Armando Martinelli é escritor e jornalista.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Os primeiros passos são no automático, naquele desligar dos sonhos à contragosto. Normalmente, se a chuva não deu o ar matinal, começo a jornada levando os cães para passear. Mas, realmente, como eu começo o dia é no chavão do primeiro gole de café, que ficou em preparação, perfumando o retorno a casa.
Rotina é uma palavra-chave em meu dia. Se não me organizo, com a criação de listas, (antes na agenda, hoje no celular), corro o risco de ficar perdido entre pensamentos, misturados ao ócio criativo e uma bela dose de procrastinação. Sou mestre em procrastinação cultural. Inclusive, aproveito para me desculpar contigo, José, pela demora em retornar a entrevista. Nesse ano em que estive envolvido com uma tese acadêmica, meus respiros poéticos foram mínimos. Assim, necessito de um controle interno para que os devaneios possam aterrissar. Além de organizar as tarefas cotidianas, elencá-las (infelizmente) de acordo com a prioridade do sobreviver, procuro, sempre que possível, separar um tempo para a leitura/escrita. Nesse oásis deságuam as ideias, inspirações, cenas observadas na rua, filmes, noticiário, canções, enfim, pousam os afetos armazenados no organismo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Pela manhã, entre 10h e 12h, e a noite, entre 19h e 23h. Ao trabalhar em casa procuro criar os espaços dedicados à escrita. Mas, nem sempre funcionam, e tudo bem. Já escrevi nas horas livres dentro de uma empresa, na biblioteca entre o trocar de leituras acadêmicas. O meu ritual, mais do que o horário, está condicionado ao separar aquele momento só para escrever. Costumo ser muito ansioso, então, desligar os alarmes internos é o mais importante, assim como blindar telefone, campainhas, sons rompantes a perturbar a harmonia dos barulhos já enturmados. Gosto de respirar um pouco antes, esvaziar os ruídos da mente, e escrevo ouvindo música, seja para amenizar os sons externos, como, especialmente, pulsar no ritmo. MPB sempre inspira, as vezes um jazz instrumental, depende do dia. Vou do bom rock à trilha de piano clássico (Chopin é tiro certo), tambores ancestrais, o importante é o ritmo. Minhas palavras gostam de ser embaladas, de convites para dançar. Sou cada vez mais caseiro (antes mesmo da pandemia), por isso, as horas da escrita são deleite. Gosto de construir o ambiente, mergulhar no prazer de me liberar da agitação terrena. Escrever é adentrar uma fresta, seguir aquela luz até dissipar de vez a realidade. É revisitar esse vicioso mundo paralelo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Depende muito das combinações externas. Diria que em condições atmosféricas ideais escreveria entre cerca de seis horas diárias, intercaladas em duas sentadas. Mas, essas condições são raras, infelizmente. Por isso, a escrita vive dos sossegos, das pausas que o pagador de contas encontra no dia a dia. A pausa é essencial como ponto de desembarque. Diria mais, é o antídoto desses tempos cada vez mais destemperados. Estamos circundados por mecanismos que nos acionam, nos imputam seguir em ritmo frenético, agilizar respostas, entregas, contatos. O sistema nos cobra agilidade, eficiência, força. Salve a pausa, que ressalta o abismo de uma vida sem pausa. Salve os seres lentos, vagarosos de nascença. Salve Manoel de Barros.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Prefiro escrever com o que tenho. Seguir a pesquisa e escrita em consonância. Durante a escrita surgem novas dúvidas, inquietações que movem novas pesquisas. Gosto de deixar fluir uma quantidade boa de pensamentos, correnteza livre. Depois, volto e reviro o escrito na busca de conexões, equívocos. Não penso na forma enquanto escrevo, só depois verifico se aquele texto se enquadra melhor em alguma caixa. Procuro, como já dito, valorizar o ritmo.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Escrevo, principalmente, como meu refúgio, minha forma de buscar forças perante às adversidades da vida. Não parto da premissa do agradar o olhar alheio, no sentido de buscar formas e conteúdos mais aceitos. Na vida somos cobrados a corresponder com expectativas demais. A expectativa é a fonte das angústias e ansiedades. Não cobro minhas palavras, não busco que elas sejam reverenciadas, atinjam graus de aprovação. Gosto delas livres para serem o que são. É óbvio que quando recebo retornos sobre meus textos, pessoas que os interpretam das mais variadas maneiras, acredito que a atividade se completa. Afinal, a literatura, a poesia, é feita para se multiplicar. Quando as soltamos no universo, seu pouso, sua conexão como leitor vira um novo poema. Essa é a beleza maior do encontro.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Não sou muito de revisá-los, em um primeiro momento. As vezes posto nas redes sociais e depois vou relê-los. Quando penso em agrupá-los, aí sim faço revisões mais minuciosas, e aciono uma rede de amigos mais próximos.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Não sou um ser dos mais tecnológicos, mas, confesso, o celular substituiu o bloco de anotações. Como o celular está quase sempre próximo a mão, sua utilização nesse sentido gerou uma facilidade. No bloco de notas do aparelho escrevo frases, cenas vistas ou imaginadas, diálogos saídos do nada.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Sou um observador. Gosto de captar reações, possíveis diálogos, inquietações nas pessoas e/ou cenas que atravessam meu olhar. Adoro cinema, uma fonte de inspiração contínua, assim como canções e o noticiário. Mas, no noticiário estou sempre em busca das informações sobre as pessoas, análises e críticas culturais. Passo longe do universo financeiro, das armadilhas do sistema. Prefiro começar o dia em paz.
Acima de tudo, as ideias vêm do espaço dedicado as ideias. O melhor hábito para me manter criativo é separar o tempo só para a escrita. É estar diante da tela olhando, apreciando o tempo dedicado a explorar o nada. Nesse sentido, definir horários me ajuda bastante. Parece que a fonte do nada se torna mais pontual.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Basicamente, a necessidade de querer explicar os textos. Aquele uso a mais de palavras e frases que não auxiliam na liberdade de voo. Eu diria “deixe de escrever buscando os sentidos. Deixe o sentido te buscar, deixe os sentidos livres para conectarem outros leitores”. No resto, penso que os primeiros textos são uma linda recordação sobre a passagem do tempo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Nossa, muitos projetos. Tenho uma autoficção sobre a vinda dos meus avós ao Brasil, além disso quero muito trabalhar em parceria com poetas, compositores. Penso em escrever para teatro, cinema, enfim, seguir experimentando a linguagem artística.
Gostaria de ler mais livros que me provocassem a mesma reação de quando li a Metamorfose de Kafka, ou os poemas de Manoel de Barros, Wislawa Zymborska etc. Obras que me modificaram a capacidade de ser afetado, me instauraram uma nova realidade diante das palavras. Com certeza, eles estão por aí, e não vejo a hora de lê-los.