Árizla Ismália é estudante de geografia, poeta, compositora e educadora popular.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Há dias em que começar é um grande esforço (risos). Mas geralmente parto das coisas essenciais: cuidar de mim, de quem mora comigo, deixar as coisas minimamente estáveis e organizadas, preparar a comida e regar as plantas. É uma forma de não desandar.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Durante o dia tento prosseguir com as tarefas que me são urgentes, geralmente voltadas ao trabalho ou cumprimento de prazos. É a noite que me volto para aquilo que crio, não só intelectualmente, como liricamente. Sinto que ao fim do dia os acúmulos estão mais latentes, talvez tenha haver com a minha perseguição pela experiência, que sempre antecede as palavras. Preciso antes acontecer, ou que algo aconteça e me atenha, de tal forma que traduzir o que me atravessa seja inevitável. Da mesma forma com o trabalho intelectual, os fenômenos emergem do dia, a noite, na escuridão (literalmente rs), posso analisa-los em silêncio. É assim que as coisas começam. Um pouco na contra-mão, mas é a noite, depois de atravessar o dia, que tenho mais lucidez. Assim não tenho exatamente um ritual, se não me dedicar a experiência, a observação, a escuta, e o contato com a realidade, e na medida em que estou, as coisas vão se subjetivando e ganhando necessidade de palavra, de serem ditas, para então serem expostas, compartilhadas. Parte de algo que observo, escuto, penso ou sinto que não pode ficar somente comigo, aprisionado na minha visão ou sensibilidade. Portanto, escrever é uma forma de libertar a realidade que se apossou de mim, e devolvê-la para o mundo em palavras, símbolos, de forma refletida.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Nem sempre consigo sintetizar uma poesia, um ensaio ou uma prosa, mas tenho um caderno de notas que constantemente é alimentado. O que penso, elaboro, escuto vai parar lá, as vezes em pequenas frases, as vezes em textos maiores, depende do quão importante foi captar aquele momento/reflexão. Costumo anotar também trechos dos livros que leio, mesmo os teóricos, em que encontro matéria para construir, não só análises, mas metáforas. É quase como um “isso dá uma poesia, futuramente, quem sabe”. E vou acumulando.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Vou tomando notas, até que num dado momento, me vem a necessidade do corte e da síntese. É quando então releio, separo, desfaço aquilo que acumulei, e vou tentando transformar em poesia ou ensaio. É difícil começar porque exige desapego, e uma precisão de posicionar as palavras nos momentos certos do texto ou da sequência de poemas como um todo, tomar cuidado para não repetir ideias, conceitos e relações, pois é sempre um exercício de inaugurar uma nova percepção. Nem sempre consigo, mas é um exercício que em várias tentativas me renderam poemas que tenho profundo apreço por tê-los escrito. A pesquisa teórica, seja na poesia ou em outros temas que me dedico, são as minhas tendências de pensamento, onde os conceitos me despertam um “olhar mais uma vez” para a realidade e encontrar maneiras de dizê-la a partir desta nova perspectiva.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
As vezes isso me angustia, o medo de perder as palavras, ou então o medo de não ser mais afetada por nada, de modo que, eu não sinta mais a necessidade de escrever. Mas nas vezes em que isso me aconteceu, períodos longos de maior pragmatismo e objetividade, me acalmei entendendo que estava entregue a uma experiência, tarefa ou propósito que demandava de mim atenção. Essa calma e respiro sempre sucederam bem, porque ao fim desses processos, eu sentia em mim, no corpo, na memória, a história em carne-viva se acumulando, o que rendia algumas reflexões, palavras, e lágrimas também (rs). A questão é entender que estar na realidade, na prática, é só um outro momento da escrita e da pesquisa, necessários para depois haver motivos para tomar distância, ver de longe, re-visar o que já foi visado, sentido, pensado, ouvido. Ou seja, o que mais me preocupa é não estar acontecendo, e não a ausência de escrita.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Muitas vezes pois sou extremamente insegura. Eu releio tantas vezes que o texto passa a perder sentido para mim, e então nesses momentos corro o risco de descarta-lo. Depois de ter feito o Curso de Preparação de Escritores, pela Casa das Rosas, tenho tentando ter o hábito de partilhar com pessoas de confiança, geralmente amigos que também escrevem, e com isso ter outra leitura que não a minha. Mas publico pouquíssimas vezes, ainda não encontrei a plataforma exata para isso. Alguns poucos já publiquei em redes sociais, mas não gosto deste formato. Ainda estou pensando a plataforma que melhor consigo trabalhar meus poemas, acredito que o livro ainda seja minha principal meta.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu uso os dois. Quando a ideia me vem com intensidade, utilizo o computador por me permitir agilidade. Quando passo para o papel, inicio outro movimento, mais laboral, de cortar, re-escrever. De todo modo mantenho o papel porque preciso da materialidade do caderno, da página abarrotada de grafite e riscos. O computador não me permite ver o processo.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Elas partem de muitos lugares. As vezes da leitura e da pesquisa, onde um conceito novo me desperta maneiras de relacionar as coisas e a vida das coisas. No processo de viver, e principalmente dos atravessamentos, daquilo que me ocupa, sejam as pessoas, os lugares, um pensamento, uma dor ou alegria. Também, outro hábito que mantenho, é o de captar frases que retiro de conversas. Detalhes no geral são a semente de onde germinam meus poemas.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Com certeza o rigor e o compromisso com a escrita. Antes eu escrevia de forma espontânea, aleatória e subjetiva. A espontaneidade ainda me é importante, algumas coisas são de fato autênticas, mas acho que hoje busco um rigor maior, sobretudo, em sair de mim mesma, partir para o mundo, em traduzir aquilo que está silenciado no cotidiano. Daí o compromisso com a escrita, de entende-la como um esforço, um trabalho de amadurecimento. E se pudesse retornar ao momento em que escrevi meus primeiros textos diria a mim mesma que tivesse paciência, cuidado e sigilo. Paciência porque as coisas não estão acabadas, cuidado porque talvez não seja aquilo ou daquela forma que eu queira dizer, e sigilo para não expor de forma precipitada algo que não estou consciente do inacabamento.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho acumulado muitos textos e poesias acerca da experiência, do vivido, daquilo que nos acontece e nos transforma. E também motivada pelas leituras de Benjamin, Paulo Freire, Jorge Larrosa e outros que me despertaram a vontade de estar imersa no acontecimento do tempo, no inacabamento do sujeito, na precariedade da condição humana, e o que nos leva a estar coletivamente significando a vida e a inventando. Tenho a pretensão de reuni-los e trabalha-los como uma obra. Este é um projeto pessoal que ainda não iniciei. Mas, um livro que gostaria de ler e não existe, certamente uma história de amor não-romântica (rs). Bobo, não? Precisamos encontrar na literatura referências de amor que não se enclausuram nas frustrantes expectativas românticas, mas que se fazem na amizade, na companhia, na indefinição mesma dos laços humanos.