Assis Furtado é escritor, autor de Morro da Dezembrada.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Leciono Língua Portuguesa e Literatura na Rede Pública Estadual (SP) e, devido à dependência do transporte público, acabo tendo, desde muito cedo pela manhã, que me concentrar no cumprimento desse compromisso. Acordo; faço meu asseio; tomo – há vinte anos – meu café coado, sem açúcar; como dois ovos, mexidos na manteiga, com torradas; às vezes uma fruta (via de regra mamão formosa, banana nanica ou, mais raramente, manga coração-de-boi); às vezes, também, granola com iogurte e goiabada. Deveria ocupar a primeira manhã com exercícios físicos – pratiquei boxe na juventude –, mas, em meio aos afazeres, acabei negligenciando essa prática. Pois bem, vamos à hipótese da situação ideal: acordar cedo, fazer o asseio, me alimentar, praticar exercícios e então passar pelo menos duas horas concentrado na escrita. Poesia: primeira e diariamente; leitura e pesquisa: quando convier (sempre convém) – e me deixar levar aonde quer que esta me conduza; depois, rascunhos, esboços e comentários – sempre. Se sair alguma coisa no final, ótimo. Consegui cumprir essa rotina ideal por alguns anos – entre 2010 e 2014, mais ou menos. Escrevi bastante naquela época. O Morro da Dezembrada (Araraquara: Ed. do Autor, 2015) surgiu assim. Sinto que aprimorei bastante a composição de poemas. Ainda há o que aprimorar. Li muita coisa. Mas meus problemas eram outros. Já resolvidos. O contexto mudou. Veio a pós-graduação. Aumentaram os convites para ministrar leituras, oficinas, bate-papos. Enfim, hoje em dia não mantenho a rotina ideal. Minha manhã deveria ser um mergulhar para dentro; encerrada num almoço com amigos, de preferência. A tarde e a noite, para fora.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Antes de mais nada, proponho uma reflexão sobre essa palavra: “trabalho”. Havia na Antiguidade um instrumento de tortura chamado tripalium, que deu origem àquela palavra. Há contratempos. Sempre há contratempos. Mas não considero minhas atividades uma tortura. Não considero mais. Reconheço que me sinto deveras desapontado ao conferir meus rendimentos – e aqui estou falando especificamente de dinheiro –, mas hoje me sinto satisfeito com o que faço. Já auferi rendas maiores no passado. Já recebi propostas de emprego para lá de tentadoras. Mas seria injusto me queixar da sobrevivência minimamente digna de que desfruto. Sinto que tenho, depois de trilhar sendas pedregosas, o privilégio de hoje poder substituir a palavra “trabalho” – com todas essas considerações que teci – por “vida”. Voltando agora ao assunto, me sinto mais produtivo pela manhã. Meu ritual: ler. Poesia. Abrir um livro ao acaso e ler a primeira coisa que vem. Em voz alta. Ela sempre fala comigo. Até de modo inspirador, algumas raras vezes. Mas a poesia sempre fala comigo. Quando não fala, procuro outro poema para ler em voz alta. É certo que isso corresponde àquela situação ideal que mencionei – mas a pergunta era sobre o ritual de preparação. É esse.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Voltamos novamente à situação ideal – sim: minha meta seria conseguir alcançar o máximo num período de pelo menos duas horas. Às vezes, três. Costumava acordar bem cedo antigamente, para dar conta. Umas 4h da manhã. Venho atualmente tentando aproveitar as brechas que os compromissos me concedem. Percurso do ônibus, janela de aula, saída para fumar um cigarro. O pouco tempo de que disponho nem sempre é suficiente. Na verdade, nunca é suficiente. Há de se cultivar disciplina. Abandonei a relação catártica: ela já não participa do cerne de minha composição há muito tempo. Muito tempo. Existe a catarse, sem dúvida. Mas valorizo muito mais o esmero da lapidação hoje em dia. Não busco mais o tom confessional: quero o resultado, de modo que o que escrevo diga algo a alguém. É preciso labor e muito empenho. Alguns criticam tal resolução. Amigos queridos, inclusive. Leitores. Considero com carinho, mas não me importo. Talvez isso volte um dia. Minha meta original era escrever tudo o que tinha para dizer e depois morrer. Mas sempre há algo para ser escrito – ainda que já se tenha escrito sobre tudo neste mundo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
De dentro para fora. Alguma experiência – boa ou ruim – mexeu comigo: vou perseguindo. Perseguindo, até chegar. O motivo do conto “Florïda” – que me levou à final do Mapa Cultural Paulista 2013/2014 – ficou me atormentando desde a primeira infância: um retrato dum tio-avô que morreu, ainda criança, em circunstâncias trágicas. Passei quase três anos batalhando para concluir “Severino” – meu último conto: embora já apresentado a alguns amigos e lido em alguns eventos literários, ainda inédito –: a história dum gato, que meu avô me contou. Veja que há a catarse; mas, ainda mais, há também o labor. Todos os contos do Morro da Dezembrada surgiram assim: alguma coisa que persegui. Apaixonado. Me entreguei. Certos assuntos exigem entrega maior. Mas o processo, mesmo, ele começa com papel e caneta. Caneta azul, para o rascunho; preta, para o texto final. Vou esboçando. Procuro palavras. Procuro cada palavra – e isso não é um exagero: coleciono dicionários e enciclopédias. Arranjei um dicionário de peixes para assistir meu romance – em andamento – “Cecília”. Este é um título provisório. Li tudo sobre a Revolução Federalista para escrever “A marcha” – romance que engavetei, pois estava sofrendo com pesadelos horríveis. Viajei para o Sul, visitei lugares, consultei acervos: pesquisei, mesmo. Mas a poesia é mais rápida. Nos versos, a palavra se transforma com maior facilidade. Na prosa, não. Tampouco no drama. Na poesia posso tratar o mesmo assunto várias vezes. A palavra dá voltas. O Caderno de poesia (Araraquara: Partesã, 2016) retrata bem esse processo. Considero a pesquisa parte da escrita. Se pesquiso, já estou escrevendo, portanto.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Lido mal. Anoto meus sonhos. Me embruteço. Faço listas de premissas – ideias que surgem para a composição em verso; prosa; drama. Elaboro listas de afazeres diários, semanais, mensais (que raramente cumpro, senão à última hora). Quanto à crônica, esta sai com mais celeridade: basta chegar o motivo, ela vem. Ela vem: o gênero acode. A análise ou a crítica literária, igualmente – já aqui, ajudam os prazos de entrega. Aquela limitação. Mas a composição – a composição –, esta é difícil. Exige muito. Demanda tempo. Dedicação. Nem sempre consigo elaborar os eventos que a instigam. Passam semanas; meses; anos. Acho que faz parte. Não sinto precisamente medo de corresponder a expectativas quaisquer – críticas, recebo de bom grado. Vejo importância nisso. Receio não ser sincero. Só isso. Em relação à ansiedade, ela é constante. É assim. Não sei o que seria um “projeto longo”: como disse, há coisas me atormentando há décadas. É assim.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso muitas vezes. Muitas vezes. Muitas. Tenho amigos habituados a comentarem meus textos – amigos muito queridos. Busco novas opiniões constantemente. Não há um número determinado de vezes ao qual me atenho para revisar minhas composições antes de considerá-las prontas: elas estarão prontas quando estiverem prontas e pronto. Tenho anotações guardadas há muito tempo, esperando a vez. Não me recordo, honestamente, de qual foi a última ocasião em que escrevi algo que já se manifestasse em estado de prontidão. É aquela coisa de “desconfiar da catarse”. Não acredito na poesia – e aqui me refiro à criação – “vomitada”, sobre a qual há muito entusiasmo envolvido. Entusiasmo até demais. Ela acontece; mas é preciso desconfiança – especialmente da parte do autor. Tenho muita coisa inacabada; muitos fragmentos. Publiquei, inclusive, poemas inacabados no Caderno de poesia. Uns poucos, mas publiquei. “O que não tem solução, solucionado está!” – dizia Dona Rose, minha mãe. Guardo muita coisa engavetada. Coisa envelhecendo no barril. Admito, sem vaidade, que apurei bastante meu estilo nos últimos anos. Mas há muito a caminhar. Isto, reconheço desde sempre.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo à caneta. Esferográfica. Azul, para rascunhos; preto, para textos finais. Minha marginália é sempre à lápis. Há anos não uso lapiseira – acho que esta foi uma moda dos anos noventa. Aponto meus lápis com estilete ou canivete. Tomo nota de quantas canetas se consumiram na composição de cada obra. Tenho canetas específicas para cada atividade: não uso as mesmas canetas para a composição, para o trabalho diário, para a sessão de autógrafos. Aliás, não uso esferográficas, mas canetas-tinteiro para autógrafos, diga-se de passagem. São especiais. Fiz um caderninho, envolto em dois pedaços de papelão, que carrego sempre no bolso: meu “caderno de poesia”. “Poesia”, no sentido de criação, mesmo; não necessariamente de “composição em versos”. São pouquíssimas as páginas em caneta preta, já que uso ele primordialmente para estudo, esboço e rascunho. Minha relação com a tecnologia, portanto, só acontece com o texto pronto: passo a limpo no computador, formatando nos moldes que me forem mais convenientes a cada ocasião. Gostaria de tornar a usar a máquina de escrever. Tive uma Remington há muito tempo atrás. Escangalhou. Já era. Faço alguns desenhos, esporadicamente. À caneta ou à lápis: isso é indiferente. Quando eles ficam bons, transponho para o nanquim. Muito raramente, também faço gravuras. Muito raramente mesmo. Um raro deleite: isento de pretensão por adentrar nas belas artes.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Mencionei meus hábitos matinais: volto agora aos hábitos vespertinos e noturnos. A convivência com as pessoas é fundamental para minha inspiração. A observação, a contemplação e a reflexão. Caminhar a esmo; encontrar amigos aleatoriamente pela rua; tomar um café; escutar; conversar – tudo isso, para mim, é extremamente necessário. Porque escrevo é para as pessoas: não é para mim. Se fosse para mim, nem precisaria escrever, certo? Daí a grande alegria de encerrar minhas manhãs almoçando com amigos. Conversando sobre qualquer coisa que seja. Ouvindo suas dores, seus sonhos, até mesmo suas baboseiras. Suas vozes. Quero transpor a realidade para o que escrevo – por isso o convívio é importantíssimo. Desejo imitar a realidade. Almejo encontrar a verdade – e sinto que só vou estar num caminho acertado se me dispuser a escutar as pessoas. A conhecer as histórias. Procuro me manter informado, também, do que acontece pelo mundo – embora isto esteja cada dia mais difícil, devido à proliferação das fake news. Prezo o convívio olho-no-olho, embora não descarte as conversas por meios virtuais. Gosto de viajar: passar umas temporadas alhures. Sempre volto a Araraquara – a cidade que cativou meu coração. Quero capturar o tempo. Quanto às ideias, elas são muitas. Muitas mesmo. Daí a gente torna à questão da rotina, já abordada anteriormente, com a qual preciso lidar. Minhas ideias vêm das coisas que me tocam. As pessoas me tocam – não sou só eu que tenho meus rompantes. Então encontro um motivo, uma ideia, um problema, e pesquiso. Palavra por palavra, pesquiso. Nem sempre saio ileso desse trajeto – muito pelo contrário! Mas é assim. Gosto de frequentar espetáculos de dança e de teatro, assim como de visitar exposições de belas artes – são experiências sempre muito inspiradoras! Quanto aos hábitos: quero viver. Creio que a criatividade venha da experiência. Da limitação. Das agruras. Per aspera ad astra, diziam os antigos – e os antigos eram sábios!
O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Diria: “escreva a verdade!”
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Venho já há algum tempo cultivando o hábito, muito salubre, de viver um dia de cada vez – por isso me soa esquisito falar em “projetos em projeção”. Mas considero viajar mais: viajar é sempre bom! Seja para onde for. Gostaria muito de poder recuperar aquela rotina ideal de composição, mencionada anteriormente; mas não me angustio mais com isso: já há angústia suficiente à disposição na lide diária. Gostaria de dispor de utensílios melhores de cozinha – gosto muito de cozinhar! Gostaria de poder receber amigos mais confortavelmente. Gostaria de reformar as minhas estantes: meus livros já estão se empilhando de novo pelos cantos da casa. Gostaria de consertar minha vitrola e voltar a escutar meus discos na proporção como escutava no passado – hoje em dia, mal consigo terminar o lado “A” e as válvulas esquentam, atrapalhando completamente a experiência. Gostaria de poder criar outra vez um cachorro. Gostaria de ter uma moto; um jipe; um Mustang. Gostaria de voltar a tocar violão do jeito que eu tocava antigamente. Quanto às minhas composições, elas vêm; se não vierem, não era para ser. Gostaria de reencontrar muita gente que passou; também reencontrar gente que está distante. Quanto às leituras, sempre me deparo com livros que não existiam antes – até mesmo nas releituras –, por isso este quesito, em verdade, não é nem tão difícil assim de ser atendido. Há muita coisa boa por aí. Porque há muita gente boa por aí. E é sobre isso que quero escrever. Quem é que vai escrever a nossa história?