Beatriz Regina Guimarães Barboza é escritorie, tradutorie e revisorie, doutorande em Estudos da Tradução na UFSC.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo confirmando ou não as demandas que estabeleci no dia anterior, diante das novas que vierem. Costumava ter uma rotina, mas deixo o fluxo orientar meus tempos, desde que dê conta de tudo que é necessário no dia, sem horas fixas.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Antes, pelas tardes, mas agora depende menos do horário e mais da vontade. Não me falta, mas às vezes muda. Porém, me aferro ao ritmo de manter certas leituras em andamento, assim como priorizo a escrita do que tiver prazo mais próximo — é importante que um tanto de tudo aconteça todo dia.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Tudo mudou desde que entrei no doutorado, porque sair de uma tradução comentada de um livro de Anne Sexton pra uma reflexão teórica sobre os estudos feministas de tradução e/m queer demandou outro fluxo: ao invés de traduzir alguns poemas todo dia e, depois, comentar esses aspectos aos poucos, preciso ler sobre as áreas com densidade e deixar decantar. Não consigo separar minha pesquisa de minha vida e busco sentir o momento de amarrar as pontas na escrita antes de seguir puxando mais.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Tento criar estruturas permeáveis. Se for um artigo ou a tese, preciso listar o nome das seções ou escrever o sumário, um esqueleto, mas nunca é definitivo, pois ao longo da argumentação estou aberte a perceber as necessidades e limitações que me levem pra outros lugares não imaginados no começo do processo.
Com relação à literatura, trabalho orientada por projetos. Não é como se tivesse uma ideia transparente ou coerente do querer na escrita, não acredito nisso, mas é importante que sinta pra onde meu desejo aponta e tenha disposição de ir atrás. Meio que essa direção, horizonte, chama o projeto.
E que tudo nesses processos esteja relacionado com um movimento interior que saiba receber e oferecer. Isso não significa escrever sempre, mas estar disposte pro pensar/sentir/fazer que se canalize em texto, respeitando os próprios limites, que variam.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Grande parte do meu preparo é alinhamento da intuição, mas a vida o tempo todo atravessa. Tento me recolher e voltar, daí consigo endereçar esses sentimentos e seguir fazendo. Gosto de projetos longos, sinto que eles permitem que acontecimentos se agreguem com mais aprofundamento ao seu corpo, e eu apenas sigo anotando e carregando o que sentir que for preciso pra isso.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso meus textos tantas vezes quanto os prazos permitirem. Com a literatura, ainda mais, porque depois de deixar fluir, é preciso preparar (impossível não me lembrar de um ponto de umbanda que conheço desde criança) em seu tempo. Há livros que reviso por anos antes de publicar.
Se for possível, mostro o que escrevo pras pessoas queridas e acho importante escutar a opinião delas. Já cortei inúmeras páginas apenas por conta de uma frase e um olhar que me deram — e ainda bem que isso foi feito —, mas também já assumi o risco de deixar algo como quis apesar da crítica.
Sobre textos acadêmicos, gosto de escrever artigos em coautoria justamente pra ter o olhar crítico ali na hora da composição. Como tenho pares com quem dialogo, é um processo que sempre me ensina muita coisa, ao escrever e revisar, e essas trocas afetam profundamente minha pesquisa.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Bastante dependente. Faço pesquisa pelo computador, leio textos nele, escrevo nele. Até faço notas no papel, tenho alguns cadernos pra isso, mas tenho maior velocidade digitando do que escrevendo e isso é importante pra acompanhar o pensamento.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criative?
Minhas ideias vêm da vontade de viver e cuidar do que isso demanda é o que me mantém criando.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesme se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu me desapeguei do que escrevo ao longo do tempo, ainda que valorize o processo. Reconheça a necessidade de orientar meus textos — por uma intenção, mas não pra um propósito —, mas não me antecipo e deixo entrar o que vier e se alinhar. Já me enclausurei em certas formas de viver, portanto, de escrever, então sigo em processo de me soltar. Mas não diria nada a mim mesme naquele tempo, porque é preciso atravessar.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Como trabalho com projetos longos, grande parte do que gostaria de fazer já está encaminhado de alguma forma, deixando-me receptive ao que agregar.
Não consigo dizer que nada não existe, mas gosto de ler livros que considerem a dimensão espiritual como constitutiva da experiência vital, materializada ou não. Que se fale do espírito das plantas e rochas assim como da intuição dos animais, dos corpos ciborgues que se afetam em alma-grupo por um desejo queerizado, e que imaginemos mais que isso.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Planejo a estrutura antes, mas o resto é fluxo, e não considero nada difícil na escrita, mas às vezes fico exauste de manejar o fluxo em meio aos atravessamentos da vida.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Como trabalho em casa, organizo de acordo com as demandas segundo seu prazo, distribuindo de acordo com o que sentir que é o momento de me dedicar. Por isso, preciso ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo, porque passo de um pra outro de acordo com essas variações.
O que motiva você como escritorie? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Tratar dos fazeres místicos e/ou sexuais que as normas reprimem e elaborar esteticamente um imaginário que seja feito dos caminhos que as subvertam. Nunca decidi ser escritorie, só precisava e percebi na escrita um espaço de imaginação pra outras formas de viver.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
As mesmas dificuldades pra ter uma voz na vida. É meio batido dizer que tudo se atravessa, ainda mais como quem traduz, mas é isso. Comigo, sem voz na vida, sem voz na escrita, mas isso é como sinto. Não como algo pronto, fechado, que se acessa ou não, mas algo a buscar todos os dias, que vai assumir inúmeras formas. Sem vozes, com vozes. Não gosto de dizer que alguém me influenciou mais, mas muito que me veio posteriormente partiu de Djuna Barnes e Maria-Mercè Marçal.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Nightwood, da Djuna Barnes. A amor entre Nora e Robin. A voz analítica e queer do doutor Matthew O’Connor. Os corpos tidos por abjetos que se mantém em diálogo porque a linguagem não lhes dá um significado digno de viver como são. Mas desejam, e isso move todes através da noite.
Toda a poesia e prosa da Hilda Hilst, que foi o que pude ler até agora. Como me oriento pela mística e pela sexualidade, aí está.
Degelo, da Maria-Mercè Marçal. Conhecer e traduzir a escritora da tripla militância — como mulher, de classe baixa e catalã —, a qual se agregou uma quarta como mulher lésbica, me apresentou um livro que desenvolve na poesia uma profundidade sobre as relações de embate com o pai e o patriarcado, a experiência de ser mãe e principalmente o amor e desejo entre mulheres.