Beethoven Alvarez é professor de Língua e Literatura Latina na Universidade Federal Fluminense.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
De forma cínica e supostamente bem-humorada, eu diria: acordando… mas, pensando bem, essa resposta até funciona pra explicar minha falta de rotina matinal. Só começo o dia quando acordo e isso não tem muita hora certa pra acontecer e só acordo depois de tomar um café. Talvez minha única rotina. Longe de ser apenas matinal. Bastante café. Invariavelmente estou atrasado. Brinco que sofro do “complexo do Coelho Branco”. Muitas vezes chego a sair de casa bebendo café ainda. Posso acordar no meio da tarde, mas, antes de qualquer coisa, vou fazer um café. Depois do café, começo normalmente a trabalhar, ou em casa, ou na universidade. Aí começa o dia, e então tomo mais um café.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Infelizmente (digo isso hoje), tenho costumes notívagos. Trabalho melhor normalmente à noite, quando sinto que a cidade se acalma, que os ônibus descansam, que as pessoas estão em casa já preocupadas com o dia seguinte; nessa hora, não tenho grandes receios de receber algum e-mail urgente ou uma mensagem instantânea indesejada (ou desejada). As redes insociais, como as chama o grande Away de Petrópolis, atrapalham muito, e olha que não sou um usuário hard. Tento lidar com toda parte chata e burocrática do trabalho (e da vida) durante o dia, e deixo pra produzir à noite. A menos que esteja numa época de preparação de algum texto, ou material específico. Aí não, vou encontrando momentos durante o dia para escrever. Não tenho nenhum grande ritual, mas diria que há pequenos rituais sazonais que pratico, e que variam. Talvez valha dizer que, se estamos falando de rituais, alguma libação sempre é bem-vinda na hora de escrever.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Depende muito da necessidade. Mas, de forma geral, escrevo muito erraticamente. Incluo no que estamos chamando aqui de “período de escrita” também a prática da tradução e da produção de material didático. Tenho sempre uma meta, uma meta mensal, semestral, anual, ou uma meta de maior fôlego, mas dentro desse período as coisas acontecem muito irregularmente. Por exemplo, há pouco tempo me propus a fazer uma tradução de um poema de 80 e poucos versos e escrever um artigo sobre o poema e a tradução; eu tinha talvez quatro meses para isso. Já conhecia o poema, o poeta, era tempo suficiente. No primeiro dia que ajustei esse objetivo, traduzi metade do poema, e fiz as notas. Mas, embora me mantivesse atento ao texto, relendo e estudando, pesquisando fontes e comentários, só três meses depois traduzi a outra metade, num dia só também; e, em pouco mais de uma semana depois disso, redigi o corpo do texto do artigo, escrevendo duas ou três páginas todos os dias. O problema é que, nessa semana, eu parei praticamente de ver os e-mails e responder às mensagens.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu sou tranquilamente movido pela pressão. A iminência do estouro de um prazo me motiva e torna tudo mais fácil. Passo muito tempo lendo, estudando, pesquisando, eventualmente fazendo alguma nota, eventualmente me distraindo, mas a coisa toda vai acontecendo no campo do pensamento mesmo. Uma hora eu sento, literalmente, e a coisa vem. Mas, longe de ser psicográfico esse processo de escrita, ele vai sendo custoso. Tenho sempre muitas dúvidas. Sempre acho que há uma forma melhor de dizer. Sempre tem uma referência bibliográfica, sei lá, em esloveno (já aconteceu) que eu invento de procurar, e isso toma tempo: não ajuda.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
De forma péssima. Faço terapia para parar de procrastinar, porém, recentemente deixei a terapia pra depois. Creio que terei problemas. Não tenho grandes ansiedades, mas há sempre um medo de não estar produzindo algo excelente. Muito embora muito do que escrevi não seja excelente, demoro até me convencer que um texto é adequadamente bom para ser lido.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
A questão da revisão está diretamente ligada à questão anterior. Mas, sim, adoro uma revisão. Acho que gosto mais de revisar o texto do que escrever. Tenho uma tradução de uma comédia latina que está pronta há uns sete anos e não acabei de revisar ainda. E, sim, mostrar para outras pessoas é a chave do sucesso, mas nem sempre é possível ou fácil de fazer isso. As pessoas também estão trabalhando nos seus textos, tenho sempre receio de estar incomodando.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo praticamente tudo no computador. Muito no celular também. Papel mesmo só em momentos de muita intimidade ou necessidade. Às vezes tento começar no papel, mas quando vejo já estou no computador. Isso tem feito minha caligrafia (ou cacografia) piorar a cada dia. Sinto falta da relação com o papel, com o analógico, mas a tecnologia da escrita na ponta dos dedos é insuperável. Isso ainda terá efeitos a longo prazo que não medimos. Algumas revisões eu gosto de fazer no papel ainda.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Eu diria que minhas ideias vêm de uma curiosidade estranha. Estranha pelos objetos que cultivam (a palavra curiosidade, por curiosidade, vem do verbo colere, em latim, que significa “cultivar”, “cuidar”) e estranha pela motivação que a suscita (estranho vem de extraneus, “que vem de fora”). Num determinado momento estou escrevendo sobre prosódia e ritmo do verso em português, mas, se bate um vento mais forte, começo a traduzir poesia romena. Atualmente, estou num projeto de alguns meses para uma tradução poética de uma (outra) comédia latina, mas nada impede que, no meio, eu comece a estudar gramática etrusca, por exemplo (sim, eu pensei nisso). Os hábitos que cultivo, nesse sentido, são simples: apenas me mantenho atento, lendo, frequentando bibliotecas e livrarias, eventos científicos, literários, conversando com amigos, vendo o que está acontecendo (e o que não está). Agora, como disse, se os objetos podem ser estranhos por estarem “fora” de um eixo de contato mais óbvio, é estranha também minha motivação de cultivá-los, e dificilmente poderia explicar de forma muito racional o que me leva a cada projeto. Essa certa estranheza, “alheia a minha vontade”, me causa sempre problemas, mas traz também gratas surpresas. Um grande amigo um dia disse que o conhecimento é um vitral que construímos com pequenos cacos de vidros coloridos que juntamos ao longo da caminhada. Ainda estou andando e juntando cacos.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
No meu processo de escrita mudou pouca coisa, mas eu diria que eu mudei bastante. Sou bem mais criterioso e atento. Ou pelo menos tento ser. Eu antes acreditava que tinha mais capacidade do que realmente tinha; hoje talvez meu erro seja no sentido inverso, mas é mais prudente. Não sei se diria alguma coisa a um “eu” meu do passado. Ele (esse “eu)” tinha lá seus anseios, suas capacidades, seu modo de lidar com a vida, e isso foi importante pra ele naquela época e me ajudou a estar aqui hoje, e não tenho muito do que reclamar. Não quero julgá-lo por suas escolhas, mas hoje eu tentaria fazer diferente muita coisa.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Uma questão capciosa essa. Não tenho hoje nenhum projeto que não comecei. Tenho vários que comecei e estão meio parados. Já tenho projeto suficiente pra viver longamente e morrer sem ter terminado todos. E sei que, naturalmente, ainda vão aparecer outros que nem sei ainda. Agora, um livro que eu gostaria de ler e que não existe… na verdade, não é um livro, é uma coleção: não existe no Brasil, nem em língua portuguesa em lugar nenhum, uma coleção única com a tradução das 21 peças de Plauto, um autor de comédias latinas muito importante. É dele que traduzi e estou traduzindo alguma coisa. Gostaria que houvesse essa tradução da obra completa de Plauto, em português do Brasil especialmente. Acho que hoje é uma questão mais de mercado, porque temos ótimos especialistas em Plauto e em tradução por aqui. Mas vai que… porque, como escreveu o próprio Plauto, na peça “A corda”, “multa praeter spem, scio, multis bona euenisse”, “muitas vezes, quando menos esperamos, as coisas boas acontecem”.