Aurora Bernardini é escritora, tradutora, crítica literária e professora da Universidade de São Paulo.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Sim, tenho uma rotina matinal, no início do dia, por força do(s) sonho(s). E para vê-los, muita vez desperto (muito cedo, com o perdão de Bilac), pois, conforme se sabe, os sonhos desvanecem logo e é preciso lembrá-los para transformá-los em futuros contos (muitos me precederam: no Brasil, se não me engano, J.J. Veiga — alhures, Marina Tsvetáeva, que os considerava um presente dos céus). Quando não há sonho, tento compor um poema. Geralmente, durante umas duas horas, antes das obrigações do dia-a-dia.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Escrevo melhor de manhã. A cabeça está mais alerta, desanuviada. O máximo que me permito é um café. A escrita criativa não admite gravames nem ruídos.
(Isso não se deu, curiosamente, com a pintura. Quando pintava, acompanhava certas composições musicais, dava o equivalente pictórico delas. E procurava “sair de mim” – como dizia Eisenstein, há vários meios –; a exaltação produzia maravilhas inesperadas, inconscientes ou subconscientes, não sei bem).
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Para os contos ou poemas (diários) não tenho meta, a não ser a do tempo, já mencionada.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A pesquisa, quando referente a ensaios, é exaustiva e concluída antes da escrita.
Anoto a pesquisa manualmente, o mais meticulosamente possível (anoto, também, a página do livro de onde tirei a informação) em cadernos universitários que já lotam uma estante. Depois seleciono os elementos pesquisados em função da ideia (da tese) à qual quero chegar. Só vou ao computador para a redação final, onde dou forma e explicação pessoal ao que pesquisei, além de verificar o encadeamento das ideias e a focalização do essencial. (Aproveito para chamar atenção: a maioria dos jornalistas novatos perde esse foco, atrás de um exagero de exemplos pontuais que – segundo eles ou segundo algum manual de redação – deveria tornar o texto mais “ interessante”).
Já, a pesquisa para o romance é muito mais trabalhosa e difícil. Ali você deve, além de seu estilo pessoal, cuidar do estilo das diferentes personagens, estilo esse que não pode ser homogêneo, para ser vivo. (Em Tchékhov, cada personagem, mesmo nos contos, tem sua linguagem própria – pena que a tradução não o respeite) e, quanto ao conteúdo de cada episódio – quando não é reminiscência pessoal é fruto de pesquisa –, não se pode perder de vista a trama geral, que – paradoxalmente – vai se alargando por si só – mas não em desmesura. Um bom romance (a não ser o memorialístico) é muito mais difícil que um bom conto.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Para um projeto longo é necessário disciplina e tempo disponível. Quem não tem tempo livre e disciplina necessária para ficar sentado até a exaustão, que procure outro afazer.
Aliás, se você tem o estofo de escritor, à medida que você escreve, você se entusiasma, você se aquece, e escrever não pesa. (Isso ocorreu com a pintura, também). Você mesmo sente quando esgotou sua cota de imaginação (de criação) para aquela sessão, mas limites externos são prejudiciais.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
A revisão é rápida, pois se trata de manter o estilo convenientemente, não cometer passos falsos (coisa que – infelizmente – muitos tradutores cometem, traindo o “ tom” do original, que – na literatura – é fundamental. Exemplos abundam, mas… não é aqui o lugar de mostrá-los).
Estar pronto significa para mim “ser válido”, ou seja, ter valor, o que é realmente o xis da questão. Válido para quem? Para você, em primeiro lugar. No fundo, no fundo, você sente quando uma sua obra é boa ou não. Você, ao longo do tempo, elege leitores que tenham sua mesma sensibilidade e – eventualmente – pede a eles que lhe deem sua opinião. Mas essas opiniões podem variar radicalmente. Conselhos sim, podem ajudar, mas juízos muitas vezes, inibem.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
A tecnologia ajuda muito. Muitíssimo, diria. O material (a notação), porém, é recolhido manualmente.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Leio muito, obras de crítica, filosofia, história, arte (biografias), psicologia, e – se bem tratada – de ciência, também. Quando acho um bom crítico, um bom filósofo, um bom cientista, etc. fico feliz.
As ideias pululam, mas só as organizo quando me encomendam um artigo ou tenho que ministrar um curso. Quem gosta de ler nunca está só. Não sente tédio nem isolamento, ao contrário: sente que uma vida não basta.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Escrevo e me expresso com menor esforço. Nada refaria: cada idade tem as suas dominantes. Às vezes releio o que publiquei com pseudônimo (é um centésimo do que escrevi, sou muito crítica) e me surpreendo: até que isso era bom! Se posso dar um conselho, em fato de escrita “criativa”, nunca a deixe para amanhã; as ideias podem permanecer, mas a emoção (leia-se: excitação mental e sensorial) desaparece.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de escrever um livro que gostasse de ler. Já tenho dois começados: Foi assim que começou e Sigiloso desígnio, mas é difícil ir adiante. No momento meu tempo livre é limitado. (Isso pode ser uma desculpa…)
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
O projeto nasce de uma ou várias ideias que se concretizam. Começar é fácil, o problema é desenvolver e ,sim, terminar.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Não é que eu prefira, eu tenho sempre vários projetos que preenchem o dia e/ou que já vêm durando, todos juntos. EX.escrever poesia, traduzir poesia, continuar um romance, escrever continhos bilíngues e,naturalmente, ler vários textos.
O que motiva você como escritora? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Desde que ganhei um diário em branco, aos 12 anos, tenho escrito. Para valer, só vinte anos depois.Motivo? Como diz Rilke, é a vida QUE DESBORDA.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
Realmente, estilo próprio é aquele que todo mundo deve ter. É o que diferencia os indivíduos, conforme viu Bakhtin.Eu fui aperfeiçoando o meu, no sentido de privilegiar os momentos mais pessoais: são o que dá vida ao estilo. Todos os autores que leio e dos quais eu gosto acabam me influenciando, direta ou indiretamente.
Mas como dizia Gógol, o importante é que eles tragam alguma ideia mestra.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
1. Um livro de contos da Alice Munro que no original tem o título de Stories.Existe tradução em português. Há especialmente um conto onde aparece uma cabra metafísica, uma coisa excepcional. Seu estilo também é muito insólito.
2. O livro HOTEIS À BEIRA DA NOITE de Per Jonhs, autor brasileiro dos mais inteligentes, mas – por isso mesmo – esquecido, mesmo após sua morte numa cabana abandonada de Teresópolis. ( Conforme diz o prefaciador de um de seus livros,Milton Vargas, de quem recomendo Poesia e Verdade, os brasileiros se agastam com os inteligentes!). Admiro-o por sua inteligência, cultura, sensibilidade etc.
3. Qualquer livro de Andrea Camilleri, da série do delegado Salvo Montalbano.Só tem uma coisa: deve ser lido no original (a linguagem aqui se funde ao conteúdo) pois a tradução (que comecei a ler e abandonei) transforma uma obra de arte e em livro vulgar e de mau gosto. Tradução é uma arte : sem essa arte o livro morre.