Beatriz Bajo é poeta, revisora, tradutora, diretora-geral da Rubra Cartoneira Editorial e professora de língua portuguesa e literatura.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo meu dia na correria de deixar tudo certo pra levar meu filho à escola pontualmente. Nessa rotina matinal não cabe nada que não seja café da manhã, roupas da escola, preparar almoço, escovar dentes… às vezes consigo fazer bicicleta, mas tá mais difícil porque estendo o tempo na cama, com este frio de agosto. (risos)
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Bem, há as obrigações e a escrita literária, que é outra coisa. Obrigações, cumpro-as durante o dia. Sobretudo, trabalho com projetos educacionais e necessito escrevê-los também. O que me sobram são as madrugadas… e algum momento em que preciso registrar versos ou ideias que me surgem. Não há ritual, há uma porta aberta no silêncio da noite que me convida a pensar, ler ou escrever.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Períodos concentrados. Não escrevo diariamente… seria bom que fosse assim, mas muitas vezes isso é impossível.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Tem sido cada vez mais difícil. Sempre escrevi, desde muito nova… e os poemas vinham inteiros, quase intactos. Hoje, com as experiências, leituras, bagagens, tudo se torna menos impulsivo. Pesquiso muito, cada palavra… investigo etimologias, simbologias… no entanto, existe um play que destrava tudo e saem os versos, ao fim.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Respeito muito o tempo nesse sentido (não sem me angustiar). Agora, com relação a medo de não correspondência, não o possuo. Não posso expressar o que sou ou o que penso e sinto e tentar agradar o outro ao mesmo tempo (digamos que me priorizo). Alguém há de se identificar, acredito. Essa avaliação de merecer o cenário editorial, deixo ao editor. Ansiedade: toda! (risos) É muito difícil pra mim, por exemplo, guardar as coisas que escrevo, tamanha necessidade de dividi-las. Talvez não tenha entrado em nenhum projeto longo por isso. É um exercício que me consome o de escrever e guardar, ou mesmo esperar. Como disse, respeito Cronos, com ressalvas, todavia. (risos)
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Leio diversas vezes, até não conseguir me distanciar e obnubilar tudo. Dou um tempo, leio novamente. Percebo outras nuances. Mostro sim, para pessoas nas quais confio, sinceras em suas críticas. É preciso alguém que pense muito diferente de mim para que a análise doa… depois, filtro o que me disseram com o que acho imprescindível. O escritor, incluo-me nisso, tende a endurecer em suas convicções quando o assunto é sua obra. Isso, na maior parte das vezes, cristaliza-a… é possível alguém fazer um julgamento que mereça atenção. Aconteceu comigo muitas vezes.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Mesclo. Rabisco muitas coisas em um caderno que deixo à mão, entre a cozinha e a sala. Vou registrando uma coisa ou outra. Se estiver deitada, uso o gravador de voz do celular. Às vezes, esqueço que escrevi ou gravei e descubro depois de algum tempo… nem sempre gosto. Escrevo muito também no notebook… invariavelmente, estou fazendo qualquer outra coisa e algo é descoberto na cabeça… surge um novo documento.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Sei lá. De conexões, pensamento-sentimento, sensações… sei que é algo mestiço, versicolor… representações de sonhos, vida coletiva e individual… que se atraem e se repelem em imagens apalavradas ou palavras imagéticas, algo que dança em amarrações de significados. Nunca pensei num conjunto de hábitos… aliás, essa ideia é bonita. Sei que na criação, mais bagagem é melhor. Quanto mais eu leio, ouço, vejo, escuto, beijo, abraço, choro, morro, ressuscito… melhor!
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O filtro. A passagem é mais estreita… bem mais. A experiência modifica a gente, sempre. Não posso escrever como antes de entrar na faculdade de letras, antes da especialização em literatura brasileira, antes de entrar numa sala de aula, antes de sofrer por paixões, antes de casar, antes de engravidar, antes do que eu sou hoje. Tudo é muito diferente e, por isso, a espera me incomoda… porque mudo… se muda, me angustio. Sempre sou eu outra… isso me interessa. Quem fuis, quem sous… (risos) “Seja sempre honesta consigo própria, dê tudo de si e saboreie sempre mais”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Pensei em três novos livros e não me decidi para onde ir. Estou gerando possibilidades de caminhar com algum deles ou nenhum ou todos de uma só vez. Mas tenho diversos projetos de maior projeção literária com poesia falada ou visual que ainda não se realizaram. Gosto da ideia de poemas musicados também. Já tive alguns poucos e gostei bastante. Sobre livros para ler… nossa! Se lesse todos os que gostaria e existem, já estaria bom… Os que ainda não escrevi.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
O início de cada projeto é distinto… uns foram planejados, outros foram coletâneas de poemas…acho mais interessante quando o projeto é idealizado, fica mais coeso.
O mais difícil é acertar o que se sente com o que se pensa e com o que se escreve…quando há confluência, parece deu certo. No entanto, já houve circunstâncias em que se pensava em algo e quando se escrevia, brotava outro sentimento (insuspeitado). Nessa ocasião, a coisa tornou-se extraordinariamente linda. Enfim, deixemos ao acaso.
Acho o recheio do livro e/ou do texto mais importante e difícil do que a primeira e a última frase.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Minha semana de trabalho é intensa e, normalmente, tenho vários projetos ao mesmo tempo, não necessariamente aplicáveis. Muito difícil debruçar-me em projetos literários nessa fase da minha vida, com filho pequeno… mas as coisas têm acontecido com um pouco mais de frequência agora. Sinto-me mais perto de mim do que antes.
O que motiva você como escritora? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Sempre o arrebatamento…ele é e/motivador de tudo na vida da gente e quando uso essa palavra, seu significado é extravagante: o assombro e os maravilhamentos. A escrita foi a minha primeira maneira (depois da dança e dos rabiscos) de demonstrar amor pelas pessoas e, posteriormente, de expressar-me como um ser humano sedento por respostas nunca sanadas. Acho que mergulho fundo nos subterrâneos da minha alma e também tenho necessidade de transbordar. Meu primeiro poema surgiu de um apaixonamento, aos 13 anos.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
Não tive tempo de para pensar em estilo próprio porque quase que comecei a escrever para depois ler e conhecer os extraordinários, os clássicos. Mas, aí, já possuía um estilo porque as pessoas que me liam, já me percebiam nos textos. Nesse sentido, não houve uma influência original. Mas, uma vez, um amigo me apresentou a Lispector e disse que eu gostaria porque escrevia parecido com o que ele havia lido dela. E foi um estouro a descoberta…devia ter entre 23 ou 24 anos…escrevi minha monografia da graduação sobre esse livro arrebatador: “Gotas de sangue de uma estátua urgente – uma análise lírica e porosa de ‘Água viva’, de Clarice Lispector”, de 2005.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
“Cem anos de solidão”, de Gabriel García Márquez, pela saga solitária de uma família, pela força da matriarca Úrsula e todas as fantasias fantásticas que se podem metonimizar pelas borboletas amarelas da aldeia fictícia de Macondo.
“Os irmãos Karamázov”, de Fiódor Dostoiévski, por todas as especulações e vidências geniais acerca de questões sócio-políticas, filosóficas, sobretudo, teológicas atribuídas a Mítia, Ivan e Aliócha. Esse livro é um magnífico!
“Sobre nossas línguas a carne das palavras”, de Beatriz Bajo, pela maturidade desse quarto livro em que as palavras dançam entre ritmo e som, numa busca estética pelo movimento das línguas como num beijo. Pela procura da antropofagia entre a gravidez e a grafia deslocadas e surpreendidas.