Beatriz H. Ramos Amaral é escritora, poeta e ensaísta.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Sou notívaga desde que me entendo por gente e meu sono é bastante profundo. Começo o meu dia de modo bem tranquilo, em silêncio, busco me conectar primeiramente comigo mesma e, bem depois, com o restante do mundo. Nesta primeira fase, de conexão comigo mesma, estão presentes, na maior parte dos dias, fragmentos de frases, ideias e palavras, sons, ritmo, algo ainda embrionário que brotou ou se alimentou da noite, do sono ou até mesmo de um vazio – pois o vácuo é, paradoxalmente, um poderoso alimento. Sou atenta a sonhos e devaneios e gosto de ir tecendo aos poucos encadeamentos de sons e palavras, aos quais, quando posso, retorno, à tarde e noite, quando escrevo com mais volúpia, ritmo intenso, velocidade e muita aceleração. A tarde é um período muito bom para escrever, mas nem sempre é possível. A noite, com sua paz plena, é o tempo perfeito e pleno para a minha criação literária. Mas, geralmente, evito rotina. A liberdade se instaura a todo momento.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Estou certa de que trabalho melhor à noite. As tardes também são propícias. À noite, a paz surge com grande intensidade e fornece um tempo mais elástico para a criação, para a escrita. E, como estou sempre mais acesa à noite, meus vaga-lumes internos dançam mais freneticamente neste período. A intuição está mais aguçada. Os sons, as palavras, as sílabas e ideias se transmutam alquimicamente e geram surpresas. Penso que o sol do dia me alimenta também. Eu não tenho propriamente rituais preparatórios para escrever. Quando menina e até bem pouco tempo, gostava de ter à mão páginas de papel sulfite soltas, cadernos e lápis preto n.2. Eu sempre manuscrevia e sentia necessidade do lápis preto. A criação fluía melhor com o lápis, na juventude. Depois, com os deslocamentos da vida, o ritmo dos dias, comecei a manuscrever com caneta também. Desde 1993, aproximadamente, passei a criar muitas vezes diretamente na tela do microcomputador. E, atualmente, também na tela do celular. Escrevi diretamente no celular metade de um livro em 2019. Mas também continuo a manuscrever sempre, diariamente. Inclusive em guardanapos de restaurantes e notas fiscais de compras de lojas, quando a urgência pede. Gosto mais de criar poesia em manuscrito e páginas soltas, pois há atmosfera de maior liberdade, imprescindível para mim. Tenho cadernetas também, claro. Ao escrever narrativas, contos, resenhas ou ensaios críticos, gosto mais do micro. Para poesia visual, também prefiro o micro. Mas, para a maioria das obras – em poesia e prosa – há uma fase em que escrevo à mão e outra fase de digitação no computador, onde continuo a reescrever, fazer rasuras, fazer alterações, justaposições, supressões, inversões, substituições sintáticas e semânticas, entre outras. Foi exatamente o que ocorreu com meus livros “OS FIOS DO ANAGRAMA”(contos, RG Editores, 2016) e “ALQUIMIA DOS CÍRCULOS” (poemas, 2003, Escrituras). Cada obra nos pede um procedimento diferente. Algumas nos pedem música. E trabalho ouvindo música, geralmente instrumental, muitas vezes barroca ou renascentista. Outras vezes, MPB, samba-canção e bossa-nova. Ou jazz. Outras vezes, é necessário o silêncio. E há textos que nascem sem exigências, a fluir rapidamente, como alguns poemas, letras de música, contos. Todos estes procedimentos coexistem. Variam conforme a obra, conforme o dia, conforme meu estado de ânimo, que também se altera muito de uma estação do ano para outra.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo, sim, praticamente todos os dias, por sentir vontade. Mas a escrita flui muito melhor em períodos concentrados. Principalmente quando o projeto já está um pouco adiantado. Escrevi meu primeiro livro – que é um romance – ainda adolescente e o fiz em 40 ou 50 dias, com um longo intervalo no meio. Há outro livro, escrito em 2002, que, por ser um ensaio biográfico, exigiu vários meses de pesquisa e viagens, inclusive visitas a arquivos de jornais. Depois, ao me sentar em meu escritório para escrever, fiz o livro em 8 dias. 8 dias para escrever e dois meses para revisão. Para escrever contos ou romances, largo tudo o que existe no mundo e me concentro somente em escrever. Personagens entram em minha vida, conversam comigo, fazemos uma ciranda. A escrita da poesia é mais tranquila. Brotam fragmentos, figuras, conjuntos de palavras, que vou registrando em escrita manual, aos poucos. Até que o poema toma forma e a concentração se une à intuição. Fico inteira no poema: intuição e razão mobilizadas. E ele se faz. E há um grande prazer.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Nem sempre reúno notas antes de começar. Na maior parte das vezes, o começo é que me orienta sobre o que será necessário pesquisar. O começo me norteia. Nem sempre sei sobre o que vou escrever quando começo. As sequências de palavras e sons é que vão gerando necessidades de pesquisas. E as faço, quando necessárias, várias vezes, durante o processo da criação, em fases. Escrevendo é que descubro sobre o que estou falando. Escrever é redescobrir, a cada dia, o processo de escrita. E se conhecer. O de sempre. E um novo, que nasce e renasce a cada obra. Algumas características do processo de criação são inafastáveis. Outras são variáveis e se instauram e se incorporam quando favorecem a escritura de um projeto ou outro. Por isso, as pesquisas também possuem forma variável. Raramente se perfazem antes do início do texto. Salvo nos meus textos críticos. Como escrevo em vários gêneros (poesia, narrativa, contos, romance, pulsações, crítica, ensaio), há bastante diferença nos procedimentos de criação.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Acho que sou abençoada, porque aprendi cedo – e com a prática – algo muito importante: uma noite de bom sono me revigora em muita profundidade. Para tudo. Então, se algo não está fluindo como eu gostaria – por cansaço ou qualquer outra causa – interrompo o trabalho e durmo. Ou ouço música, que também me revigora instantaneamente. Ou toco meu violão. A procrastinação inexiste no meu trabalho criativo. Para ele, estou sempre pronta, disposta e feliz. O que ocorre é que a vida nos cobra muitas ações burocráticas sobre assuntos práticos e domésticos no cotidiano. Então, por vezes, temos de adiar o ato de escrever. Também desconheço medo ou ansiedade no meu processo de escrever. Se existirem, não se manifestam, felizmente, no plano consciente. Estão presentes em outros setores da vida. Mas, para o ato de escrever, me sinto sempre pronta e animada. Principalmente quando o projeto é de longa execução, pois me permite atravessar diferentes fases e esta travessia é enriquecedora e lúdica como a travessia de portais.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Em geral, uma a duas vezes, no mínimo, se for uma texto crítico. Mas dou um bom intervalo entre as revisões. Deixo descansar um tempo, um dia, dois dias. Se for um poema, um conto ou trecho de romance, preciso reler muitas vezes. Em voz alta. Para sentir o ritmo fluindo pela minha voz. Sempre há um reparo, uma alteraçãozinha que, por menor que seja, favorece a concisão. Gosto muito de pensar e sentir os elementos do texto como estrelas em galáxias ou peixes no fundo do mar. Órbitas. Unidade. Cardume. Liberdade. São estas as características que procuro. Na construção de meu livro “ENCADEAMENTOS” (poemas, 1988, Massao Ohno Editor), eu senti a necessidade de construir o livro no “chão” de minha casa. Fiquei vários dias com os fragmentos recortados sobre o carpete da sala até ter a certeza da sequência mais apropriada. Foi um processo muito belo, instigador, de liberdade. Faço isso ainda hoje, mas sem usar o cchão. Geralmente, não mostro. Mas gosto de ler em voz alta para duas ou três pessoas um ou outro poema. Já li um conto grande para amigos num almoço … rsrsrsrs
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Minha relação com a tecnologia, como já mencionei acima, é boa, é normal. Ainda manuscrevo muito, mas também redijo muito no computador, dependendo da natureza do projeto. Para minha poesia verbal, prefiro manuscrever. Para poesia visual ou narrativa, prefiro utilizar o computador ou o celular. Tento aproveitar o que posso da tecnologia, mas permaneço atenta para não me deixar viciar por ela. Procuro ter sempre em mente que a tecnologia é apenas um instrumento, como tantos outros de que já dispusemos e de que ainda dispomos.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
As ideias vêm de imagens ou sons. De pessoas, cores, cheiros, lugares, notícias. Sou muito sensível aos apelos visuais e a contemplação de águas, mares, rios, peixes, pássaros ativa intensamente minha intuição. Os procedimentos sensórios foram educados na infância com a grande quantidade de arte que eu consumia. É continuam sendo alimentados assim. De filmes, literatura, música, discos, concertos de orquestras sinfônicas, recitais de instrumentistas solistas, canto coral, espetáculos de balé, exposições de fotografia, artes plásticas e gráfica, teatro, viagens, caminhadas. Estou sempre em bienais de arte, festivais de cinema. Caminho, caminho e meus sentidos borbulham. Tenho necessidade constante de arte em minha vida. Mas não para escrever. Para viver. E a escrita é uma consequência, claro.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O que se mantém é a busca de concisão, a necessidade de concisão, a valorização dos espaços em branco, a valorização das entrelinhas e dos intervalos, a influência da música, a necessidade de um ritmo que seja adequado ao meu estado de ser. O que creio ter mudado é a aquisição de um maior grau de abertura para gêneros literários diferentes, que se fundem e interpenetram, por vezes. A liberdade aumentou. A intuição também. Diria que agradeço à jovem de outrora pelo comprometimento com a literatura, com a liberdade e com a linguagem. A invenção é o caminho.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Projetos novos tenho vários: alguns já estão a caminho. Tenho vontade de escrever uma peça de teatro. Já escrevi roteiros de cinema, de curta-metragem. Livro que gostaria de ler e que não existe seria a história completa de todas as palavras, com as linhas etimológicas transpostas, com a tradução, em vários idiomas, com o passeio das letras e das sílabas pelas árvores, pelos rios, cachoeiras e mares. A história de todas as palavras, sua origem, seu percurso, suas trilhas.