Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy é livre docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu acordo cedo, isto é, por volta das cinco e meia da manhã. É a melhor hora do dia para escrever. As ideias brotam sem o peso das preocupações rotineiras e há uma disponibilidade intelectual menos comprometida com as sensações e preocupações que se desdobram ao longo do dia. O silêncio e a pouca luz natural estimulam a reflexão. A sensação de que se produz enquanto boa parte das pessoas ainda dorme é estimulante.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Pela manhã, bem cedinho. No entanto, há uma competição entre a dedicação para a construção de textos e a prática do piano. O piano exige um estudo metódico e concentrado, que me parece mais propício bem cedo. Entre o piano e o computador, evito me comportar como o asno de Buridan, que com fome e sede, de fome e de sede morreu, porque não sabia optar entre a feno e a água. Um dos dois perde, e o fator decisivo é a pressão. Recentemente, na construção de uma biografia de Tobias Barreto, deixei sempre o piano para mais tarde.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo no contexto de uma meta definida, ainda que produza vários textos, simultaneamente. Não escrevo ficção há mais de vinte anos. Em meados da década de 1990 dedicava-me a escrever contos, publicando alguns deles e participando de alguns concursos, que eram muitos na época. Hoje, escrevo ensaios, artigos e textos mais longos, em forma de livros. Também redijo pareceres jurídicos. Esses, no entanto, são redigidos ao longo da tarde, em ambiente burocrático, com propósitos muito definidos, sem liberdade criativa. Há uma meta, uma finalidade, um argumento, que dão os contornos para o texto produzido. Escrevo na medida em que as pesquisas apresentam resultados e na medida em que há prazos e pressões. Leciono em programas de mestrado e de doutorado, onde a exigência para a publicação de artigos é muito forte. Há inegavelmente uma perda de qualidade, dado o fato de que a condição de empregabilidade decorre diretamente de quantos artigos foram publicados em revistas reconhecidas como canônicas. Como colunista da revista Consultor Jurídico produzo um artigo semanal sobre temas de cultura; a coluna se chama Embargos Culturais. Essa atividade não é remunerada, porém é fascinante porque trato de livros e de temas literários, para um público substancialmente jurídico. Por outro lado, o compromisso semanal agudiza a experiência, e os textos ficam prontos e limados no limite do tempo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Depende muito do tema e das condições que envolvem a pesquisa prévia. Exemplifico com a biografia intelectual de Tobias Barreto, que recentemente concluí. Ao longo de dois anos coletei todas as referências jornalísticas feitas a Tobias, entre os anos de 1860 a 1890, um ano depois de sua morte. A Biblioteca Nacional disponibiliza boa parte do material online, o que facilita a empreitada. As referências a Tobias foram sistematizadas, comparadas, copiadas, com o cuidado da transcrição para a ortografia contemporânea. Em seguida listei um modo de usá-las, como citações diretas ou como pano de fundo para parte da narrativa, com as respectivas notas de rodapé. O texto foi montado em seguida, a partir dessas referências de jornal. Na segunda parte, listei a biblioteca alemã de Tobias, comparando os livros com edições idênticas do Instituto Max Planck em Frankfurt. Com as anotações feitas à mão, o processo de redação foi rápido. Para mim, a passagem da pesquisa para a escrita é o ponto culminante do processo, no qual a atividade torna-se mais prazerosa.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Essa ansiedade é parte do processo. Ao longo da maturação de uma ideia, alguns projetos são abandonados, ressuscitando muito tempo depois. Creio que há um currículo oculto, composto de ideias apreendidas nas leituras e na observação do mundo (o livro do mundo, na expressão de Descartes) que surgem repentinamente ou mesmo que se escondem, também repentinamente. Projetos longos são os mais excitantes, exatamente porque os resultados não são os inicialmente esperados.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Tantas, e muitas, e tantas, e muitas. Há poucos interlocutores que incomodo com meus textos. O tempo de todos é hoje raro e valioso, e tenho receio em incomodar. Assim, no mais das vezes, os textos que reviso não são compartilhados até a publicação.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Direto no computador, ainda que tenha notas à mão e ideias na cabeça.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
As ideias vêm das leituras, algumas feitas há muito tempo, perdidas na memória passiva e da leitura do livro do mundo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Creio que hoje escrevo com mais simplicidade. Agradam-me mais as frases curtas. Eu escreveria uma tese mais leve, mas é o que podia fazer na época (ano de 2002). Escrevi sobre historiografia jurídica, argumentando que a história do direito é um guarda-roupa no qual serve qualquer fantasia. É contexto, e não descrição, que não se consegue fazer. Como ponto de referência tentei reproduzir a forma romântica como se construiu o passado clássico, especialmente o passado grego. Por que livros de direito, que tratam de assuntos tão específicos, como agravo de instrumento, contam em suas capas com a reprodução das colunas clássicas?
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu quero escrever uma história da literatura jurídica brasileira. Assim como há várias histórias da literatura, gostaria de apresentar um cânon dos autores brasileiros que trataram dos temas jurídicos. O esforço demanda anos. Estou tentando.