Betty Vidigal é escritora.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo lendo o jornal. Sou viciada em notícia e em política desde criancinha… (o vício já foi mais intenso).
Mas não tenho rotina, mesmo-mesmo, pra nada, se depender de mim (tem coisa que depende de outros, né?). Cada dia faço as coisas de um jeito diferente da véspera.
Digo que o único privilégio da velhice é não ter horários, não precisar de despertador. Hoje em dia, deito muito tarde. Como deito tarde, acordo tarde. A rotina “matinal” não é tão matinal assim.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Se for pra trabalhar, o melhor horário é a madrugada, quando os outros estão dormindo, aqui em casa. O que chamo de ‘trabalhar’ é algum texto remunerado. Aí me concentro, cumpro metas, prazos. Minha relação com clientes é sempre muito gostosa, tenho um prazer grande em escrever sobre algo que não conheço, pesquisar do zero. Pra isso, definitivamente a madrugada.
Meus textos autorais não sinto como trabalho. Escrevo porque quero, por necessidade interna. Pra esses não tem horário. Podem vir em qualquer momento. Quando engreno vou adiante sem parar, até de repente empacar e interromper.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho meta nem método pra nada. Nem pra escrita, nem pra coisa nenhuma. Porém… Se me pedem 150 mil caracteres em seis meses, essa meta será cumprida. Sem definir uma fração diária a ser produzida compulsoriamente. Podem ser muitas laudas num dia – e só pesquisa, noutro. Ou só ouvir gravações, entrevistas… (Faço ghost-writing, entre outras coisas, e isso em geral exige muita pesquisa, sobre os mais diversos assuntos. Medicina, auto-ajuda, yoga, biografias… Só não topo ghost-writing de ficção. Nem teses, é claro.)
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Nunca é difícil começar. Sempre é difícil encerrar.
Uma vez, numa empresa em que trabalhei, fizeram com que todos os funcionários passassem por um teste psicológico. O meu falava em “dificuldade de finalização”. Eu nunca tinha percebido esse defeito meu, até aquele momento. Alguns colegas tiveram como resultado “finalizador compulsivo”, o que também não é bom. O finalizador compulsivo vai até o fim de qualquer projeto, mesmo que no meio do processo verifique que é ruim, ou irrelevante, ou desnecessário, ou até mesmo nocivo.
Mas enfim: tenho problemas pra terminar. Posso estar com todos os capítulos escritos, e não consigo me mover para reunir tudo numa versão final. Travo nesse ponto.
E como me movo da pesquisa para a escrita? Bom, meus livros autorais não envolvem pesquisa. Sou poeta. Acordo no meio da noite com um poema pronto na cabeça, levanto, escrevo, de olhos meio fechados, no escuro, com uma letra horrorosa, deito de novo e redurmo. Dali pra frente, o poema tá incorporado em mim. Sei de cor tudo o que escrevi, desde pequena.
E tudo chega metrificado e rimado. As pessoas pensam que poeta fica contando sílaba… procurando rima… Fica nada. Aquilo nasce pronto.
Se eu não levantar para escrever, de manhã não me lembro de nada, nem do tema. Lembro que “havia um poema”… e “perdi”. Às vezes não levanto porque o sono vence, tenho certeza de que vou lembrar… Como não lembraria? Tá tão nítido no cérebro. Mas quando acordo só ‘vejo’ mentalmente a posição de alguma palavra na linha. Perdi o poema – e não volta.
Por volta dos trinta anos, comecei a escrever contos. Tenho dois livros de contos. No primeiro há um conto escrito aos onze anos, mas foi uma exceção. Esses contos também não têm um padrão para chegar. Às vezes é um flash, escrevo tudo de uma vez, outras vezes a estória chega aos pouquinhos.
Como me movo da pesquisa para a escrita, fora da poesia? Sem método. Não me movo. É tudo junto.
Não posso responder a “Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar?”, porque não tenho esse sistema de ‘primeiro’ compilar notas suficientes (como definir quando/quanto é suficiente? Ao longo da produção do texto, sempre surge algo mais a ser pesquisado) e ‘depois’ começar a escrever.
Minha pesquisa é desordenada, começo a escrever, penso em algo que precisa ser checado, fico com dezenas de telas abertas no computador simultaneamente, um monte de livros abertos ao meu lado.
Pode parecer que vou me perder, mas não. Vou pondo todos os arquivos em pastas, subpastas, subsubpastas. Fica arrumadinho. Adoro pesquisar, e já adorava quando não existia internet. Tenho duas enciclopédias Britannica (ainda!)… E são bem diferentes uma da outra, por estranho que isso possa parecer.
Acredito que na internet uso truques de pesquisa que poucos conhecem… E, como leio bem em diversas línguas, pesquiso em todas ao mesmo tempo. Alguns arquivos de Word ficam abertos: um, o do texto em que estou trabalhando; outros, arquivos de pesquisa em que vou reunindo links, sites, opiniões de especialistas, textos diversos. E ao mesmo tempo ficam abertas telas de browser, o OneNote, um programa de edição de imagem… Essa confusão me deixa muito animada e motivada. Uma vez um médico me deu um remédio para eu ficar “focada” e foi péssimo. Meu jeito certo de trabalhar é sem foco.
Sobre inspiração:
Meu primeiro livro foi publicado aos 17 anos, com poemas escritos até os 15. Teve prefácio de Lygia Fagundes Telles (preciso dizer isso, para validar a obra, pra quem não leu. Se não digo, pensam que são poeminhos de mocinha. Lygia prefaciou pouquíssimos livros. Acho que só três).
Quando vejo meu caderno de poemas da adolescência, vejo que fui dura comigo. Tem muita coisa lá que eu não quis publicar, mas hoje publicaria.
Os poemas escritos entre os 15 e os 17 estão noutro livro, publicado dois anos depois. Aí veio uma fase de seca, uns 10 anos sem escrever nada.
Isso não me angustia.
A poesia vem quando quer. Uma hora ela volta. Sempre digo isso aos poetas que reclamam que faz tempo que não escrevem nada.
Naquele tempo eu ainda não tinha a escrita como profissão, não escrevia ‘para os outros’. Isso começou bem mais tarde e começou naturalmente, sem que eu tivesse procurado a profissão.
Eu trabalhava com Design de Interiores, e durante alguns anos mantive as duas ocupações.
Fiz faculdade de Física (USP). Estudei e lecionei Design na Panamericana de Arte (trabalhei com Design de Interiores por 26 anos, essa era a minha profissão). Cursei Jornalismo já neste século.
Eu não achava que escrever fosse profissão. Meus professores queriam que eu cursasse letras, e eu perguntava: “Por que estudar algo que já sei?”.
Eu queria o desconhecido, e principalmente queria uma faculdade de ‘fazer’ algo, não só de ouvir e pensar e escrever. Nas três áreas que estudei, havia o que ‘fazer’: laboratórios, pesquisa científica, desenhos, estúdios de rádio, TV, documentários.
Embora tenha começado a escrever poemas na infância,, e contos em torno dos 30 anos, embora tenha começado a escrever dramaturgia no final da década de 1980, só comecei a ver a escrita como profissão bem mais tarde, na metade da década de 90. Foi quando começaram a aparecer clientes corporativos que até hoje trabalham comigo. E quando comecei a fazer roteiro pra TV.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Sou procrastinadora por natureza. É um defeito horroroso, admiro pra caramba as pessoas produtivas, que fazem logo o que têm que fazer, “pra tirar da frente”. Convivo com algumas pessoas assim.
Mas ninguém consegue se educar pra ser desse jeito. Ou já nasceu assim, ou babau.
Começo logo um projeto novo, porque tudo me entusiasma, tudo é empolgante. Mas depois vou… “procrastinando”.
– Medo de não corresponder às expectativas não tenho, o que é péssimo.
Se por acaso achar que “não sei fazer isso”, já recuso de cara, e não adianta insistir que não vão me convencer.
Mas sofro de excesso de autoconfiança. Aceitar algo superestimando minha capacidade – já aconteceu. Poucas vezes, felizmente. Como lidar com isso? Não sei dizer… Uma vez simplesmente reconheci não estar à altura e pedi que me substituíssem. Sei que decepcionei pessoas que esperavam muito de mim. O fato é que não sou boa para encabeçar projetos. Não sei dar ordens, não sei exigir produção e excelência, não sei cobrar pessoas que não cumpriram prazos. O que sei fazer, num trabalho em equipe, é fazer direitinho a minha parte…
Isso se aplica também a projetos longos. Não canso dos assuntos, tenho pena quando os trabalhos acabam. Deve ser parte dessa minha dificuldade de finalização…
Nunca enjoo de nada. Se eu gostar de alguma coisa, é pra sempre. De pessoas, idem.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Releio e altero dezenas de vezes, se for prosa. Poesia, não. Um poema nasce pronto, é muito raro eu modificar algo. No máximo corto uma parte do poema. Deixo só o começo ou só o fim. Não é propriamente rever, nem revisar.
Se mostro para outras pessoas? Se for trabalho, só mostro para o cliente. Debato bastante as opções para o texto. Alguns não querem debater, querem ver o texto final. É pena, sempre fica melhor quando a gente conversa.
Mas, se é texto meu, autoral, tenho alguns interlocutores preferidos. Gente a quem mostro, gente que ouço. O interlocutor favorito era meu pai, poeta, professor, membro da Academia Paulista de Letras, 26 livros publicados. Não está mais aqui para trocar opiniões comigo… Me mandava os poemas dele, também, por fax.
Acredito que todo escritor precisa de leitores-interlocutores. Mesa de bar onde um pode dizer “escrevi um poema ontem”, outros ouvem e dão palpites. Até pra dizer que odiaram. Tudo na maior fraternidade. Ou sororidade. Esse climão de boteco se perdeu na internet. As pessoas se encontram para saraus, para leituras. Não se encontram mais para conversar e de repente um mostrar algo que está em andamento, e todos darem pitacos.
Se vou escrever um texto meu, mais ou menos longo e que exija pesquisa, aí em geral preciso que alguém leia e me diga se está fluido. Porque esse tipo de texto a gente altera tanto que em certo momento perde a perspectiva. Faço isso para amigos, também. Me mandam o texto: “Tá bom assim? Tô zonzo, de tanto que alterei”. Em geral, nesse tipo de situação, o que acontece é que os parágrafos precisam ser reordenados; tá tudo bom, mas fora do lugar.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Minha relação com a tecnologia é de intimidade. Não tenho nenhum temor reverencial, nenhuma ojeriza.
Fiz faculdade de Física. Na faculdade, curso de programação. Fluxograma. Fiz um curso na IBM. Nada que seja muito útil hoje, serviu só para moldar o pensamento.
Tivemos em casa equipamentos que poucas pessoas tiveram. O video-texto, por exemplo, na década de 1980, que permitia conversar com gente do mundo todo pela TV, através de um teclado conectado à linha telefônica. Bem parecido com os bate-papos pela internet. Foi um experimento da Telefonica. Antes disso, computadores como o TK-2000, que não serviam pra nada, comparados aos PCs que surgiram depois. O primeiro computador ‘de verdade’ surgiu na nossa casa em 1986; era um Itautec.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
As ideias vêm do nada. Não cultivo hábito nenhum. Se tenho algum hábito, ele se instalou sem ter sido cultivado…
Um dia descobri que vinho desencadeia textos. Deveria ter descoberto muito antes, já que li Omar Khayyan desde a pré-adolescência. Mas descobri já adulta. Quando voltava de uma vernissage ou de um lançamento, vinha cheia de palavras por dentro, tinha que parar o carro a toda hora para escrever. Demorei a descobri que é o vinho que faz isso. Outras bebidas não têm esse efeito.
Mas não tomo vinho pra destravar a criação, não… Isso não faço.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O processo não mudou. Os poemas é que mudaram um pouco: eram mais formais, no sentido de forma poética. Tinham esquemas de rimas mais precisos. Hoje os versos são mais soltos. E os poemas, mais longos.
A temática mudou também. É como se antes eu me levasse a sério, e hoje não. Hoje rio de mim mesma e do mundo, mesmo se o mundo é trágico.
Adolescentes levam a vida e a morte muito a sério.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Muitos projetos. Quero publicar um livro de traduções de poemas, de vários poetas. Não faço tradução com método – de vez em quando surge algo que me dá um tcham de traduzir. Estou juntando essas traduções. Ainda não tenho quantidade suficiente para um livro. Falo inglês, francês e espanhol, por pura sorte. Estudei em colégio francês, sou casada com um inglês, tive babá espanhola – que gostava de ler. As línguas vieram naturalmente.
A única tradução que publiquei foi de um poema de Victor Hugo, Les Djinns. Foi publicada inicialmente na revista O Escritor, da UBE-União Brasileira de Escritores, com um texto detalhando as opções que fiz, o caminho escolhido para a tradução, pois traduzir um poema envolve muitas decisões. A tradução foi depois para a internet e assim foi encontrada por uma professora da Universidade de Rosário, na Argentina, que estava publicando um livro sobre esse poema. O livro é quadrilíngue, com traduções em espanhol, inglês, alemão e português, comentadas pelos tradutores – além do original. Foi lançado só na Argentina.
Tenho alguns livros infantis começados. Um deles, sobre o Colégio Des Oiseaux, onde estudei. Era um colégio maravilhoso que foi demolido da década de 1970. E tenho um projeto de escrever sobre A Turma do Alarga-a-Rua, uma turma de adolescentes que tiveram um jornal na década de 1930 e, mais tarde, se tornaram todos pessoas destacadas no cenário nacional. Esse jornal, O América, foi tema do meu TCC em Jornalismo. A pesquisa, portanto, está pronta.
Queria também reunir em livro alguns exercícios de dramaturgia que escrevi entre 1995 e 2005. Acho que podem ser interessantes para alunos de teatro, mas estão todos em disquete… Preciso de um leitor de disquetes, será que é fácil de achar?
Faço um trabalho de pesquisa da real autoria de textos atribuídos a quem não os escreveu. Isso era publicado num jornal, depois num site, hoje numa página do Facebook, Textos Apócrifos na Internet. Queria muito juntar tudo em livro.
E às vezes penso em publicar meus poemas inéditos. Preciso criar coragem pra isso. O livro de versos mais recente foi publicado em 2010. Me falta coragem pra publicar, embora haja editores que sei que publicariam. Falta coragem porque tenho a sensação de que ninguém mais lê poesia – e todos escrevem e publicam poemas.