Betzaida Mata é mestre em História pela UFMG, professora, escritora e mãe de quatro meninos.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
O meu dia começa bem cedo. Acordo às cinco e meia da manhã e preparo o café para mim e meus filhos. Às seis e meia, saio para o trabalho. Sou professora de História no Ensino Médio e dou aulas no turno da manhã. De segunda a sexta-feira o dia começa tão atabalhoado que quase não vejo o tempo passar. Nos fins de semana, as manhãs são bem mais tranquilas. Os meninos correm pela casa, brincam e desenham; meu companheiro e eu tomamos café enquanto travamos longos debates, sempre sobre os mesmos temas, até chegar a hora do almoço. Seja de segunda a sexta-feira, seja nos fins de semana, dificilmente escrevo pela manhã.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Trabalho melhor de manhã, mas é durante a tarde que me dedico a escrever. Nessa parte do dia, já cheguei do trabalho e os filhos ainda estão na escola. É o momento em que consigo silêncio e solidão, duas condições fundamentais para que eu possa imergir na escrita. O ritual de preparação consiste basicamente em deixar a casa organizada, silenciar o telefone e fechar a porta e as janelas do quarto. É um ritual em que eu me isolo das coisas exteriores para mergulhar na escrita.
O processo de escrever se divide em três partes. Primeiro, é uma enxurrada de pensamentos e ideias que vou amarrando mentalmente para esboçar uma história. Essa primeira fase não precisa de ritual, acontece o tempo todo: no caminho para a escola, enquanto faço o jantar, durante alguma leitura ou conversa, quando estou assistindo a um filme. Só depois é que começo a redigir um rascunho que vai, aos poucos, tomando o corpo de um texto. Esse texto será mexido, remexido e reescrito várias vezes, até que eu me sinta satisfeita, exausta ou as duas coisas.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu gostaria de ter uma meta diária. Mas com a rotina de mãe, professora e dona de casa, a escrita que desenvolvo é a única possível: fragmentada, interrompida pelos imprevistos, sem planejamento rígido, mas muito insistente. Acho que foi por isso que me reconheci no livro “Rostos na multidão” da mexicana Valéria Luiselli. Nele, a rotina entrecortada da mulher que é mãe está visível na própria forma como o romance se estrutura.
Ainda assim, escrevo quase todos os dias. Pode ser uma página de um romance em andamento ou a reformulação do trecho de algum conto já finalizado, mas dificilmente passo um dia sem me dedicar à escrita. Quando estou perto de finalizar um projeto literário, fico mais obstinada e tenho mais disciplina.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
O processo, como disse lá em cima, começa quase sempre caótico, numa avalanche de ideias, imagens e diálogos. É durante essa fase que inicio as primeiras pesquisas sobre o que quero escrever. Nas histórias que conto, há dois elementos que costumam ter uma importância muito grande: o espaço onde as coisas acontecem e a rotina de trabalho das personagens. Por isso as pesquisas, na maioria das vezes, são sobre lugares e profissões: a disposição das casas em uma cidade industrial, como são os dias dos pescadores que passam longas horas em alto-mar, as características do ambiente submarino e como é o cotidiano de trabalho em uma gráfica são exemplos de pesquisas que já realizei para a escrita dos textos de ficção.
Não há uma divisão clara entre o momento de pesquisar e o de escrever. As duas coisas costumam ser simultâneas, mas a pesquisa ocupa sempre o papel de servir à escrita. Isso porque quando escrevo – seja sobre a menina que encontra a si mesma na amizade que constrói com pescadores, o avô fascinado pelas palavras ou a mulher de quarenta anos que toma um susto ao reencontrar o filho abandonado ainda recém-nascido – o que busco, acima de qualquer coisa, é alcançar a condição ambígua, precária e misteriosa que faz de nós seres humanos. O enredo e as personagens são apenas um pretexto para essa busca que, apesar de nunca ser bem sucedida, permite que eu me aproxime mais dos meus companheiros de espécie. Por meio dessa busca, escapo à desumanização.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
As travas na escrita me entristecem muito. Às vezes, tenho um projeto bem definido, no qual acredito e aposto, mas não consigo iniciá-lo. Vencer um bloqueio é sempre muito difícil. Hoje em dia tenho procurado entender o que o provoca. Então, começo um processo de autoanálise que acaba sendo uma forma de enfrentar a procrastinação.
O medo de não corresponder às expectativas existia quando eu era mais jovem. Hoje não. Escrevo o que sinto necessidade de escrever. Claro que tenho muita vontade de ser lida e reconhecida, mas hoje em dia a crítica negativa ou a escassez de leitores não me provocam medo e nem me desestimulam.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso várias vezes! “O fundo e a luz”, por exemplo, foi revisado longo de quase três anos e, nessas revisões, muitas partes foram reescritas. Além disso, gosto de mostrar meus trabalhos a amigos, escritores ou não. O importante é que sejam pessoas próximas, que gostem de literatura e em quem confio para que façam uma crítica sincera.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Na maioria das vezes, faço meus rascunhos no computador. Mas já esbocei longos trechos em páginas de cadernos e até mesmo no bloco de notas do celular.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
As ideias que tenho, em sua manifestação mais primária, relacionam-se com o que vivi e ouvi falar e com a forma como isso foi incorporado a minha memória. As lembranças que carrego são muito presentes nas coisas que escrevo. Depois, há o trabalho de burilar essas ideias iniciais e pesquisar referências que transcendam a experiência individual. É este trabalho que permite que minha escrita vá além da subjetividade. Não cultivo nenhum hábito específico para me manter criativa. Criar para mim é uma necessidade.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Minha escrita ficou mais corajosa e direta, mais simples também. Não tenho ideia do que diria a mim mesma quando comecei a escrever os primeiros textos. Acho que não diria nada porque, naquele momento, eu estava fazendo tudo o que dava conta.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de contar uma história que tivesse uma longa duração no tempo, que atravessasse várias gerações e que tratasse, primordialmente, da nossa fragilidade, da insuficiência que acompanha todo ser humano.
Nunca pensei em um livro que gostaria de ler e que ainda não existe. Há tantos livros já escritos que ainda não li e desejo muito ler!
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
No meu caso, a escrita de um texto de ficção sempre começa como uma necessidade, algo sobre o qual sinto urgência em escrever. Então, não elaboro um planejamento detalhado. Ao longo do processo de escrita, faço alguns esboços para nortear o livro. Mas o resultado final é sempre imprevisível.
Com certeza a última frase é mais difícil!
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Minha rotina é muito atribulada: casa, quatro filhos e o trabalho como professora e revisora de textos. Encaro a escrita literária como um ofício, não uma profissão. Embora seja um trabalho, não a tomo como uma tarefa a ser cumprida. Porém, quando estou envolvida com a criação de uma história, dedico-me a ela todos os dias.
Costumo desenvolver um projeto de cada vez.
O que motiva você como escritora? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Eu tinha nove anos quando pensei em ser escritora pela primeira vez. Vi na escrita uma forma de recriar o mundo e entender a mim mesma. Hoje o que me motiva é a possibilidade de lidar com a linguagem de forma artística – e sim, a arte envolve escolhas estéticas e políticas –, de desenhar com palavras as coisas do mundo, suas contradições, suas belezas e feiuras. Quando escrevo construo a mim mesma.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
Consigo identificar duas dificuldades que ocorreram no início. A primeira delas é uma certa inibição que algumas vezes me impedia de dizer as coisas com a dureza, a força e o despudor que elas demandavam. Creio que com “Diário do Aço”, o último romance que publiquei, consegui amadurecer muito em relação a esse entrave. A segunda dificuldade está ligada à capacidade de expressão sem muitas explicações. Durante algum tempo, eu tendia a me perder entre longas reflexões e descrições ao longo do texto. Aprendi, com o tempo, a importância da precisão e das lacunas. Dentre autores que me influenciaram, destaco Lygia Fagundes Teles e Milan Kundera.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Aí vão:
“Com armas sonolentas”, de Carola Saavedra – Nesse romance, as tragédias que perpassam as histórias de mulheres, sobretudo daquelas expropriadas de sua vida e de sua ancestralidade, vêm à tona numa narrativa dura e terna, carregada de referências femininas que costumam ficar ocultas. Os laços ancestrais e invisíveis que nos unem se apresentam numa atmosfera ao mesmo tempo mágica e pedestre.
“Kyoto”, de Yasunari Kawabata – O livro é de uma beleza que nos absorve. A escrita cuidadosa lembra o trabalho daqueles que tecem e tingem os quimonos comercializados na loja da família da protagonista. A leitura é uma imersão no Japão que vê suas tradições perderem espaço para o estilo de vida ocidental. As minuciosas descrições das paisagens, das vestimentas e acessórios; e também as reações contidas e cheias de sensibilidade das personagens provocam um estranhamento que nos abre para outras formas de entender e sentir o mundo.
“As avós”, de Doris Lessing – A narrativa começa de forma trivial, com duas senhoras, amigas de infância, sentadas em um restaurante com suas respectivas netas. Sem aviso prévio, a história começa a desvelar segredos familiares, episódios carregados de transgressão que são incorporadas ao cotidiano das personagens com discrição e naturalidade. Desprovida de julgamento moral e permitindo que as ambiguidades das pessoas e das relações venham à tona, a novela de Doris Lessing mostra a complexidade e a solidão que envolve a condição das mulheres.