Arthur Lungov é editor de poesia da Lavoura e autor de Luzes fortes, delírios urbanos (Patuá, 2016) e Corpos (inédito).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Tenho, apesar de jamais ter planejado uma. Levanto entre 7h e 7h30, tomo chá e como uma fatia de pão com manteiga. Não consigo comer muito de manhã, nem tomar café: esofagite ataca. Costumo ouvir música nessa refeição matinal. Nas últimas semanas ando ouvindo Speak no Evil (Wayne Shorter, 1966) todo dia.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
De manhã o sono dificulta, e de noite a concentração está prejudicada. Diria que a tarde é o período em que rendo mais. Depois do almoço e antes do jantar, entre a 13h e as 18h, mais ou menos.
Não tenho nenhum ritual específico para começar a escrever. Além de ligar o computador, me sento em algum lugar confortável. Gosto de escrever fora de casa. Ando frequentando muito o Sesc Paulista e o Instituto Moreira Salles. Normalmente de fones de ouvido, mesmo sem escutar nada. É meu amuleto de isolamento, de me retirar dos arredores.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Já escrevi todo dia, conscientemente, como modo de adquirir um hábito de escrita, mas cheguei à conclusão de que não era o modo mais eficiente de externar minha produção poética. Continuo prezando pela cotidianidade do ato de escrita, no sentido de ser algo com que me preocupo e em que penso no dia a dia, mas chegar às vias de fato, chego entre duas e três vezes por semana. Diria que minha escrita é relativamente dispersa. Raros os períodos de produção mais ou menos intensa.
Minha meta é semanal, ainda que jamais rígida ou calculada. Não estabeleço uma meta de poemas, versos ou estrofes mínimas semanais. Prezo a disciplina da escrita, o trabalho artesanal de me desdobrar constantemente sobre o que escrevo, inclusive em momentos de cumprir as burocracias da vida, como em deslocamentos pela cidade, mas creio que o tipo de pressão que esse tipo de padronização minuciosa gera seja contraproducente. O que me atento, sempre, é se estou mantendo essa produção cotidiana e dispersa de que falei, se ao longo da semana me dispus um tempo razoável e mínimo para produzir. Tenho uma meta, sim, para leitura: tento ao menos ler 70 páginas por dia, seja ficção, ensaio, poesia, contos, crítica literária etc.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meu processo de escrita parte sempre de um ponto já existente, seja um romance, um conto, um poema, um verso, uma canção ou uma cena de filme. Escrever é uma constante releitura das próprias referências, e por isso meu maior exercício de escrita, sempre, é absorver e pensar cultura, em especial a leitura. Minha escrita é um processo contínuo e simultâneo de pesquisa e produção. Essa percepção de escrita como releitura veio principalmente de T. S. Eliot. Quando li Terra Desolada (1922) fiquei alucinado. Fui obrigado a reavaliar tudo o que pensava sobre produzir poesia. De lá para cá, fico muito agradecido de tê-lo feito.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Nunca tive grandes problemas com travas de escrita e procrastinação. Em períodos de menor produção, intensifico minhas leituras, o que sempre me ajudou a desencantar as palavras. Não sinto qualquer culpa por produzir menos. A palavra poética necessita de um tempo de maturação que se descobre caso a caso: alguns poemas completam-se depois de alguns dias, outros depois de meses, anos ou jamais. A certeza que tenho é que qualquer palavra poética demandará, antes, de silêncio. A palavra “só fica pronta/depois de muito/muito muito/silêncio”, como já disse Tarso de Melo em Íntimo Desabrigo (2017). Silêncio este que nunca é paralisante, nunca renega o autor à passividade, mas apresenta-se como espaço hábil para que o poeta possa costurar soluções e possibilidades no texto.
Quanto à procrastinação, nunca tive problemas com ela. Tento me manter no estado constante de potencialidade poética que descrevi na pergunta anterior. Jamais me pego preso em outras tarefas antes de escrever. Escrever é muito mais interessante que lavar a louça, arrumar a casa, cortar as unhas, tomar banho etc.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
A revisão é constante e insistente. A parte mais dura de escrever é admitir que tudo que poderia ter sido feito com determinado texto já o foi, e que ele se mostra completo. É frustrante precisar admitir que as potencialidades de determinado poema já foram alcançadas. Mas a linguagem limita-nos e, se não nos acostumamos com isso, jamais escreveremos propriamente, mas tornaremos a própria escrita a procrastinação de si mesma. O que é assustador.
Estou, inclusive, penando nessa espiral de revisões em que me coloco, de tempos em tempos. Estou mexendo em alguns poemas de meu segundo livro inédito, intitulado Corpos, exploração poética do corpo humano enquanto símbolo, para lançá-los em duas plaquetes com ilustrações de Mariana Reyna e projeto editorial meu. O processo de escolha dos poemas a serem publicados, junto com a reinterpretação que as ilustrações implicam, me jogou de volta no ciclo de mudar os versos, as estrofes e os títulos continuamente. É obsessivo e destrutivo, mas eu estou adorando.
A poesia, para se completar, deve alcançar o outro, a palavra poética deve ser capaz de estabelecer diálogo com algo externo por meio de sua enunciação, como nos ensina Octavio Paz. Por isso, ser poeta é, antes de tudo, comunicar-se. Estando a poesia no campo semântico da coletividade, acho essencial que haja leituras prévias, com a emissão de opiniões, de preferência contrastantes entre si. Isso não apenas enquanto abstração teórica, mas para fins práticos: o olhar do poeta sempre é viciado, enviesado por seu próprio universo poético. É apenas o olhar do outro que permite perceber certos defeitos ou explorar certas potências escondidas nas entranhas do poema. Quem escreve poesia precisa dar a cara à tapa, ou corre o risco de montar um diário. Meus melhores leitores são também os mais sádicos e cruéis: André Balbo e Lucas Verzola, colegas editores da Lavoura, que não possuem o menor pudor em apontar aquilo que não presta. E elogiar o que está bom, também.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Muito boa. O meio principal de escrita sempre é o computador, no Word, mesmo. O celular, em momentos em que estou na rua e preciso urgentemente registrar algo que me veio, mas não gosto de usá-lo muito porque, por experiência, descobri que o que está no celular é mais frágil do que o que está no computador. Assaltos, acidentes etc. Não sou muito de escrever poemas à mão. Raro fazê-lo. O único registro caligráfico constante que mantenho são meus cadernos com anotações sobre os livros que leio. Não sei por que escolhi cadernos, e não um arquivo digital para registrar minhas impressões de leitura. Talvez as considere mais bastardas que meus poemas? Parece pano de manga para psicanalista. Contento-me na ignorância.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Como já mencionado, minhas ideias invariavelmente vêm da memória cultural que formo ao longo dos anos, como consumidor de livros, filmes, músicas, peças etc. Principalmente pela leitura constante. Se fosse citar referências poéticas mais óbvias, por virem de poetas, diria Murilo Mendes, Allen Ginsberg, Manuel Bandeira, Lawrence Ferlinghetti, Pier Paolo Pasolini, T.S. Eliot, Ana Cristina César, Roberto Piva, Apollinaire e Walt Whitman. A obra dramática de Samuel Beckett também me impressionou profundamente, e influenciou minha poesia.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Maior maturidade, em especial quanto ao que significa escrever poesia. Deixei aos poucos de lado minhas aspirações românticas para perseguir objetivos mais concretos. Entendi que poesia envolve uma grande dose de artesanato, trabalho duro e leitura.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de escrever um livro de poesia que incluísse em sua forma os ritmos de jazz com que me acostumei. Um livro de poesia que partisse de meus discos favoritos, e fizesse jus ao talento dos músicos que admiro. Tudo muito vago, imprevisível, atmosférico. Como Coltrane em Impressions (1963).