno manual de instruções em caso de guerra. Era um pequeno poema costurado a partir de seu delírio psicótico. Ele literalmente trazia o objeto no bolso. Quando sentia que alguma estrutura poderia se abrir, quando os nós pareciam se desgarrar ou se desfazer diante de seus olhos, ele sacava seu manual de instruções, sua conexão com a vida. Como James Joyce, seu sintoma criava alguma estabilidade, fazia suplência. Na iminência de cada catástrofe, escrevia uma nova página que o garantia mais um pouquinho de vida, um pouco de ar. Ele dizia estar deixando um legado para a humanidade, dizia que estava me ensinando e protegendo. Nunca me deixou copiar seu manual-poesia, pois era um “segredo mundial”. Hoje lembrei dele me dizendo: “Você tem que criar seu manual que não é tão importante, mas é seu. O meu é o meu”. A beleza de uma obra: pode não ter sentido, mas é um caminho, uma invenção. Creio que ainda não escrevi meu pequeno manual: talvez um poema, um ensaio, uma coleção de notas, alguma coisa que não traz a redenção, mas aprofunda a relação com o vazio. Há de existir algo depois da névoa e do assobio.
O livro que eu gostaria de ler e ainda não existe é um livro surgido da insurreição, da reinvenção do mundo. Talvez seja o livro do filho que ainda terei: uma escrita de alguém para além de mim, que possa nascer desta aposta incerta e absurda num futuro, que possa movimentar e estraçalhar a certeza do pior, que me reenvie sempre, assim como a minha relação com a escrita, à possibilidade de viver o negativo dentro de uma clave da delicadeza.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Muitas vezes começo um texto, um trabalho com uma palavra que deixo decantar na tela: passo por ela, levanto, volto e numa voragem inquieta surge um imenso texto que depois preciso deixar cair até sobrar o que importa: e o que importa possui relação direta com esse significante que gerou o texto. É como uma travessia numa análise, que próxima do final, revela a palavra de entrada: agora assimilada como uma roupa que já não veste tão mal. Agora por exemplo, estou trabalhando com uma artista que me apresenta inquietações novas e acompanhar artistas em seus percursos, produzir textos a partir do encontro com eles é também uma travessia onde muito de mim se recoloca, se rearranja: uma desolação, mas uma desolação que sabe também da alegria.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
De maneira um pouco orgânica pelas demandas e prazos, mas me permitindo um deslize pelas frestas do dia para que os textos possam respirar. Gosto muito de trabalhar em cafés onde um café se intercala com duas horas de produção e depois um respiro para recomeçar de outro ponto, mas procuro não criar regras rígidas demais para trabalhar, pois muitas vezes uma ideia surge de um encontro com o mundo. Procuro não ficar ilhada em meu escritório de trabalho e circular pelo burburinho do mundo.
O que motiva você como escritora? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Sempre escrevi muito: desde os primeiros bilhetes para os amigos da escola, passando pelas redações imensas e pelos diários. Tudo que eu sou e tenho passa pela escrita de tal modo que não consigo separar minha existência do próprio ato de escrever.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
Um estilo próprio é um projeto perpétuo, pois é no próprio fazer, na própria fricção com o mundo que algo de um gume próprio vai surgindo e se inscrevendo como marca, como um modo de fazer singular. A autora que foi mais importante para minha formação discursiva e existencial foi Clarice Lispector, pois desde pequena frequentei a biblioteca municipal de minha cidade e me apaixonei por sua visão espantada do mundo. Foi com ela que aprendi a desnaturalizar a vida, as coisas. Foi com ela que a dimensão da experiência cravou em meu corpo o gesto da escrita.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Água Viva de Clarice Lispector pela estranheza que porta. Experiência interior de Georges Bataille pelo assombro que cultiva. Mal- estar na civilização, pois não há como entender a cultura ocidental sem Freud e pela grandeza de sua ética que torna a escrita uma investigação preciosa de si e do outro.