Antônio Carlos Miguel é jornalista especializado em música desde meados dos anos 1970, ainda não sabe bem o que é.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Minha rotina foi bastante alterada nos últimos meses. Jornalista desempregado nos últimos três anos, mas, com alguns frilas em minha área de atuação e ainda recursos que me botam entre os privilegiados, posso jogar conforme a música. Quando tenho encomendas – textos esparsos para algumas publicações, press-releases, livros colaborativos -, a manhã é sempre o horário que prefiro.
Em outubro passado, comecei a digitalizar fotografias de personagens da música que cliquei entre os anos 1975 e 88 e postá-las no Facebook. Projeto de um livro e uma exposição – de Cartola a Ray Charles, de Clementina a Miles Davis, de Nelson Cavaquinho a Charles Mingus, dos Doces Bárbaros a Renato Russo, de Weather Report a Egberto Gismonti, etc. – que acabaram me levando a textos meio memorialistas. Terminado o “seriado” no início de dezembro, quando, coincidentemente, passei pela Covid-19 (felizmente, leve, duas a três semanas em casa, com perda de olfato e paladar que já voltaram, e sem contaminar a companheiro e o filho que mora conosco), o surto de escrever por prazer e como terapia continuou. Então, na entrada de 2021, sem que tivesse programado, encontro-me nesse estado interessante. Deixo a escrita me levar, não tenho planos. Há muitos livros no mundo (e desmatamento também), então, compartilhar com os amigos na bolha da internet tem sido suficiente, com resposta imediata.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Como contei, gosto de trabalhar pela manhã. Dependendo da necessidade, posso continuar pela tarde e até enveredar pela noite, o que é bem mais raro. Sob pressão, algo que jornalistas são acostumados, escrevo em qualquer hora e, quase sempre, mais facilmente e com melhores resultados muitas vezes.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Trabalhei em jornal diário ou revista semanal por mais de três décadas, o que me obrigou a produzir muito além do que gostaria. Passei a década de 1980 como free lancer, mas, em diversos veículos, quase todos já extintos – revistas “Manchete” e “Fatos & Fotos”, a mensal “Som Três”, o “Jornal da Tarde” (que era irmão mais novo de “O Estado de S. Paulo”) e muitas pequenas publicações sempre ligadas à cultura -, escrevia quase que diariamente. Até o Plano Collor fechar todas as portas. No dia (ou semana) seguinte, um a um, editores me ligaram dando a notícia de que foram obrigados a cortar as colaborações.
Após seis meses de seca, aceitei o convite para assumir a sucursal no Rio de Janeiro de uma revista especializada em música pop, “Bizz” (Ed. Azul/Abril). Até, dois anos depois, ser chamado para o Segundo Caderno de “O Globo”, onde fiquei por intermináveis 19 anos. Repórter especializado e crítico musical, redator e editor-assistente, depois, novamente, repórter especial e crítico. Nos meus últimos sete anos no jornal, mantive um blog no qual comecei a praticar um outro tipo de jornalismo, quase um diário terapêutico, sem linha muito bem definida, passando por música, literatura, pitacos políticos.
Ao ser demitido por reclamar no blog do baixo salário – foi quando superiores acima de meu editor imediato descobriram que não recebia aumento real há 11 anos, sob a alegação de que era o maior salário de minha editoria -, comemorei a liberdade intensamente. Mas, chavão que é verdadeiro, a helldação, como apelidei no blog, é a melhor escola para quem quer escrever, não só na imprensa. O convívio com jornalistas de diversas áreas, mais velhos ou mais jovens, mesmo com a competição algo nefasta que também rola, é enriquecedor. Minha escrita melhorou muito graças a esses anos. Editar textos de outros é mais uma forma da aprender muito. Sejam os textos brilhantes (tanto de veteranos consagrados quanto de talentos emergentes) ou os ruins, que temos que reconstruir.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Quando não tenho prazo, é mais difícil começar. Adio ao máximo arregaçar as mangas, começo e desisto. Encontrada uma boa abertura, tudo flui mais facilmente. Início capenga é como a história do pau que nasce torto. Mas, nesse caso, sempre dá para consertar, mesmo que gastando mais tempo, suor, indo e voltando.
Como contei, a maior parte de meu trabalho é sobre música. Não tenho formação musical, não leio partituras, uso de conhecimento acumulado em décadas de paixão pelo assunto. Um amador, no bom sentido que Antonio Carlos Jobim sempre deu ao termo.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
O medo de não corresponder às expectativas acaba como um incentivo para tentar o melhor. O que não quer dizer que consiga, sempre fica a sensação que falhei em algo. Em projetos mais longos, a experiência me ensinou que, no meu caso, após muita tentativa, as horas de branco na mente e na tela, há um momento em que as coisas se encaixam. Assim, após alguns dias empacado, o texto começa a sair com facilidade, o trabalho finalmente engrena.
Outro detalhe, muito pessoal, mas que é real, usuário de maconha desde os 16 anos, em alguns momentos é um estímulo. Quando estou procrastinando, alguns tapas ajudam a me botar em ritmo de trabalho. Recentes estudos mostram que, na adolescência e início da juventude, o uso da cannabis pode ser prejudicial, tira a concentração, tão necessária para o aprendizado. Já na velhice, teria efeito benéfico, reforçando as sinapses, a recuperação de neurônios. Estive nas duas pontas (e sempre), e posso confirmar tais pesquisas e teses.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Volto e “revolto” sempre aos textos. No trabalho em redações, sempre ganham a leitura de outros antes de seguir para a gráfica. Nos poucos livros que fiz com editoras, também era lido, revisado, negociamos algumas trocas ou correções. Revisar, cortar os excessos, os vícios de linguagem, frases feitas, repetições de palavras, tudo isso é fundamental para lapidar a primeira versão.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Aos 66 anos, vivi a revolução tecnológica, e migrei das máquinas de escrever para os processadores de texto dos computadores com facilidade. Entre o fim da adolescência e a juventude, quando pensei que seria um poeta, escrevia à mão e depois passava para a Olivetti. No jornalismo, acostumado ao que assistia em casa – mãe escritora e tradutora; pai jornalista e escritor -, quase sempre trabalhei diretamente em máquinas de escrever. Mas, que não deixaram saudade.
Darei um exemplo. Em 1996, já acostumado ao computador, escalado para uma entrevista em Genebra (Suíça), viajei sem lap top, que ainda eram poucos e muito disputados na redação, pensando que não teria problema em usar o business center do hotel. Para minha surpresa, o chique hotel reservado pela Warner Music não tinha business center ou computador disponível. Recebi uma máquina elétrica no quarto e apanhei muito para terminar o texto e enviá-lo por fax. Sem recursos de mover bloco, deletar trechos, corrigir trocas de letras ou de palavra foi tudo bem mais lento e trabalhoso. Ali percebi o quanto computadores faziam diferença.
No entanto, o ideal é escrever tentando se desconectar da internet. Interromper o texto para consultar Google e similares quando surge alguma dúvida é prejudicial. Melhor aproveitar o fluxo e, depois, durante as revisões, corrigir, acrescentar o que for necessário. Nessas googleadas, quase sempre acabamos perdendo o ritmo, arranjando desculpas para conferir correspondência ou o noticiário.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
No tal surto dos últimos tempos, tenho sido tomado por lembranças, associações, referências musicais, literárias, cinematográficas e fatos do cotidiano – destes, principalmente, revolta com a ignorância instalada na presidência e nos ministérios brasileiros. Muitas vezes, os temas de minhas crônicas atuais surgem pela manhã ou mesmo de madrugada, e são cozinhados algum tempo na cabeça. Quando finalmente começo a batucar, tudo tem saído com uma facilidade que nunca tive.
A leitura é também um forte estimulante. Por exemplo, ando imerso na coleção (póstuma como quase tudo dela) de contos de Sylvia Plath, “Johnny Panic e a bíblia dos sonhos”. E, sem ousar escrever como ela, de alguma forma sou alimentado por tudo aquilo. O mesmo aconteceu recentemente com os livros de memórias da compositora e cantora Joyce Moreno e do cineasta Woody Allen. Quis dividir o que experimentei e misturei minhas impressões sobre eles com coisas pessoais e viajei alto.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
É bem recente o prazer que sinto em escrever, livre, sem nenhum compromisso. Há anos venho adiando um livro para o qual tenho extensa pesquisa, um monte de entrevistas, sobre o compositor João Donato. Em parte por não me sentir à altura da empreitada, que não sei bem por quê aceitei, e também pelo fato de nenhuma editora ter aparecido com um adiantamento para a dedicação exclusiva de dois ou três meses que necessito. Sou muito autocrítico. E, nessa área, Ruy Castro, por exemplo, é campeão. Quando leio fracotes livros jornalísticos nessa área, penso que não faz sentido fazer mais um nas coxas. Daí a necessidade de um contrato para terminar o que comecei há dez anos.
Sobre textos antigos, há muitos mal escritos, descuidados, ingênuos ou com opiniões que hoje me envergonham; outros, em número bem menor, que me surpreendem e dão algum prazer.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria mesmo é de terminar o que já comecei, o tal livro sobre a música de João Donato. E, mais para a fotografia, o também já mencionado “Música em PB”, com breves relatos situando os personagens que registrei, em palcos, bastidores, situações do cotidiano. Ao rever essas imagens, pensei que fizera a opção errada ao trocar a fotografia pelo jornalismo escrito. Mas, nunca gostei da parte técnica, usar flash, e os trabalhos que começaram a aparecer para um jovem iniciante (cobrir convenções de empresas, por exemplo) em nada me estimulavam.
Há muito ainda que conhecer, sejam títulos que não li (estou defasado demais no que foi lançado nas três últimas décadas) ou muitos novos que não param de sair. Então, nada a sugerir.