Arthur Moura Campos é arteiro, poeta e designer formado em arquitetura pela USP.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Acordo meio estranho, sono, sonho e quando. Não como muito, tomo café. Quando estagiava trabalhava limpava a remela descia pro ônibus subia com pão na mão e outra mão na barra segurava engolia descia no ponto acendia cigarro descia ao subsolo e ligava o programa. No começo da pandemia voltei para Goiânia e acordava mais tarde fazia exercícios dia sim dia não, ajudava minha mãe com as coisas de casa almoço louça faxina, ajudava meu pai com coisas de obra levar brita pintar pregar placa. Desde metade de novembro estou em Belo Horizonte vivendo em um apartamento com meu namorado, ainda parece que acordo depois da hora. Dia sim dia não me exercito, varro o chão tomo café como pão. Tenho lido pouco, mas ainda leio.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Meu principal trabalho é design gráfico e aos poucos tenho começado a fazer projetos de arquitetura, para esses serviços que costumam render dinheiro mais regularmente, prefiro fazê-los à noite. Escrever, esse meio anti-trabalho, não costuma ter hora certa. Vem de frases que surgem e tenho de correr para escrevê-las no celular se não fogem, ou também de momentos que me concentro mais e depuro uma palavra-ideia-frase escrevendo à mão em um caderno que sempre tenho por perto. Gosto muito de escrever no papel, com canetas e letras o mais diferente possíveis. Ali a forma do texto vai se influenciando e direcionando o rumo das ideias, uma retroalimentação instantânea. A caneta vai desenhando a letra que vai escrevendo a palavra que vai indicando a ideia que vai falando a letra, o poema fermentando e crescendo. O que vem depois é expansão e reinvenção. Certamente o mesmo poema escrito à carvão ou em código binário não é o mesmo poema.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
A princípio não tenho metas de escrita, mas brincar com as palavras tornou-se um víciofício meu. Esses dias me xingaram na rua: poeta. “Sou fraco para elogios”. Tem tempos que escrevo mais, inclusive poemas longos que tomam semanas e meses. Ultimamente tenho escrito poemas curtos no meu celular e publicado no meu Instagram com a hashtag #denotas. Publico na disposição que aparecem no meu bloco de notas. Gosto dessa escrita ligeira, pois a concentração do jogo de palavras e letras fica mais intenso, como se fossem daquelas balinhas com saquinho de pó ácido que explodem na boca. Você engole e franze o cenho. Você engole e dá um riso. É um tipo de poema que faz sentido com o tempo de atenção dispersa e estilhaçada que temos vivido.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Escrevo em vários suportes conforme a hora que a ideia chega ou a forma como o poema se monta na minha cabeça. Sou um poeta meio exposto e gosto de colocar à vista meus textos para encontrar alguém que também está naquela sintonia. A lógica do acúmulo de textos para fazer um compilado de poemas segue muito a dinâmica do livro codex que, até pouco tempo atrás, precisava de um certo volume de páginas ou de tiragem para tornar-se economicamente viável. As zines, saraus, slams, blogs, tweets perverteram (no bom sentido) essa lógica de acesso ao poema/livro e isso afetou muito o fazer de cada poeta, dividindo o estádio num jogo falso entre puristas e modernosos. Gosto de ser inclusivo na minha categorização do que pode ser poesia/literatura. Mais poemas nas cestas básicas do que nas vitrines de cristal. Sobre a pesquisa, estar vivo é a maior pesquisa. O mundo já nos invade sem querermos e a nossa criatividade invade o mundo apesar do nosso controle. Escrever/dizer é um assentamento provisório desse turbilhão que muda freneticamente com o tempo. Vou inventando meus próprios novelos e embolando com os fios que estão nesse nosso texto coletivo.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Essa pergunta é o porão de cada escritor. Ali onde todo mundo tricota, conta piada e chora. Recomendo o vídeo da última entrevista da Clarice Lispector feita por Júlio Lerner como resposta. Quase no fim do vídeo ele pergunta se ela não renascia e se renovava a cada trabalho novo. Ela responde que estava morta, “vamos ver se eu renasço de novo, por enquanto eu tô morta. Tô falando de meu túmulo.” Faz parte desse mundo da expressão o desafio, a agonia, o medo, vem tudo. Principalmente nos momentos de compilação para uma publicação mais extensa, ou mesmo nos momentos antes de uma apresentação pública de texto. E tem seca no país da literatura, ainda bem. Sempre desconfio dos poços de petróleo infinitos.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Os textos mais curtos, como os do conjunto #denotas, tem um período de revisão pouco extenso e costumam girar em torno de jogos mais secos e diretos de palavra. Quando reúno poemas em livros, costumo enviar aos meus irmãos, amigas e amigos próximos para darem uma lida e enriquecerem um pouco da minha vista que já costuma estar um pouco viciada e enfastiada daquele conjunto. Talvez eu ainda seja um escritor jovem e afobado que tem pressa em ser lido, mas cada vez mais acredito na criação coletiva e “intromissiva” nos meus processos criativos. Tive a oportunidade de participar de dois grupos de criação literária que mantiveram grande parte do meu exercício vivo em 2020, o “Phalácia” conduzido pelo poeta Daniel Minconhi, e o curso “Vocacional de Literatura” conduzido pela poeta Anna Zêpa. Amigues amades que estão juntos nessa lida da arte. Vou aqui lançar alguns nomes para estender um pouco esse mar de inspirações, paideuma vivo que me cerca: Shima, Renato Negrão, Pedro Blanco, Eveline Sin, Marcelo da Silva Antunes, Aline Macedo, Zainne Lima da Silva, Marcelino Freire, Viviane Acre, Helimar Macedo, Cibely Zenari, Giovanni Venturini, Mazinho Souza, Dheyne Souza, Walacy Neto, Rosa das Neves, Viviane Mosé, Elisa Lucinda, Maira Mesquita, Danilo Lago, Tatiana Nascimento, Ana Martins Marques, Ana Maria Gonçalves, Fernanda Marra, Eugênia Fraietta, Dairan Lima, Giuseppe Mascena, Maria Pérola, Nelson Maca, Biocinha, Diogo Yamanishi, João Innecco, Caetano Romão, Luiza Romão, Mel Duarte, Luz Ribeiro, Fino d’Flow, Andersson Antonangelo, Marina Dúbia, Cidinha da Silva, André Vallias, Etcoetera.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
A maioria dos meus poemas são primeiro escritos em papel e depois digitados, mas a tempos tenho meu interesse criativo voltado para o uso das tecnologias digitais e interações virtuais do leitor com o texto. Meus primeiros canais de divulgação foram blogs. O primeiro blog, intitulado “Meu lado crônico e fulminante” foi deletado algum dia por vergonha da minha exposição adolescente, mal sabia que a tênia da poesia já estava instalada e continuei e continuo até hoje nessa saga. Os blogs voztinta.blogspot.com, wordinwar.tumblr.com e o 5into.tumblr.com são três repositórios de textos online que ainda guardo e gosto de hora ou outra revisitar. Dos trabalhos recentes todos têm algum envolvimento com o ambiente tecnológico. “5INTO”, meu penuúltimo livro lançado em 2019 pelo selo do burro, traz poemas que investigam os sentidos e sentimentos através desses tempos mediados por máquinas. Cada um dos seus capítulos foi impresso em uma das cores básicas das telas (RGB – vermelho, verde, azul). “SAÍDA”, meu último livro que lancei também em 2019 como autor-editor, navega através de imagens em perspectiva no interior de um edifício-poema. As palavras são inscritas nessa sua superfície virtual, que é lida conforme se explora seu interior. Recentemente tenho trabalhado em uma versão online interativa em que será possível entrar e ler/ver/ouvir esse poema. Em breve, cenas de 2021. E por fim “amar é ñ” é um filtro de stories do Instagram que desenvolvi em 2020 em parceria com o Shima. Clicando na tela você sorteia entre uma variedade de escritos uma definição (e uma antidefinição) de amor. Em tempos líquidos, os poemas e os sentimentos rodam acelerados.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Minhas ideias vêm de fora e vêm de dentro, mais precisamente do entre. Os livros, as músicas, as conversas, as imagens, os acidentes, as miudezas, as aulas, os saraus, as indignações, as lembranças, os sonhos, as comidas, os medos, as felicidades, os choros, os risos, tudo é fonte. O segredo está justamente na capacidade de ler esse fluxo que me chega e reinventá-lo com a minha percepção. Manter-me atento ao mundo e alimentar-me de arte tem sido a chave para crescer as ideias.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu acredito que a minha escrita é uma constante reinvenção do que eu já vivi, por mais que eu vá consolidando formatos diferentes de escrita e diversificando e ampliando a minha técnica, aquele mesmo impulso de expor uma voz que existe apesar do silêncio se mantém. O convívio com o meio literário me trouxe novas vozes e formas de se expor o pensamento. Noções estéticas e vivências diversas que me ajudam a tomar consciência das minhas escolhas, e me instigam a experimentar outras linguagens. O que eu diria para o meu eu mais novo: vá em mais saraus, frequente as rodas de escritores que te cercam. Percebi que o contato com poetas e suas formas de expressão foi o que realmente afetou o crescimento da minha escrita e apresentação. Fora a leitura de literatura que é esse infinito maravilhoso de sempre.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Os projetos que eu gosto de fazer em sua maioria já estão começados, o desafio é finalizar. Tenho composto músicas e cantado, é uma coisa que sempre quis e fiz, mas ainda não consolidei um formato bem acabado. Estou nesse processo. Também tem o poema online e interativo “SAÍDA” que está quase pronto, acho que vai ser bem interessante como proposta de linguagem e texto para esse nosso presente cada vez mais virtualizado. Difícil essa pergunta do livro que não existe, mas eu gostaria de ler um livro que explore todos nossos sentidos. Um livro comestível, com cheiros, texturas, sons, cores. Algo que desafie nossa percepção, e nos ajude a ler o mundo por inteiro.