Beatriz Leal Craveiro é escritora e jornalista, autora do romance “Mulheres que mordem”, finalista do 58o Prêmio Jabuti.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Acordo, me arrumo e vou para o trabalho. Trabalho na assessoria de imprensa de uma autarquia pública e bato ponto às 8h. Com sorte, consigo comer alguma coisa antes. Se for o caso, normalmente o faço lendo as notícias do dia, ou ouvindo um podcast. Ouço muitos podcasts, pois ando bastante a pé, estou sempre com fone nos ouvidos.
No fim de semana, busco acordar sem despertador. Faço um café e leio algo ficcional na varanda por uns 40 minutos. Só depois vou começar o dia, que pode contemplar tarefas domésticas, tempo com a família, compromissos sociais ou escrever. Quando consigo fazer com que esses primeiros 40 minutos do dia sejam sobre consumir ficção, então terei um dia produtivo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Atualmente, por conta do horário do meu trabalho formal, escrevo à tarde, entre 16h e 19h. Mas, definitivamente, sou uma pessoa da manhã. Nos fins de semana, se não tenho compromisso e posso acordar na hora que o corpo pedir, e levantar no tempo dele, do corpo, com o tempo para o café e para uma leitura, depois disso chega meu melhor momento de produção.
Mas no dia a dia, para escrever à tarde, não abro muito espaço para rituais. No máximo passo um café, ou preparo um chá.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Depende da situação. Se estou com algum projeto pontual e tenho prazo, costumo fazer um período concentrado, para conseguir fechar aquele texto até o dia determinado. Atualmente, tenho colocado metas: escrever de uma hora e meia a três por dia. Se não consigo avançar em um texto específico em andamento, uso essas horas para fazer exercícios de criatividade. Tenho dois recursos: um é um baralho (Writer emergency pack, do John August) que meu marido me deu há alguns anos, em que você sorteia cartas e precisa escrever cenas sobre os desafios que eles propõem. O outro é um livro (642 tiny things to write about, do The San Francisco Writers’ Grotto) – esse foi uma amiga quem me deu – que propõe pequenos textos, ou slogans, ou missões, para atiçar a criatividade, tipo: “Resuma Star Wars em um tweet”. Com esses joguinhos em mãos, não posso usar o bloqueio criativo como desculpa para não ocupar as horas previstas para escrita.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Se estou envolvida em um romance ou conto por muito tempo, mergulhada naquele universo, parece que aqueles personagens ficam sempre sussurrando ideias próprias para mim. Cenas e frases me vêm à cabeça nas horas mais inoportunas: em reuniões de trabalho, na depilação, enquanto faço supermercado, rs. Quando é o caso, anoto a ideia ou, com mais frequência, gravo no celular para ouvir depois. Quando é chegado o momento da escrita, de sentar no escritório para escrever, sistematizo esses pensamentos esparsos. A sistematização envolve passá-los a limpo e criar cenas que liguem uma ideia à outra, que façam com que elas tenham sentido. Na minha opinião, é nessa etapa onde reside o maior labor da escrita: transformar o que antes morava apenas na minha cabeça em um conteúdo com começo, meio e fim, que seja absorvível, coerente e, esperamos, agradável para outras pessoas. Penso que, para atingir esse fim, a técnica e a disciplina têm participação maior do que a inspiração.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Ansiedade é um problema sério para mim: no meu trabalho formal, nas questões domésticas e familiares, etc. Nesse contexto, a literatura é meu espaço de libertação. É onde encontro fuga, colo, acolhimento, onde posso exercer meu potencial de vocação. Na escrita, tenho o controle. Se eu não cumprir algum prazo, a culpa é exclusivamente minha, porque eu, e somente eu, não sentei e escrevi. Essa noção me empodera. O que me gera ansiedade é quando demandas externas (trabalho formal, contexto doméstico e familiar, enfim, vida) me impedem de exercer essa vertente da minha personalidade. Quando sinto que perdi o controle do meu tempo, essa é a causa da minha ansiedade, jamais a escrita em si.
Vez ou outra, começo a sentir ansiedade com a falta de resposta de uma editora, por exemplo, ou em relação a algum evento literário. Então, policio-me para não deixar essa nuvem da ansiedade contagiar o meu universo da escrita. Para mim, que não vivo da literatura, que não consigo pagar minhas contas por meio dela, ela tem que ser, então, o lugar do sagrado. E não há espaço para ansiedade no lugar do sagrado.
Nessa conjuntura, o medo de não corresponder às expectativas é recalcado, rs. Sei que não é o saudável, mas é a forma possível. Se eu parar para pensar, sinto, sim, medo de ter a obra rejeitada, seja por editora, seja por leitores. Mas se eu entrar nessa onda de pensamento, a ansiedade vai contaminar minha relação com a literatura, e não quero que isso aconteça. Em época de lançamento esse desafio se intensifica, ou, então, quando entrego um livro a alguém, normalmente aparece aquele fantasminha de pensamento “essa pessoa vai ler tal parte do livro e não vai gostar”. Mas aumento o volume da música que estou ouvindo, ou leio alguma ficção, enfim, afasto, fujo e recalco esses pensamentos.
Quanto à procrastinação – ah que dificuldade! O melhor antídoto para ela é o prazo. Quando tenho um prazo, fico obcecada com aquilo e produzo insanamente. Porque sei que, como disse acima, se eu não o atender, a culpa é exclusivamente minha. E não quero carregar esse fardo! Adoro jogos de tabuleiro e tento usar isso a meu favor, pensar em uma produção com prazo como uma missão, como um desafio, uma gincana. Aí, produzo mesmo! Agora, quando estou com um projeto mais longo, um romance, que não tem um deadline, é só ir produzindo, caramba, aí é difícil. Minha tendência é procrastinar mesmo.
Tenho alguns mecanismos de combate à procrastinação, como os exercícios que mencionei na resposta à terceira pergunta. Há também uma cartela que faço, tipo bingo, em que cada quadrado é uma hora. Para cada hora que escrevo, vou pintando um quadradinho. Aí, quando completo um determinado número de quadradinhos, me dou uma recompensa: uma longneck, um waffle, um dia livre, etc.
Quando estava na reta final do meu primeiro romance, o Mulheres que mordem, entre 2013 e 2014, eu tinha comprado uma bicicleta nova, e só queria saber de ficar passeando com ela. Então, me propus que só andaria de bike no dia em que eu escrevesse. Criei a rotina de escrever fora de casa, em lugares aonde eu poderia ir de bicicleta. Indecisa que sou, listei lugares interessantes de Brasília onde seria bom escrever, fiz pequenos papéis com cada um deles, e a cada dia eu sorteava um lugar para ir.
Foi um ótimo método, funcionou demais. Mas eu era mais nova, estava cheia de pique e inspiração, rs. Na época, eu morava em uma quitinete, que não era muito arejada, não era um lugar tão confortável para se passar horas escrevendo. Hoje tenho em casa um escritório e uma varanda muito agradáveis. É mais difícil me tirar de lá, rs.
Preciso estar sempre inovando nesses métodos de burlar a procrastinação. Parece que fica cada vez mais difícil manter a disciplina. É como se a falta dela fosse um vírus em constante mutação e evolução, contra o qual eu precisasse de antibióticos cada vez mais fortes.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
A quantidade de revisões varia, mas, sim, reviso diversas vezes. E sempre alguém lê. Meu marido, via de regra, lê toda a minha produção antes de eu encaminhá-la. Normalmente tento achar outra fonte de consulta também, que varia bastante. Para um romance que terminei recentemente, contratei o serviço de leitura crítica. No ano passado, escrevi um conto para o prêmio Off Flip que abordava um determinado assunto, sobre o qual uma amiga minha – que não tem relação com literatura – tinha experiência. Mandei para ela, queria que ela me desse um feedback quanto à verossimilhança do que eu havia colocado ali (eram questões médicas). O feedback que recebi é que eu já tinha escrito coisas melhores, rs. Meu marido falou a mesma coisa. Refleti, desapeguei daquele primeiro projeto, escrevi outro conto, e ele foi finalista do Off Flip.
Leitura dos outros é fundamental, embora possa configurar um processo doloroso. Você fica nu, completamente à mercê da crítica do outro. Mas faz parte, é um momento rico. A vulnerabilidade possibilita sensações catárticas.
Atualmente, eu e outros dois amigos escritores temos trocado nossas produções e nos reunido a cada dois, três meses para falar delas, darmos feedbacks uns aos outros sobre o que temos escrito. Tem sido fundamental técnica e terapeuticamente.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu poderia me beneficiar mais da tecnologia em relação a divulgação. Tenho muito a aprender e me adaptar às redes sociais. Mas abuso da tecnologia para produzir. Uso o celular para gravações (quanto estou parada no trânsito, por exemplo, e chegam ideias, uso o gravador do celular e converso comigo mesma, rs), às vezes faço anotações nele diretamente, e gosto muito do som do teclado do notebook enquanto digito. À mão, não consigo acompanhar a velocidade do pensamento.
De qualquer maneira, não descarto lápis e caderno. Quando há algo travado na garganta, mas que não está pronto para ser digitado, desenhar as letras à mão ajuda a desenvolver, a dar corpo ao que ainda não consegui decodificar. Aos poucos as ideias tomam forma, literalmente, com a caligrafia. Para romances ou contos com histórias mais complexas, costumo usar folhas de papel A3 para fazer linhas do tempo e diagramas de relacionamento entre os personagens e os acontecimentos.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Penso que o artista (e qualquer pessoa, no fim das contas) precisa estar atento ao equilíbrio de não entrar em alienação, mas, ao mesmo tempo, manter um espaço no cérebro para o ócio mental, como se o pensamento pudesse ser setorizado e houvesse o espaço para a fruição, o espaço para a socialização, o espaço para o trabalho, o espaço para as demandas domésticas, o espaço para as notícias e um espaço vazio, onde as ideias possam correr livremente.
Quando o mundo real está absurdo, é difícil manter esse espaço vazio. Normalmente, acabamos preenchendo-o com informações. Quando você se dá conta, o tempo de fruição de ficção ou simplesmente de ócio está completamente tomado pelo Twitter. Acredito que o consumo de conteúdo noticioso pode ser produtivo, pois a realidade indigna e, num primeiro momento, a indignação move. No meu caso, me move para produzir textos. No entanto, a indignação também tem o potencial de viciar e, em excesso, pode paralisar. Existe um limite do quanto de mente podemos dedicar à realidade dos noticiários.
Nesse sentido, exercícios físicos (andar de bicicleta pela cidade, principalmente) e passatempos me ajudam a manter a higiene mental. Percebo que tendo a produzir mais se estou fisicamente ativa, parece que usar o corpo abre espaço no cérebro para a inspiração. Também aprecio jogos de tabuleiro, mímica, e atividades do tipo, que atiçam a criatividade e possibilitam ao cérebro fazer conexões em contextos um pouco distantes da dimensão do real, do conteúdo noticioso e da rotina doméstica e de trabalho. De vez em quando, toco teclado também.
Uma vez com a mente limpa, acho que, para manter um fluxo de ideias interessante, observação e silêncio são primordiais e, em seguida, o consumo de arte. No meu caso, o que mais cativa são as narrativas ficcionais (romances e séries, principalmente) e música, muita música.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acho que a escrita muda conforme a vida avança. Penso que a tendência é a técnica amadurecer e evoluir, enquanto que a disciplina fica mais prejudicada. A própria mudança de casa faz os hábitos de escrita mudarem – os tipos de escrivaninha e de iluminação disponíveis, por exemplo, influenciam bastante no meu processo.
Em relação aos meus primeiros textos: se fosse hoje, certamente eu faria coisas diferentes, talvez ouvisse mais as críticas dos amigos. Mas, se eu já pensasse assim à época que os escrevi, seriam outros textos. Poderiam ser melhores, mas poderiam não ser. Acho que eles viveram o momento deles e tiveram seu reconhecimento. O melhor que posso fazer é respeitá-los no ponto da linha do tempo que eles ocupam na história da minha produção, e seguir me transformando.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Antes de pensar nos projetos que ainda não comecei, quero publicar um que está pronto (em busca de editora) e terminar dois que estão iniciados (a história de uma família brasileira que, acreditando nas ideias de meritocracia, busca mudar de estrato social; e a história de uma garota adolescente em um pequeno vilarejo italiano, cuja população é extremamente idosa).
Quero ler uma ficção que reflita sobre os conflitos da mulher progressista de classe média, residente em um país desigual, quanto às demandas familiares e domésticas na década de 2020. Já li algumas ficções que abordam esse cenário, mas não encontrei alguma que consolasse escolhas e decisões. Esse livro provavelmente nunca existirá (entre os que li, o que chegou mais perto talvez tenha sido o How to be good, do Nick Hornby, que, no entanto, não se passa em um país desigual).