Bárbara Esmenia é poeta, curinga de Teatro das Oprimidas, editora da padê editorial e da Publicar al Sur (México).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Como trabalho em regime CLT 40h semanais, sim, há uma rotina. Nesse momento estou cursando Dramaturgia na SP Escola de Teatro, então pelas manhãs tenho esses encontros, depois trabalho até às 22h, o que sobra pouco tempo nesse momento para intensidades de escrita.
A rotina matinal é aquela de tomar banho, me ajeitar e tomar café da manhã antes de sair. Esse é de lei, não posso passar sem.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
No campo da escrita não há certo uma hora do dia que percebo trabalhar melhor. Depende muito do surgimento dos saltos para a escrita. Geralmente escrevo a partir de alguma frase que me intrigou. Que me veio à mente ou que li/vi em algum lugar. Às vezes não são frases, são palavras soltas. Ou até mesmo conceitos, temas. Gosto muito de pensar atentamente sobre significados e significantes das palavras, bem como sua etimologia e alterações de uso ao longo do tempo.
Quando isso bate, registro algo por escrito – por vezes no próprio bloco de anotações do celular, que é o que está mais fácil às mãos, para depois seguir trabalhando na escrita.
O ritual para mim é ter tempo possível de maquinar as palavras, de não precisar correr para o trabalho ou precisar dormir, essas coisas que interrompem o mergulho.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Gostaria de ter esse treino, digamos, de escrever um pouco todos os dias, como um exercício contínuo mesmo, tal qual as pessoas fazem em relação aos exercícios físicos. Porque realmente acredito que escrita também é treino, é exercício, é continuidade. Aqui não numa lógica de evolução, mas sim de uma autopercepção de seu processo em relação ao tempo, à maturidade do tempo, às transformações possíveis.
Considero muito interessante – e vez e outra faço isso – por exemplo, retomar um poema mais antigo e retrabalhá-lo, pensar o que manteria e o que seria alterado, excluído. Creio que esse é um exercício de passagem do tempo dos mais bonito. Olhar para o que você criou em tempos anteriores e repensá-los a partir do que você é hoje.
Isso não significa que será melhor, que o de agora é sempre melhor. Pensar isso seria acreditar na evolução, no desenvolvimento. Mas não. Para mim é não hierarquizar os escritos, reconhecê-los como possíveis e importantes de acordo com os tempos em que foram criados e, se há um exercício de reescrita, é pelo exercício em si, por autoconhecimento. Jamais como “ah, vou mudar isso aqui pois agora escrevo muito melhor”.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Acredito que para poesia nesse caso seja um pouco diferente. Nunca escrevi ficção, mas agora que começo os estudos de escrita dramatúrgica, percebo que há sim esse estudo anterior – porque, diferente da poesia, na dramaturgia você trabalha com personagens, então há essa negociação de saber quem são -, um certo amálgama de compreender um mínimo dessas criaturas, do que está querendo ser comunicado. E então começa a escrita. E aí mora o mais interessante, pois quando se vai para a escrita – aqui ainda estou falando do processo dramatúrgico -, a partir da materialização em palavras, em frases, em construção de cenários, você vai descobrindo muitas coisas. Porque personagens são ações e ganham uma certa vida própria na escrita.
Já com a poesia é totalmente diferente. A não ser que eu esteja trabalhando em um livro – e nesse caso, gosto de trabalhar com um tema ou um núcleo que conjugue toda a obra – não há essa mudança arbitrária na própria escrita. Ainda me parece que eu estou responsável pela condução das palavras. Talvez porque não haja personagens (risos). Personagens são, por si só, insubmissas. Que bom! (risos)
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Acredito que não ser “escritora/poeta por profissão”, digamos assim, me salva um pouco dessas preocupações. A mim me parece que essas preocupações estão atreladas ao fato de estarmos inserides numa sociedade de linha produtiva, uma sociedade capitalista que nos cobra que estejamos em produção todo o tempo. Se você não está produzindo, você é excluído disso que chamaram de civilização. Vejamos agora, em que estamos em período de quarentena. Há uma cobrança ferrenha por certa parcela da população para que o comércio siga aberto, para que mantenham as produções. E isso com a morte e sua imanência escancaradas em nossas caras. Veja, a pandemia tem agigantado os casos e as mortes, mas no discurso desses que clamam pela reabertura do comércio, o mote é que a economia, que é a produção, não pode parar. Nem com mortes isso pode ser parado, indicam.
Então com a escrita não quero ter esses compromissos. Porque ela é vida. Ela é companheira de vida, portanto sou atenta aos movimentos dela. A respeito, a deixo se retirar, sumir por uns tempos, voltar meses depois trôpega, confusa, um pouco perdida. Amar é isso, é liberdade. É deixar que se vá, que faça o que se queira. Eu a deixo. Ela poesia livre. Pleonasmo até dizer isso. E se ela quiser ela volta. Até agora ela sempre voltou (risos).
Sobre a pergunta se há trava de escrita, te digo que antes, sim, havia e me afligia, parecia que nunca mais conseguiria escrever novamente. Hoje não me aflige mais. Se há trava, sei que são sentidos abertos. Tempo de limpar o solo, germinar o terreno, colocar as sementes. Só lá na frente que crescerão os brotos. Escrever é ter consciência da passagem do tempo. Se você não tem isso, o ritmo frenético das máquinas te engolirá.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Quando começo um poema geralmente vou com ele até sentir que ficou possível. Eu poderia chamar isso de monogamia em série da escrita né? (risos). Já alguns não atingem o que busco logo em seu início de criação, então o coloco em quarentena (risos). Deixo-o de lado, salvo, descansando e somente o retomo tempos depois. Tempos depois aqui quer dizer alguns meses. Às vezes já chegou a ser mais de um ano. É o tempo dele, ele quem vai dizer, não posso interferir nisso.
Mas é bonito, porque quando sinto ser possível a retomada, rapidamente ele se refaz, concatena as ideias e encontro aquele ritmo que estava faltando (não consigo conceber poesia sem ritmo) e fica pronto.
Penso que os poemas estão aí para nos ensinar duas coisas no processo de escrita: ele não está atrelado ao tempo produtivo do capital, como mencionei na pergunta anterior, e também ele não dispõe de nascer quando queremos. Há palavras que ainda não conhecemos e esse poema precisa especificamente dela. Ou uma ideia, que ainda não chegou para mim. Então eu aguardo. Escrever poesia me ensina paciência.
Quanto a mostrar os trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los, praticamente todo poema que escrevo compartilho nas redes sociais. Não costumo guardá-los para o ineditismo em livro. Se ele já ganhou ritmo, me satisfez enquanto escrita, já vai para o mundo, intercambiar com as pessoas. Nisso, tenho um certo retorno. Há pessoas que comentam, que compartilham. Vou sentindo se dialoga, se há ecos, trocas.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Na maioria das vezes acabo escrevendo no bloco de notas do celular, que é o que tenho às mãos mais fácil. Depois disso, ou sigo no bloco de notas mesmo, a depender da disposição, ou vou para um caderno, onde posso riscar, transpor, recortar, fazer setas, linhas, muito mais livremente do que no computador. Além do que fica um certo registro artístico desse processo de criação. Acho bonito olhar para a folha de papel, o caderno, e observar o percurso feito até chegar numa escrita possível.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Muito interessante essa pergunta se há um conjunto de hábitos cultivados para se manter criativa. Me peguei pensando que a escrita, assim como a criatividade, são estímulos, então se pararmos, ao menos para mim, ela se vai. Entretanto estímulo pode ser qualquer coisa. Olhar para a xícara de chá todas as noites antes de dormir é um estímulo. Tomar banho é um estímulo. Ir ao mercado é um estímulo. Então o material disponível para criação está aí, basta estar viva.
Minhas ideias de escrita surgem desse cotidiano, de observar as coisas, de refletir sobre existências, desigualdades. Também vem muito de se pensar visibilidades, de marcar narrativas no tempo. São ideias surgidas do que desejei ler como referência quando criança/adolescente e até adulta e não tive isso. Então busco escrever sobre de modo a gerar referências para quem está vindo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Mudou bastante o compromisso comigo mesma. De reconhecer a escrita para além de uma possibilidade – o que já é bastante coisa – e entendê-la enquanto companheira de existência. Ela está ali, para quando eu queira com ela estar.
Quando comecei a escrever, bem lá atrás, na adolescência ainda, era apenas um escrever por desabafo, talvez. Algo como escrever o que se sente, uma ferramenta. Com o tempo, percebi que, para além de uma tecnologia de expressão, é, ainda, uma engenharia de questionamento estruturante, de deriva de letras – não apenas palavras -, de arma de luta política e possível de permanecer no tempo, na história. Nós morremos, mas nossas criações e lembranças permanecem.
Se eu pudesse voltar à escrita de meus primeiros textos, eu diria a mim mesma algo como: Bárbara Esmenia, só lá na frente você entenderá porque está fazendo isso agora. Apenas continue. Há um mundo a te abrir a partir de sua escrita, então não pare. Não se afobe, fique tranquila, mas apenas não pare. Caminhos abertos.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Não tenho nada tão evidenciado para mim mesma nesse momento, mas gostaria de seguir com um repertório de territórios latino-americanos, um pouco do que foi meu segundo livro “Tribadismo: mas não só – 13 poemas a la fancha + 17 gritos de Abya Yala”. Talvez pensando nessa geografia campesina, de alimentos, naturezas, forças matriarcas e territórios em disputa.
Agora quanto a um livro que eu gostaria de ler e ainda não existe… puxa, que última pergunta xeque-mate (risos). Pensei que talvez o livro que eu queira ler, ele até já exista, mas eu ainda não o descobri. Ou também talvez exista num idioma x que desconheço e dependo de alguma tradução para o português ou para o espanhol para alcançá-lo. Nesse momento só digo que não sei.