Baga Defente é poeta, editor & artista-etc.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Recebi estas perguntas há exatos 15 dias e somente esta noite parei para conhecê-las e me dedicar às mesmas. Relato isso pois foi justamente nessa manhã que rabisquei mentalmente o “poema chulo nº4”:
desperto levanto lavo meu rosto & cago tomo meu cappuccino & deixo o resto do dia a cargo do destino
É isso: acordo, me sento ao vaso enquanto leio alguma coisa, lavo o rosto, troco de roupa e vou para a cozinha tomar um cappuccino, cujo pó há anos eu mesmo preparo. Esse seria meu “default”, mas eventualmente elementos são acrescidos à estes momentos-chaves: quando meus filhos estão em casa (semana sim, semana não), eu os acordo para escola; desde que o este ano começou venho tentando me alongar pelas manhãs, utilizando vídeos no youtube para isso; quando sinto necessidade de mais saúde, tomo água com limão ou inhame com laranja, rego as plantas, arrumo alguma coisa no quintal e então vou para o cappuccino.
Normalmente, levo um bom tempo na mesa; quando estou sozinho gosto de ler durante as refeições. Nestes momentos, não checo ou respondo mensagens, nem confiro redes sociais — se for para perder tempo, que seja com algum joguinho besta, viciante e descartável. Assim, busco ter de uma a duas horas entre o despertar e começar minhas atividades do dia.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Na escrita autoral, sou um animal noturno, talvez uma coruja. A noite acolhe meus desconfortos de maneira mais carinhosa. Como desenvolvo uma série de outras atividades profissionais para tentar deixar os boletos em dia (e quando isso inclui a escrita ela costuma ser feita durante as horas de sol), é depois que ele se esconde e algumas missões estão cumpridas que eu tenho meu momento mais pessoal, onde a escrita se manifesta.
Sobre rituais, apesar de ser uma pessoa que se interessa bastante pelo lado oculto das coisas, na escrita meu processo não inclui grandes preparos; ou, melhor pensando, esse preparo é prévio: trabalhos encaminhados, crianças alimentadas e já na cama, um banho tomado… coisas assim. Feito isso, quando me sento para escrever, gosto de ter música — uma das minhas maiores, se não a maior, paixão; também gosto de beber algo, geralmente cerveja, ou uma taça de vinho (agora no verão, vou de sangria) e, quando possível, um cigarro de tabaco com haxixe. Essa seria minha trinca de ouro para a escrita. Mas ela também pode surgir em momentos totalmente distintos, como comentarei abaixo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo em períodos concentrados, durante blocos vitais de duração variada. Nunca trabalhei com metas diárias, quantidades de palavras ou similares, creio que por nunca ter me proposto a construir uma obra pré-traçada. Minha escrita, assim como todo meu fazer artístico — e, em grande parte, minha própria vida cotidiana — é processual, se constrói, descobre e desconstrói enquanto caminhamos.
Gosto de projetos que envolvem a escrita e possuem um cronograma externo, etapas de entrega ou similares, como no caso de roteiros que eventualmente escrevo. Gosto dos mergulhos nestes processos, mas isso acaba ocorrendo também nos meus momentos de escrita autoral; creio que é essa concentração temporal que me permite ir mais fundo nas minhas explorações, ainda que reconheça a validade e até mesmo deseje em algum momento experimentar um processo mais pré-definido, com “metas a cumprir”.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
É nesse processo que minha principal pesquisa/prática, a Poética do Acaso — isto é, a influência do aleatório, do não esperado ou controlável, no fazer artístico — se apresenta. Ao longo dos dias, vou coletando palavras, frases e ideias, anotando-as em caderninhos de bolso, papéis soltos ou no bloco de notas do telefone. Essas sementes são por mim colhidas nos lugares mais diversos: falas que escuto pela rua, imagens mentais que se formam, conversas que tenho em chats, letras de músicas, trechos de textos lidos, episódios de podcasts, enfim, qualquer fonte que me seja acessível eu estou me apropriando.
Dificilmente eu zero esse bloco de notas. Existem anotações que estão ali há anos e talvez eu nem as use um dia, mas gosto de mantê-las lá, por garantia. Outras, geralmente quando possuem uma origem comum (uma obra, um período pessoal, algum elo), costumam ser usadas em conjunto, num mesmo texto, ou numa série de.
Por fim, o que me faz abrir essas anotações costuma ser um desconforto. Nestes 20 anos de escrita, não devo ter escrito nem três poemas em estado de felicidade. Sim, também acho triste, talvez seja uma maldita herança romântica da qual tento, ainda sem sucesso, me desvencilhar. Esse desconforto geralmente tem uma causa emocional, muitas vezes de cunho afetivo-relacional, mas também pode vir, como se tornou frequente nos últimos anos, por causa da política ou questões sociais. Parece que, e isso vai soar clichê, mas (por isso mesmo) é pura verdade: parece que quando aquele sentimento, aquela impressão não cabe mais em mim, eu preciso sentar e colocar aquilo pra fora, pra organizar os sentimentos, pensamentos & afins.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
A minha escrita, em especial a poesia, é meu principal refúgio, é meu abrigo, meu bunker. Assim, é onde mais me exponho, onde revelo para mim mesmo aquilo que eu consigo acessar de mais verdadeiro. É minha terapia, meu ringue, é mata-virgem sem facão.
Por conta disso, não existe cobrança interna em “produzir”, nem grandes expectativas. Claro que dar um poema por concluído e soltá-lo nas redes sociais inclui uma busca por reconhecimento, likes & carícias no ego poético. Mas eu aprendi que é melhor criar galinhas do que expectativas, e que num mundo de vidas coloridas, corpos esculturais e muita gente criando e compartilhando coisas bacanas, mesmo dentro da minha bolha a repercussão do poema costuma ser inversamente proporcional à sua potência; qualquer pessoa que não possui milhares de seguidores e utiliza as redes sociais para mostrar seu trabalho artístico já se frustrou por ter sete vezes mais curtidas numa foto da própria fuça recém-acordada do que naquele trampo foda que você se dedicou pacas.
Hoje, após perceber que funciono por “fases”, a cobrança, apesar de existir, não tem grande peso sobre mim. Ano passado (2020), até finais de novembro eu tinha escrito três ou quatro poemas durante todo o ano; bastou tomar um pé na bunda para escrever um — modéstia às favas — potente quarteto de poemas durante dezembro e meados de janeiro. É chato perceber essa correlação, mas se a vida me dá limões, o melhor é fazer caipirinhas.
Sobre projetos longos de escrita autoral, como comentei acima, não costumo trabalhar assim. Quando percebo que tenho um volume de material suficiente para um possível livro eu começo a trabalhar sobre isso, revisando, mexendo, acrescendo, cortando, encontrando a ordem adequada dos textos, pensando no projeto gráfico, etc. até aquilo ganhar uma forma.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Gosto de deixar os textos descansarem, tipo pão. Passado um ou mais dias, eu retomo, leio, mexo e deixo. Depois volto, releio, remexo e sinto se está pronto ou ainda precisa crescer mais para ser novamente sovado. Um “poema padrão” leva de uma a três ou quatro semanas para ser declarado pronto e compartilhado, mas quando tenho essas imersões pontuais na escrita e sinto que o poema só se concretiza quando é solto no mundo, três a cinco dias são o suficiente. Ainda assim, tenho poemas nos quais trabalho há meses; outros estão lá, esperando para serem revividos e concluídos, há anos. E mesmo nos “prontos”, quando por algum motivo preciso ou resolvo relê-los, acabo fazendo pequenas alterações.
Já textos como artigos ou ensaios, exceto quando eles possuem algum vínculo forte e objetivo com alguma situação ou contexto temporal que traga sensação de “urgência”, eu acabo levando bem mais tempo; tenho alguns que eu gosto, mas que preciso concluir, juntando poeira digital há anos…
Sobre mostrar as prévias antes de publicá-los, costumo enviá-los para uma única pessoa, meu amigo e também poeta Alex Zani, editor da Fazia Poesia, revista onde concentro meus poemas. Desde que nos conhecemos, há cinco anos, começamos a construir essa troca, de um ler e comentar os textos do outro; como compartilhamos muito gostos e referências similares, mas divergimos em outros, essa troca é bem enriquecedora. Tanto que estou editando um novo livro meu — na verdade, uma reunião dos meus três primeiros livros, autopublicados em edições artesanais entre 2015 e 2016 — e o convidei para ser meu editor.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu gosto de tecnologia, em especial as obsoletas. Tenho curtas gravados em super-8, venho usando diversos materiais em VHS em novos trabalhos, gosto da sensação de datilografar na máquina de escrever e tenho um mimeógrafo esperando para ser usado. Gosto de sentir a tinta da caneta deslizando sobre o papel, eventualmente invento até de usar canetas-tinteiro. Parte das minhas anotações são manuscritas, parte digitada com os dedos, mas ainda assim costumo escrever direto no computador, pois gosto dos recursos e facilidades para experimentar diferentes composições que este meio me oferece.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
De forma místico-metafísica, eu diria que eu as capto no ar, do inconsciente coletivo, dos campos morfogenéticos e das infinitas frequências meta-informacionais que nos circundam.
De forma pragmática, eu diria que eu as capto no ar, do inconsciente coletivo, dos campos morfogenéticos e das infinitas frequências meta-informacionais que nos circundam, acrescentando também tudo aquilo que eu citei na quarta pergunta (conversas, cotidiano e cultura pop).
Se há um conjunto de hábitos que eu cultivo para me manter criativo é algo que nunca pensei a respeito. Acho que, por atuar em diversas áreas distintas que envolvem o uso da criatividade, por mais que bloqueios surjam e essa energia criativa sofra variações, ela de alguma forma se faz perene no meu cotidiano. Pensando agora, acho que ela é que, por me fazer buscar o contato constante com a Arte, de alguma forma me dá sustento anímico para atravessar os dias da melhor forma possível.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Hoje eu vejo três fases principais na minha escrita: os primeiros anos, com poemas mais pueris e formas convencionais. Depois, a fase mais experimental, da qual ainda hoje sinto dificuldades em separar potências de pirotecnias; e, por fim, a fase “adulta”, na qual me encontro hoje. Olhando superficialmente para as três, vejo que existe uma evidente progressão na minha escrita, assim como percebo a importância de cada uma delas na minha formação. Precisei da tradição para acessar a literatura, fiquei curioso e me identifiquei quando descobri as vanguardas e precisei de tempo e experiências de escrita & vida para compreender o que há para mim em cada uma delas (e de tudo mais que pude acessar do que existe por aí).
Até por isso, creio que a única sugestão que eu me daria se pudesse voltar àquele momento, seria escreva e leia mais. Por mais que eu tenha sido um grande leitor e tenha escrito com certa constância (em especial nessa tal “segunda fase”), se naquele momento eu tivesse a compressão do papel que a escrita viria a ter na minha vida, eu teria mergulhado ainda mais nesse universo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Meu maior sonho é ser um rockstar, mas como até a campainha desafina quando eu toco, eu saquei que não vai ser dessa vez. Ainda assim, quero criar canções e gravar um álbum. Venho pensando e explorando meios de começar a experimentar como isso se dará, mas sei que será um projeto de médio-longo prazo, paralelo a todos os outros.
Há algum tempo também venho elaborando, ainda num nível mental-embrionário, algo envolvendo escrita e algum tipo de esoterice, possivelmente astrologia, tarot ou umbanda. Ainda que esse tipo de material apareça com certa frequência nos meus escritos, gostaria de fazer algo mais “estruturado”, talvez algum tipo de interpretação/releitura desses universos simbólicos, possivelmente mesclando escrita e artes visuais. Mas, mais do que isso, gostaria de retomar e concluir a escrita de um romance iniciado há quase 15 anos, mas que há muitos encontra-se em stand by e percebo uma certa resistência ou dificuldade interna para seguir com isso.
Apesar de escrever primordialmente poesia, sou leitor de prosa e prefiro ler romances ou livros de contos do que poemas. E talvez resida nesse lugar o desejo e o receio de concretizar algo nessa linha, sendo este meu suposto romance o livro que eu mais gostaria de ler e ainda não existe.